Índice de Capítulo

    Os esqueletos me escoltaram de volta à área das celas, e o cheiro azedou o ar antes mesmo de eu cruzar o corredor. Era uma mistura densa e sufocante de suor, excrementos, restos de comida e podridão acumulada ao longo de sabe-se lá quantos anos. Meu estômago revirou, mas me forcei a continuar caminhando, tentando respirar apenas pela boca.

    À medida que avançávamos, percebi movimentos nas sombras das celas vizinhas. Olhos brilhavam na penumbra, corpos encurvados se arrastavam para observar minha passagem. Vozes murmuravam, quase como se recebessem um fantasma de volta. Tentei ignorar, mas era difícil não sentir o peso de dezenas de olhares cravados em mim, julgando se eu era mais um condenado ou um sobrevivente.

    Quando chegamos à minha cela, um dos esqueletos abriu a porta gradeada com um rangido áspero. Antes que eu pudesse entrar, os outros mortos-vivos invadiram o espaço, cercando o orc, que se levantou de um pulo, grunhindo algo em sua língua gutural e ininteligível. Seu rosto era uma máscara de fúria e desespero.

    Ele tentou fugir, avançando com os punhos erguidos, mas os esqueletos eram rápidos, e as garras afiadas rasgaram sua pele acinzentada, impedindo-o. Um sangue espesso e escuro gotejou no chão de pedra suja. O orc recuou, tropeçando em si mesmo, e agarrou um osso que provavelmente usava como arma, um fêmur, manchado e lascado. Gritou uma última ameaça e avançou.

    Com um golpe forte e certeiro conseguiu destruir um dos esqueletos, quebrando o crânio com um golpe brutal. Após o ímpeto inicial, sua força e velocidade diminuía perante meus olhos, talvez a fome e a sede cobrando seu preço. Outros esqueletos o cercaram, empurrando-o contra a parede. Uma das criaturas arrancou o osso de suas mãos e, com um movimento seco e brutal, acertou a lateral de sua cabeça. O orc cambaleou e caiu pesadamente no chão, desacordado.

    — Vai comer a carne de quem mesmo?… — murmurei, sentindo uma satisfação inesperada e amarga.

    Os esqueletos agarraram o orc pelos braços e pernas, arrastando-o como se fosse um saco de batatas. Meu escolta fez um gesto para que eu entrasse na cela, e, com uma gentileza bizarra para um morto-vivo, esperou que eu me acomodasse antes de fechar a grade atrás de mim com um estalo seco.

    A garota-raposa estava no fundo da cela, os olhos dourados arregalados e atentos, refletindo a luz bruxuleante das tochas no corredor. Parecia não acreditar que eu realmente tinha voltado. Caminhei até a parede livre e me deixei cair ali, tentando relaxar os músculos tensos, embora a sensação de insegurança ainda me envolvesse como um manto pesado.

    Levantei o olhar e encarei a vulpina, que parecia lutar contra a própria curiosidade.

    — Achou que não ia me ver de novo, não é? — arrisquei, esboçando um sorriso cansado.

    Ela hesitou, mas acabou assentindo com a cabeça. Deu um passo para mais perto, ainda cautelosa.

    — O que aconteceu? — perguntou, a voz quase um sussurro. — Desde que cheguei, não vi ninguém voltar de lá…

    Suspirei, tentando reorganizar os pensamentos. A lembrança de Drael e seu laboratório macabro ainda pesava na minha mente, e um calafrio percorreu minha espinha. Balancei a cabeça, tentando afastar as imagens, mas elas grudavam como visco.

    — Fui apresentado ao chefe da casa — falei, forçando um tom leve. — Ele é… peculiar.

    — Peculiar? O que aconteceu? — Ela arqueou as sobrancelhas, claramente não entendendo.

    — Um desgraçado que quer fazer experimentos em mim — resumi. — Ele queria ver se eu tinha… potencial.

    — E tinha? — Nix apertou os braços ao redor do próprio corpo, as orelhas voltadas para trás, inquietas.

    — Acho que sim — admiti, com um suspiro. — Pelo menos, me mandou de volta inteiro, enquanto eu for útil, acho que estarei a salvo.

    Estendi a mão para ela, tentando quebrar o gelo.

    — Sou Ganimedes — disse, com um sorriso meio forçado.

    Ela me olhou com curiosidade genuína e se aproximou mais um pouco, hesitante. Em vez de apertar minha mão, inclinou-se e cheirou meus dedos com um movimento rápido e cauteloso. A surpresa me arrancou uma risada curta e inesperada.

    Nix recuou um passo, com o cenho franzido e as orelhas baixas, claramente confusa.

    — Eu sou Nix, uma vulpina de Sylvania — respondeu, com um toque de orgulho na voz. — Por que está rindo de mim?

    Ainda com o sorriso nos lábios, balancei a cabeça e tentei recuperar o fôlego.

    — Não é nada… Só achei engraçado. Isso — levantei a mão de novo, mostrando os dedos — é um cumprimento. Um costume humano.

    Ela continuou me olhando como se eu estivesse falando um idioma desconhecido, os olhos dourados fixos em mim, enquanto a cauda se agitava atrás dela, inquieta.

    — O que é um cumprimento? — perguntou, cruzando os braços, desconfiada. — Me mostre.

    Passei uns bons dez minutos ensinando a ela o básico sobre apertos de mão e outras formas de cumprimentar alguém. No começo, ela se atrapalhou um pouco com o gesto, pegando minha mão com as garras levemente expostas, mas logo aprendeu a suavizar o toque. Gostei de ver os sorrisos que arranquei dela, um brilho tímido e quase esquecido que iluminava seu rosto.

    Aos poucos, fui percebendo que ela não era uma criança, como pensei inicialmente. Na verdade, sua postura e os trejeitos delicados escondiam a figura de uma mulher adulta e, de certo modo, formosa. Suas longas orelhas de raposa se mexiam incessantemente, reagindo a qualquer ruído do corredor, e sua cauda felpuda ondulava de leve, como se expressasse seus pensamentos sem que ela percebesse. A pelagem dela era de um tom vermelho alaranjado, típico de raposas selvagens, e os olhos, de um dourado mel profundo, brilhavam com um misto de curiosidade e cautela.

    Os caninos dela eram mais longos e pontiagudos que o normal, dando um toque predatório ao sorriso desajeitado. Na testa, uma marca escura destacava-se contra a pele clara, ornamentada com runas finas e intrincadas, era um símbolo de escravidão mágica.

    Aquilo me fez apertar os lábios, sentindo um nó na garganta.

    Talvez por impulso, talvez pela sensação de que estávamos quebrando o gelo de maneira espontânea, arrisquei puxar assunto.

    — Se vamos ficar aqui juntos, temos que nos conhecer melhor. Se somarmos nossas forças, quem sabe descobrimos uma forma de escapar?

    — Você foi o único que voltou — ela completou, quase para si mesma. — Talvez tenha sorte… ou talvez ele tenha outros planos para você.

    — Não sei qual das opções é pior — respondi, tentando manter o tom leve, embora o medo permanecesse em meu peito como um peso constante.

    Ela apenas me olhou e, depois de um momento, baixou a cabeça. Notei que suas garras raspavam o chão de pedra, inquietas. Qualquer informação que ela pudesse me dar seria preciosa. Para não cair na espiral da depressão e do medo, precisávamos nos apegar à esperança, mesmo que mínima.

    — Sei muito pouco sobre o que está além dessas grades — começou ela, a voz carregada de melancolia. — Fui trazida há cerca de duas semanas… eu acho. É difícil manter a contagem dos dias aqui. Um mercador de escravos trouxe um monte de gente pra cá.

    Curiosamente, ele foi o primeiro a morrer.

    Um brilho travesso surgiu em seus olhos, e um sorriso meio perverso apareceu em seus lábios.

    — Acho que ele queria mudar de ideia e vender a gente para algum nobre ou coisa assim, mas a criatura não aceitou. Nunca vi alguém ser despedaçado tão rápido.

    — Isso te parece engraçado? — perguntei, meio surpreso.

    — Não. Só… justo. Ele nos tratava como mercadoria — respondeu ela, o sorriso se desfazendo.

    Ela se aproximou mais, como se fosse me contar um segredo.

    — Eu tentei escapar uma vez. Nós vulpinos temos magia natural, uma delas, é uma habilidade que ajuda a abrir portas e fechaduras.

    Ela apontou para um dos corredores que se estendiam na escuridão.

    — Lá em cima, tem um depósito cheio de esqueletos de todos os tamanhos e formatos. Dei de cara com eles e fui recapturada. Esses aqui que nos guardam são só uma pequena parte do que ele tem à disposição.

    Antes que eu pudesse perguntar mais sobre isso, um som seco de ossos batendo ecoou pelo corredor. Virei o rosto na direção do ruído e vi nossos carcereiros retornando.

    A porta da cela foi aberta, e um dos esqueletos entrou carregando um fardo dobrado: um cobertor velho e uma roupa limpa. Outro trouxe uma grande cuia cheia de mingau de aveia com pedaços de carne seca, ainda soltando vapor quente, e uma jarra de barro cheia d’água. Meu estômago roncou alto, mas um terceiro esqueleto chamou minha atenção.

    Ele trazia um cetro de madeira negra e retorcida, com um crânio na ponta, decorado com joias verdes nas órbitas e coberto de runas profanas que pulsavam com uma energia fria e ameaçadora. A expressão de Nix mudou num instante: seus olhos se arregalaram de puro terror, e ela recuou até bater na parede, as orelhas coladas à cabeça.

    — Nix! — tentei avançar, mas fui contido por um dos esqueletos.

    O cetro foi erguido na direção dela, e um brilho prateado começou a emanar de sua boca, narinas e olhos. Nix arquejou, se contorcendo enquanto a energia era sugada de seu corpo. As gemas verdes no crânio brilharam intensamente, como se absorvessem sua essência vital.

    Ela caiu no chão, completamente mole e pálida, respirando de maneira superficial. Assim que a absorção terminou, os esqueletos saíram da cela, deixando o cobertor, a comida e a água para trás.

    Corri até ela, levantando sua cabeça com cuidado e colocando o cobertor sobre seu corpo. Ela estava fria e sem reação, mas ainda viva. Improvisei um travesseiro com o fardo de roupas e levei um pouco de água até seus lábios, fazendo-a beber um pouco.

    — Nix, Nix… fica comigo — murmurei, tentando não transparecer o desespero.

    Depois de alguns minutos, ela reagiu, engolindo devagar e deixando escapar um suspiro trêmulo. Ofereci uma colher do mingau, e, mesmo inconsciente, ela aceitou, engolindo lentamente.

    Aos poucos, sua cor voltou, e eu me permiti respirar aliviado. Mas o medo ainda me consumia. Estávamos à mercê de um maníaco, um sádico obcecado por experimentos e poder. Se ele podia fazer isso com Nix, não queria nem imaginar o que pretendia comigo.
    Precisávamos de um plano. E rápido.

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