Capítulo 2 (3): Perdido na Névoa
Onde eu estava era uma área de vegetação rasteira e terra nua, como se a própria vida tivesse desistido de prosperar ali. Algumas árvores magras e raquíticas se erguiam adiante, desafiando a morte iminente, e suas silhuetas secas se contorciam contra o céu alaranjado. Um caminho de pedras desgastadas serpenteava entre elas, guiando em direção ao que parecia ser um pórtico natural, onde as pedras se amontoavam de maneira irregular, mas quase simétrica.
O sol já se punha no horizonte, estendendo sombras longas e sinuosas que dançavam sobre a terra seca. A sensação de opressão se tornava mais intensa a cada passo, e eu a sentia de forma palpável, um gosto amargo que impregnava minha língua e uma sensação de sujeira que parecia grudar na pele, como um lodo impossível de remover.
Eu já estava arrependido de ter seguido por ali, mas não havia mais volta. Olhei para trás e vi a névoa pairando como uma muralha impenetrável, silenciosa e ameaçadora. A sensação de estar sendo observado se intensificou, fazendo meu estômago se revirar. Ainda assim, segui em frente, até que o cheiro me atingiu como um soco no rosto, forte, pungente, de material orgânico em decomposição.
— Droga… — murmurei, erguendo a camisa para cobrir o nariz e a boca.
A paisagem se transformava à medida que me aproximava do pórtico. As pedras pareciam dispostas com algum propósito antigo e esquecido. O caminho terminava abruptamente, e, além dele, se estendia um vasto pântano, onde a lama negra se misturava a poças de água estagnada. A podridão era tão densa que parecia se entranhar nos ossos.
Soltei o ar em uma mistura de admiração e repulsa. Aquele alagado se espalhava por onde minha vista alcançava, refletindo a luz pálida do céu escurecendo. Meu sentido de mana indicava que a energia se adensava em algum lugar mais adiante, como um vórtice invisível.
— Não tenho escolha — falei para mim mesmo, quase como uma prece.
Com cuidado, dei um passo à frente e meu pé afundou na lama pútrida até o tornozelo. Quase perdi o equilíbrio e caí, mas consegui me apoiar em uma das pedras do caminho. Precisava de algo para sondar a profundidade daquele charco. Olhei em volta, procurando alguma coisa que pudesse servir.
Voltei até onde as árvores estavam, secas e mortas. Um dos galhos parecia mais robusto, apesar de quebradiço. Testei seu peso, pressionando contra o chão, e ele partiu com um estalo seco, mas o pedaço que sobrou era firme o bastante para servir de bengala e lança improvisada.
— Vai ter que servir — murmurei, dando uma última olhada para trás, para a linha de névoa que ainda se mantinha imóvel, como se esperasse que eu voltasse.
Retornei ao pântano, cauteloso, usando o galho para sondar a profundidade antes de cada passo. O frio úmido da lama subia pelas pernas, e a sensação de podridão parecia grudar em minha pele. A mana ali era quase inexistente, mas de algum modo… pulsava, como se estivesse viva, sussurrando de forma insidiosa nas bordas da minha percepção.
A noite caiu de repente, mergulhando o pântano em uma escuridão quase total. Então, a lua cheia apareceu, enorme e alva, dominando o céu. Seu brilho intenso derramava uma luz prateada sobre o charco, transformando a lama em um espelho distorcido.
Estrelas cintilavam timidamente, e pude ver uma ou duas estrelas cadentes riscando o céu.
— Me permita voltar… é meu desejo — sussurrei, meio envergonhado da própria superstição.
Mas algo lá em cima parecia ter me ouvido. Uma das estrelas cadentes cruzou o céu na direção de uma pequena luz ao longe, que piscava de forma irregular. Senti um arrepio percorrer minha espinha. Seria real? Ou apenas mais uma ilusão?
Eu sabia que não podia ignorar. Mesmo que fosse uma armadilha, era melhor do que ficar parado ali, esperando o pântano me engolir.
— Vamos lá — falei para mim mesmo, como se precisasse de um empurrão.
Com forças renovadas, segui em direção à luz, rindo sozinho. A gargalhada parecia estranha, um som rouco e desesperado que ecoava no vazio. A construção começou a tomar forma diante dos meus olhos. Era uma estrutura piramidal, maciça e decadente, com uma base feita de pedras grandes e cobertas de musgo, enquanto o topo era de madeira velha, quase apodrecida. A estrutura parecia ter emergido da lama ou talvez afundado ao longo do tempo.
Havia uma única porta na parte frontal, parcialmente inclinada, como se prestes a ceder. Acima dela, uma tocha queimava, iluminando fracamente o caminho até a entrada. A chama tremulava com o vento, lançando sombras que pareciam dançar na superfície da água parada.
— Muito conveniente… — murmurei, estreitando os olhos.
Tudo aquilo me acendeu um alerta. Não fazia sentido que uma tocha estivesse acesa ali, naquele lugar esquecido. Olhei para os lados, procurando algum sinal de movimento, mas tudo estava silencioso demais. A energia escura parecia emanar da própria construção, pulsando como um coração lento e pesado.
Engoli em seco e me aproximei, pressionando o galho contra o chão a cada passo. Tinha que ser cuidadoso. Se alguém ou algo me esperava lá dentro, precisava estar pronto para qualquer coisa.
Quando estava a poucos metros dali, a porta se abriu com um rangido longo e agoniante. Um esqueleto saiu de dentro, carregando um balde de madeira que transbordava com algo malcheiroso, um odor tão insuportável que sobrepujava até o fedor do pântano.
— Necros… — sussurrei, engolindo em seco.
Meu corpo inteiro congelou, os olhos fixos naquela figura horrenda. O esqueleto se moveu com uma precisão perturbadora, despejando o conteúdo do balde no chão. Uma gosma viscosa e negra se espalhou na lama, e o cheiro ácido se intensificou.
Então, ele se virou… e me viu.
Nossos olhares, ou o que deveria ser um olhar da parte dele, se cruzaram. Ficamos ali, parados, como se qualquer movimento pudesse desencadear um confronto. Meu coração martelava no peito, e meu corpo gritava para fugir, mas minhas pernas estavam enraizadas no chão. Foi então que outro esqueleto surgiu pela porta, carregando outro balde.
Aproveitei a brecha e lancei meu galho contra o primeiro morto-vivo, girando nos calcanhares e correndo para longe. O som de ossos estalando me seguiu, um estalo rítmico e macabro, enquanto as criaturas começavam a perseguição.
O pântano parecia lutar contra mim, sugando meus passos, tornando cada movimento um desafio agoniante. Meu corpo já estava exausto, os músculos queimavam e a lama colava nas minhas pernas como correntes invisíveis. A bota presa no lodo me fez perder o equilíbrio, e caí de cara naquela mistura pútrida, engolindo um bocado daquele lodo nojento. A bile subiu imediatamente, e comecei a engasgar, sentindo o gosto podre impregnar minha garganta.
Antes que pudesse me erguer, mãos ossudas agarraram meus braços e ombros, puxando-me para fora da lama. Por um momento, uma sensação estranha de alívio percorreu meu corpo, pelo menos não estava mais me afogando. Mas o pânico voltou com força total quando percebi que os necros estavam me erguendo como um fardo, me arrastando de volta para a pirâmide.
— Me soltem! — gritei, debatendo-me com todas as forças.
Mas os esqueletos eram implacáveis, seus dedos ossudos fincando-se na minha carne com uma força desumana. Tentei chutar, mas só consegui arrancar mais lama do chão, enquanto eles me carregavam para dentro da construção. A pirâmide parecia engolir a pouca luz que havia lá fora, e o interior era frio e úmido, com o cheiro de morte impregnando o ar.
Eu tentava acompanhar o caminho, mas o medo nublava meus pensamentos. As paredes de pedra estavam cobertas de musgo e fungos esbranquiçados, e pequenos insetos rastejavam pelas rachaduras. Cada passo ecoava sinistramente, e meu corpo inteiro tremia, parte pelo frio, parte pelo terror.
De repente, fui lançado ao chão de pedra, batendo as costas com força. O impacto arrancou o ar dos meus pulmões, e precisei de um momento para recuperar o fôlego. Ofegante, virei-me para encarar a saída, mas já estavam trancando uma grade maciça diante de mim.
Um dos monstros retirou um molho de chaves preso ao cinto, se é que aquilo podia ser chamado de cinto, e trancou a cela com um clangor que reverberou pelas paredes. Os esqueletos então se afastaram, sem sequer olhar para trás, deixando-me ali na escuridão.
Arrastei-me até a parede, respirando com dificuldade e limpando a lama do rosto com as costas da mão. O frio do chão parecia invadir meu corpo, e a umidade me fazia tremer. Bati o punho na grade, frustrado e apavorado ao mesmo tempo.
— Maldição… — murmurei, tentando controlar a respiração.
O silêncio absoluto que se seguiu era quase pior que os sons anteriores. Estava preso. E, pior ainda, estava vivo o suficiente para sofrer as consequências de minha imprudência.
— Calma… — falei para mim mesmo, tentando me convencer. — Calma… Não acabou ainda.
— Humano… — uma voz grave ecoou da escuridão.
Dei um pulo, procurando a origem da voz, e meus olhos finalmente se ajustaram à penumbra. Na cela, ao lado, um orc estava encostado na parede, os braços musculosos cruzados sobre o peito. Sua pele verde-acinzentada refletia a pouca luz que entrava por uma fresta no teto. Ele me observava com olhos amarelados, semicerrados, como se estivesse ponderando sobre minha presença ali.
— Você… também foi capturado? — perguntei, ainda cauteloso.
— Hm — ele resmungou, sem muito interesse.—
Apontou com o queixo para o outro lado da cela.
Segui seu gesto e vi um monte de cobertores, embolados no canto da grade oposta, formando uma espécie de casulo humano. A princípio, pensei que fosse só trapos velhos acumulados, mas então notei o leve movimento de respiração sob as camadas de tecido.
Enquanto eu tentava absorver as informações e o ambiente que me cercava, o orc falou alto em uma língua gutural. Não entendi nada, mas logo vieram respostas e risadas vindas de outras celas, além do meu campo de visão.
— Estão rindo de você, principezinho — disse uma voz feminina, abafada por um monte de cobertores.
Olhei para minhas roupas, de fato, eram de altíssima qualidade, embora agora estivessem rasgadas e imundas.
— Bem observadora para quem fala o óbvio — retruquei, virando-me para o montinho de cobertores. A cabeça de uma garota surgiu dali, revelando orelhas de raposa que se mexiam ligeiramente.
— Eles estão apostando em quanto tempo você vai morrer aqui — disse ela, com um sorriso sarcástico. —
Quem ganhar fica com sua carne.
— Pretendo morrer velhinho, em minha cama.
— Dificilmente — respondeu ela, soltando um riso agudo e quase infantil.
— Deixe-me perguntar… Eles servem alguma comida? Água?
— Comida de vez em quando. Água, todo dia. — Ela deu de ombros, ajeitando as cobertas ao redor do corpo.
Antes que eu pudesse fazer mais perguntas, um som metálico ecoou pelo corredor. A porta da cela se abriu com um rangido pesado, e os esqueletos voltaram, escoltando uma figura encapuzada.
Imediatamente, a garota se encolheu sob as cobertas, e o orc ficou em silêncio absoluto.
A figura afastou o capuz, revelando um rosto pálido e macilento, coberto por cicatrizes que formavam runas escuras gravadas na própria carne. Seus olhos eram opacos, esbranquiçados como se tivesse catarata, mas me fitavam com uma precisão assustadora, como se enxergassem além da carne. Ele era mais baixo do que eu, talvez um palmo menor, e seu corpo arredondado parecia inchado sob o manto esfarrapado. Um cheiro sufocante de podridão emanava dele, como carne em decomposição.
Sua expressão trazia um prazer sinistro em me ver, um sorriso doentio com dentes pontiagudos que faziam sua presença crescer, como um predador olhando sua presa.
— Sim, muito bom… É mesmo um humano — comentou ele, com uma voz aguda e estranha, quase artificial. —
Podemos continuar nossos experimentos agora. Estamos com sorte.
Os esqueletos ao redor começaram a bater os dentes num som rítmico e macabro, como se aprovassem as palavras do encapuzado.
— Tragam-no — ordenou ele.
Os esqueletos avançaram, e antes que eu pudesse reagir, ouvi a voz baixa da garota-raposa atrás de mim:
— Foi bom conhecer você… — ela murmurou, quase como um sussurro.
Engoli em seco, tentando não demonstrar o pavor que crescia no meu peito. Precisava pensar em algo, mas a realidade era brutal: eu estava completamente indefeso diante daquela coisa, seja lá o que ele fosse.
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