capítulo 207: Em terras inóspitas
Nos posicionamos diante da névoa.
O silêncio pesava. Eu conseguia ouvir alguns dos homens engolirem em seco. Mesmo os mais treinados pareciam inquietos. A travessia era sempre individual. E por mais que os relatos de extravios fossem raros, quase lendas, o medo ancestral da névoa ainda assombrava cada um deles como um sussurro vindo do fundo da garganta.
Observei as volutas espessas se agitando, como se dançassem com intenções próprias. Elas pareciam me chamar, ou me provocar. Lancei um olhar para meus companheiros. Rostos duros, atentos, quase todos disfarçando o temor como podiam. A exceção era Karel. Ela sussurrava algo para sua pedra de Ancoragem, encostando os lábios nela como se trocassem segredos antigos, ou juras de amor.
Apertei minha própria pedra na mão e deixei minha mana fluir por ela. Imediatamente, ela reagiu, pulsando em resposta.
Dei um passo à frente.
A névoa me engoliu.
O frio foi o primeiro impacto, um arrepio que tomou conta da espinha. Ela distorcia tudo: som, cheiro, visão, tempo. Meus sentidos foram arrancados, como se uma parte de mim tivesse ficado do lado de fora. Estava só.
A pedra brilhou, firme, em minha mão. Uma runa incandescente se acendeu, e um caminho se formou. Um túnel estreito, sinuoso, esculpido em névoa e silêncio. A única direção era para frente.
Segui em frente.
Meus passos ecoavam abafados, e por alguns instantes temi não sair do outro lado. Mas então, a luz me tocou.
O túnel se desfez atrás de mim, e a névoa caiu como um pano que se solta. Estava do outro lado.
O sol brilhava alto, diretamente acima, mas a luz que me envolvia era fria. Gélida, até. A claridade não aquecia nada, como se aquele mundo seguisse regras próprias.
À minha frente, a ilha.
Gigantescas árvores se erguiam como colunas de pedra viva. Pareciam petrificadas, mas seus galhos carregavam folhagens densas, espessas, como uma muralha verde suspensa. Era impossível ver o chão além de poucos metros; a copa formava uma cúpula escura e densa, projetando sombras que pareciam engolir a luz.
Por entre os troncos, avistei ao longe uma cadeia de montanhas colossais. Seus picos estavam envoltos em nuvens alvas, mas em meio ao branco vi lampejos vermelhos. Explosões altas. Vulcões, pensei. Não era estranho para um filho de Vesúvia, terra dos Vulkaris.
Atrás de mim, a névoa borbulhou.
Um a um, meus companheiros começaram a emergir.
Cassiopeia apareceu primeiro, com a mão já sobre o punho da espada. Depois vieram André, Alissande, Niana, Pandora. Logo, todos os outros. E ninguém se perdera.
— Temos duas opções — falei, erguendo a voz para alcançar o grupo inteiro.
Todos se viraram em silêncio. A tensão ainda estava no ar, como se esperassem algum ataque invisível.
— Podemos montar acampamento aqui, onde temos maior visibilidade e acesso ao retorno, mas ficamos expostos e próximos da névoa… — fiz uma breve pausa. — Ou avançamos até a sombra das árvores. Teremos menos visão, porém ficaremos mais longe da névoa.
Alguns dos homens olharam para trás, para a muralha leitosa. Marreta engoliu em seco, claramente desconfortável.
Tinham mais medo do que já conheciam do que daquilo que ainda não tinham visto.
— o que acha, Germano? — perguntei. Ele era o caçador mais experiente. — o que acha Karel? — também era uma caçadora, mas tinha um conhecimento maior sobre a névoa.
Ambos se entreolharam e Germano falou primeiro.
— eu acho melhor não ficarmos expostos. Não sabemos ao certo o que atacou os primeiros que vieram antes de nós. Temos como proteger todo o perímetro com magia?
— Tenho algo em mente sim — respondi. — e você Karel, o que me diz?
— a névoa aqui é faminta. Melhor ficarmos distantes dela. Senti o eco de nossa passagem ressoando dentro dela, e ela gostou de saber que estávamos aqui.
A fala da garota gelou minha espinha.
— Vamos para debaixo das árvores.
Olhei para os homens da Casa Argos, que acompanhavam Calmon.
— Vamos montar acampamento primeiro. Depois vamos sair para fazer a leitura dos nossos arredores.
Alguns homens da Casa Argos hesitaram, lançando olhares para as árvores colossais que se estendiam à frente. As copas formavam um teto espesso que mal deixava a luz solar atravessar. Havia um silêncio úmido ali dentro. Como se o ar fosse mais grosso, e o tempo passasse devagar.
— Vocês ouviram o Lorde Lior — disse Calmon, assumindo o comando.
Entramos na floresta.
Os troncos das árvores eram imensos, mas espaçados. O terreno ali parecia antigo, sedimentado por eras de silêncio. Havia distância de sobra entre um tronco e outro, como se a própria floresta mantivesse uma ordem ancestral, onde nada crescia por acaso.
Germano caminhava à frente, atento. Parou e apontou para um ponto mais adiante, um pequeno platô natural, elevado em relação ao restante do solo. Uma clareira de pouco mais de vinte metros de diâmetro se abria ali, livre de raízes e árvores. A vegetação era mais baixa, o chão firme, sem sinais de alagamento.
— Aqui. — disse, seco. — Boa visibilidade, só um flanco vulnerável. Fácil de defender, fácil de montar.
Observei o local com atenção. Ele estava certo. A elevação nos dava vantagem. Se algo viesse da mata, ouviríamos antes. Um terreno assim, no coração de uma floresta como essa, era raro. Quase… providencial.
— Perfeito. Montamos aqui.
Logo, os homens começaram a descarregar os equipamentos. As barracas foram erguidas entre as raízes imensas e retorcidas. Bastões de luz encantada foram presos nos troncos, emitindo um brilho suave, azul-pálido. Calmon acionou os sentinelas de mana que trouxera, pequenos pilares de metal negro, alimentados com pedras de mana, que se ativaram com um zumbido baixo, formando um anel protetor ao redor do acampamento.
Chamei Gus e Milena.
— Venham comigo. Quero garantir que, se algo se aproximar, a gente saiba.
Caminhamos até a parte mais externa da clareira. O solo ali era coberto por uma camada espessa de folhas antigas. Me ajoelhei e comecei a desenhar um conjunto de runas no chão com um bastão. A mana correu pelas linhas e sulcos, como um rio silencioso, formando um círculo de contenção.
— Isso é um perímetro de restrição ativa — expliquei, enquanto as runas começavam a brilhar ao meu redor. — Vai se expandir por trezentos metros em todas as direções. Muito além do alcance dos sentinelas. Qualquer coisa que cruzar de fora para dentro… nós três vamos sentir. Não fisicamente, mas com um puxão sutil, uma vibração mental. Como um aviso silencioso.
Gus arregalou um pouco os olhos.
— Trezentos metros? — murmurou, surpreso. — É… longe demais. Incrível.
— Agora que despertaram seus sois de mana, vão começar a entender a verdadeira extensão da magia — continuei, com calma. — Isso é só o começo. Não tenham medo de forçar os limites. Quanto mais ousarem, mais longe vão chegar.
Eles assentiram em silêncio, absorvendo cada palavra, enquanto a barreira mágica se firmava ao nosso redor.
Gus observava atento, fazendo notas mentais de tudo que eu fazia, sua mana começando a fluir de forma instintiva, tentando acompanhar meu traço. Milena repetia o desenho em menor escala, já assimilando os fundamentos.
— Não precisa força, só precisão. Respirem junto do fluxo.
Quando finalizei o núcleo do selo, deixei que eles o alimentassem e voltei ao centro do acampamento. As barracas estavam quase todas montadas. O fogo principal começava a ser aceso, embora a madeira local ardesse com uma coloração verde-azulada.
Chamei Karel, Germano e Niana. Cassiopeia, Alissande e André já estavam sentados ali.
— Quero ouvir o que acham. Da floresta. Do lugar. Qualquer coisa fora do comum.
Germano franziu o cenho, sempre pragmático.
— Aqui me parece um lugar tão bom quanto qualquer outro. Não vi marcas de animais. Devemos estar seguros.
Karel se aproximou em silêncio. Tinha um cheiro de ervas e ferro antigo. Seus olhos, tão azuis quanto frios, estavam fixos no chão.
— A floresta não dorme — murmurou Karel, passando a mão por uma das raízes retorcidas. — Há ecos aqui. Sussurros que não são nossos.
Deslizou os dedos pela casca e murmurou algo em palavras antigas. — Alguém marcou essas árvores antes de nós.
Observei atentamente, mas não sentia nenhuma alteração na mana ambiente. Nada pulsava, nada vibrava além do normal. Primeiro fora aquela fala sobre a névoa faminta, agora eram impressões sem qualquer vestígio mágico. Comecei a me perguntar se sua mente estava tão firme quanto seu olhar penetrante.
Voltei-me para Niana. Ela estava tensa, o corpo levemente curvado, como um animal prestes a saltar. A mão pousava com firmeza sobre a empunhadura da lança curta.
— Tem algo nos observando — disse, num tom baixo e firme. — Não sei de onde, nem o quê. Mas a floresta percebeu que entramos. E está decidindo o que fazer com isso.
Agora era ela quem falava como se temesse espíritos. Mas conhecendo os sentidos apurados de uma vulpina, seria tolice ignorar seu instinto.
— E vocês? — perguntei para minhas irmãs. — o que estão achando?
— Ainda é cedo para dizer qualquer coisa — murmurou Cass. Alissande e André pareciam concordar. — Mas esse lugar me parece estranho.
Ficamos em silêncio por um momento, ouvindo o farfalhar constante das folhas, embora não houvesse vento.
Calmon se aproximou.
— Acampamento montado, Lorde Lior. As defesas estão operando. Deixaremos quatro vigias por turno. Nossos instrumentos vão cobrir o perímetro junto das suas runas.
— Muito bem. — disse. — Mas ninguém relaxa. Hoje não é noite para histórias ao redor do fogo. Hoje é noite para escutar o que nos ronda.
— Há mateiros no seu grupo? — perguntei, olhando para Calmon.
— Dois, Lorde Lior — respondeu ele prontamente.
— Traga-os até mim. Vamos aproveitar o restante da luz para explorar os arredores. Precisamos verificar se há sinais de presença recente, pegadas, animais, fontes de água… qualquer coisa que nos dê vantagem ou alerte para algum perigo.
Calmon assentiu e partiu com passo firme. Já era fim de tarde, e o sol, mesmo oculto pelas copas densas, ainda nos concedia um pouco de claridade. O tempo apertava. Se algo estivesse à espreita, eu queria saber antes da escuridão cair de vez.

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