Após falar com o senhor do engenho, Carlos foi mandado para o canavial trabalhar.

    No canavial trabalhou por horas até que notou que o sol estava bem alto no céu. Como não tinha um relógio nem celular, apenas podia usar o sol para deduzir que era por volta de meio-dia. Isso o deixou animado pois isso significava que era a hora do almoço, estava morto de fome. Enquanto trabalhava, apenas pensava no almoço e via a posição do sol bem alto no meio céu.

    Até que uma hora os capatazes começaram a comer a comida deles que eles mesmo trouxeram em potes de argilas, porém, os escravos continuavam trabalhando.

    “Não basta estar morto de fome, ainda tenho que ficar sentindo o cheiro de comida e ver os outros comerem. Quando é que nós vamos poder comer?”

    Apesar da expectativa para almoçar, o horário de almoço nunca veio. Apenas veio o pôr do sol depois de muito trabalho. 

    Com o sol se pondo finalmente os escravos puderam voltar para a senzala.

    “Meu Deus, escravidão é mesmo brutal, não acredito que só temos duas refeições diárias…”

    Carlos abatido andava até a senzala, mancando um pouco devido a dor na perna. Lentamente adentrou a senzala e já pode sentir o cheiro de comida misturado com um cheiro podre do lugar. Mas não ligou para isso e foi direto para pegar um prato e talheres e foi numa das panelas que estavam servindo comida.

    Vendo ao redor notou que a Tia Vera não estava servindo eles hoje. De qualquer forma, sem perder tempo, chegou perto de uma panela e viu que era feijão e farinha de mandioca de novo, mas por ter tanta fome nem ligou para isso e colocou a comida no prato e foi se sentar no chão perto de um canto da senzala. Logo depois o portão da senzala foi fechado.

    Em pouco tempo o prato de comida foi devorado.

    “Se tivesse pelo menos arroz isso seria mais aturável… É o que eu diria, mas estou com tanta fome que não consigo nem reclamar dessa comida.”

    Enquanto terminava o segundo prato alguém sentou do seu lado, era um homem alto negro de olhos olhos azuis, ele reconhecia esse homem era Pedro.

    — Pelo visto o senhor do engenho gostou de você.

    Carlos riu e disse:

    — Não sei se fico feliz ou triste com essa notícia.

    “Infelizmente não sei usar gemas mágicas, eu queria tanto poder usar elas, mas não posso. Aliás, o que são e como funcionam essas gemas mágicas? Melhor perguntar agora que tenho a oportunidade. Tanta coisa aconteceu nesses dias que nem tive a oportunidade de pensar sobre a magia desse mundo.”

    — Sabe da onde vim ninguém sabe usar essas gemas mágicas, pode me falar como elas funcionam?

    Pedro ficou desconfiado com sua fala e não pôde deixar de expressar sua desconfiança.

    — De que lugar você vem? Porque o mundo todo sabe usar gemas mágicas. Até mesmo tribos no meio da amazônia sabem usar pelo menos algumas delas, claro que não chamam elas assim, cada lugar chama elas de um jeito. Mas como os portugueses chamam de gemas mágicas, então é como chamamos por essas bandas. Aliás, eu nem sei como são chamadas na língua da onde eu vim, apenas falava a língua da minha terra natal quando era pequeno.

    “Ele ficou bem desconfiado com a minha fala, mas não tem o que fazer, não posso ficar fingindo saber algo que não sei, ainda mais na frente daquele velho dono do engenho. Basta apenas um deslize para eu virar história. Por isso vou ser honesto, pelo menos parcialmente honesto, eu não sei nada sobre esse mundo então não adianta mentir. Mas duvido que acreditassem em mim caso falasse que vim de outro mundo.”

    — Digamos que eu venha de um lugar muito mas muito longe, mais longe do que aqui até Portugal ou África. Então não sei nada sobre como essas gemas mágicas são encontradas nem como elas funcionam, muito menos seus poderes.

    “Se é que existe África por aqui. Bom se Portugal existe então África também deve existir.”

    Pedro ficou tão surpreso quanto desconfiado ao ouvir isso, mas não quis insistir.

    — Bom, pelo que sei essas gemas existem naturalmente em cavernas pelo mundo todo, apesar de serem raras. Nas colônias espanholas existem diversas minas de gemas mágicas, que estão deixando a Espanha rica. No Brasil não tem tantas minas de gemas mágicas, apenas tem algumas das mais comuns, mas essas tem pelo mundo todo, até existem algumas minas de gemas raras mas nem se comparam com as minas das colônias espanholas.

    — A gema mágica em seu estado natural é inútil. É necessário que um artesão mágico prepare a gema para que ela comece a ter algum uso. Para preparar as gemas eles a entalham, escolhem os materiais que combinam com elas e também trabalham os materiais da forma adequada.

    — Apenas os próprios artesãos mágicos sabem como preparar cada gema. Os melhores artesãos mágicos estão na Europa, por isso que as armas mágicas européias são as melhores.

    “Nossa ele sabe bastante, mas isso é bom pra mim, são informações valiosas, agora sei que pelo menos na parte de reinos e colonização esse mundo é como o meu. Já na parte mágica é bem diferente, afinal não tinha magia no meu. Pelo menos não que eu saiba, apesar de que se vim parar aqui deve ter sido por algum meio mágico.”

    — Você sabe bastante né.

    Pedro riu e disse:

    — Eu trabalho na casa do senhor do engenho então acabo aprendendo algumas coisas, aliás todo mês vem um comerciante ambulante da capital da capitania pra cá, daí ouço a conversa dele com o senhor do engenho. Eles vivem reclamando sobre os impostos e de como a Espanha está levando Portugal a se tornar inimigo do mundo todo, eles também vivem reclamando de preto e índio. Como to sempre refrescando o senhor do engenho com meu poder acabo ouvindo toda a conversa dele. Porém não sei tanta coisa sobre as gemas mágicas, tudo que te falei é o que sei, quem sabe mesmo sobre gemas mágicas é a Tassi.

    “Tassi foi aquela mulher que tentou me salvar… E foi torturada por isso… Eu devia pedir desculpas depois. Outro questão, estão reclamando da Espanha levar Portugal a ser inimigo do mundo todo, isso quer dizer que estamos no período da união ibérica quando a Espanha controlava Portugal, mas achei que a união ibérica tinha acabado antes dos holandeses serem expulsos do Brasil, será que lembrei errado?”

    — Obrigado pelas informações.

    — De nada. Sabe, te vi trabalhando ontem. Deu pra ver que foi sua primeira vez trabalhando num canavial. E primeira vez sendo chicoteado pelo visto. Me pergunto de onde você é, mas não vou te pressionar sobre isso. Apenas um aviso, é melhor pensar em uma boa mentira pro senhor do engenho, ele é mais esperto do que parece e não sei se comprou a sua história, apesar de que você realmente parece saber muito sobre esses artefatos do diabo.

    — Mas talvez isso seja sua salvação, o senhor do engenho é fissurado nesses artefatos. Ele sempre compra todos artefatos do diabo do comerciante ambulante. Esses artefatos são bem raros, ainda mais porque a igreja pega eles e queima. Justamente por isso o senhor paga muito caro por eles. Aliás, amanhã o comerciante vai estar por aqui.

    — Obrigado pelos conselhos. Vou me lembrar disso.

    “Apesar de que não preciso enganá-lo totalmente, só preciso de uma arma em mãos e o resto dá pra resolver. Apesar de que nunca matei ninguém antes, não sei se tenho coragem, na verdade eu tenho que ter…”

    “Isso me lembra de uma frase ‘O escravo que mata o senhor, seja em qualquer circunstância, é por legítima defesa.’ foi isso que Luiz Gama disse, ele foi um advogado do Brasil imperial, que conseguiu alforriar por meio da lei 217 escravos que foram tornados escravos injustamente. Esse feito foi a maior libertação coletiva de escravos nas Américas. Apesar de que não acho que exista algum escravo que foi tornado escravo de forma justa, talvez no sentido legal sim, mas não no sentido moral. O que importa é que a frase dele está correta, o que farei será legítima defesa, e com isso ajudarei todo mundo daqui, principalmente a Tassi que me salvou.”

    Depois de conversarem um pouco mais, Pedro decidiu que era sua hora de dormir, e Carlos ficou acordado um pouco mais antes de ir se deitar também, mas na hora de se levantar para ir para sua cama, sentiu uma forte dor na perna.

    “Droga, minha perna ainda dói… Em compensação minhas costas estão bem por conta do remédio, remédio que esqueci de pedir mais remédio pro Pedro. Na próxima vez não posso esquecer disso.”

    Depois de fazer esse lembrete mental, foi se deitar no chão de terra coberto por palhas perto do banheiro. Apesar das condições horríveis, conseguiu dormir rápido devido ao cansaço, mas acordou de madrugada precisando ir ao banheiro.

    “Que droga, tá um breu completo aqui. De qualquer forma, só tenho que seguir o cheiro da bosta pra ir ao banheiro.”

    Enquanto andava em direção ao banheiro, acabou pisado na beirada da vala que era usada como banheiro e quase caiu dentro. Felizmente se salvou a tempo e conseguiu fazer suas necessidades, até que percebeu que lá não havia papel higiênico.

    “Que droga. Eu estava meio sonolento e até esqueci que aqui não tem papel higiênico…. Não posso ficar assim. Vou ter que sair daqui e usar a palha da minha cama para me limpar…”

    Depois de algum tempo conseguiu se limpar e voltar para cama.

    “Mas que coisa nojenta, não aguento mais essa vida. Depois disso não tem nem como voltar a dormir, precisava pelo menos de um banho para ficar limpo mesmo, só a palha não resolve…”

    Pensando nisso, acabou ficando acordado o resto da madrugada até o horário em que a luz do sol começou a entrar na senzala pelas frestas no teto e pelas grades da única janela que havia dentro da senzala. 

    Aproveitando a luz ergueu sua calça e viu a ferida em sua perna. Ela estava inflamada e saindo pus.

    “Nossa está bem feio. Nessa época não tem nenhum remédio ou forma de combater infecções, se eu pegar alguma doença tô morto, literalmente.”

    Carlos não teve muito tempo para pensar pois o portão da senzala foi aberto para os escravos que trabalham na casa-grande poderem ir trabalhar. Quando viu Pedro se levantando, não pôde deixar de se levantar mesmo com dor na perna para tentar falar com ele e pedir mais remédio.

    — Bom dia Pedro, preciso de ajuda, será que você tem mais daquele remédio? Minha perna está bem machucada.

    Pedro balançou a cabeça.

     — Infelizmente não tenho mais pomada, mas você pode conseguir mais pomada com o padre da capela. A capela fica do outro lado do lago, perto da casa do pescador. Recomendo que você vá o mais rápido possível, porque eles não vão ficar te esperando. E eu também já tenho que ir. Boa sorte”

    Sem perder tempo, segurou a dor e saiu primeiro da senzala para ir em direção a capela, mas antes disso se virou para Pedro que estava saindo da senzala e disse.

    — Valeu Pedro, você é o melhor!

    “Infelizmente hoje vou ter que pular o café da manhã para não me atrasar, pois tenho que voltar logo para o canavial para trabalhar. preciso mostrar que quero trabalhar pro velho do engenho, só assim para eu poder conseguir pôr as mãos em uma arma, só preciso aguentar essa vida até conseguir uma arma.”

    Os capatazes não puderam deixar de notar o comportamento estranho do novo escravo, principalmente Jairo que estava de olho em Carlos a pedido do senhor do engenho. Rapidamente mandou um capataz seguir Carlos e depois foi falar com Pedro.

    — Espero que não esteja botando ideias erradas na cabeça do novato.

    — Eu apenas disse onde fica a capela, afinal é melhor que um escravo que o seu Jorge gostou viva bastante não é mesmo? Além disso, já tô me tornando amigo do novato assim como o senhor do engenho mandou. 

    — É bom mesmo que você esteja falando a verdade! Não se esqueça do que vamos fazer caso você nos desobedeça!

    ───────◇───────◇───────

    Carlos deu a volta pelo lago e logo chegou na casa do pescador, a partir daí seguiu uma estradinha que tinha atrás da casa do pescador até chegar na capela. A construção era bem pequena, feita de pedra e cal, era toda de branco, no estilo barroco. Isso lembrava uma capela que tinha visto quando pequeno na cidade em que seus avós moravam. 

    Entrando na capela, pode ver os bancos de madeira voltados para o altar, mas não viu nenhum padre.

    “Pelo visto ele não vai estar aqui… Mas também, é muito cedo.”

    Antes que Carlos pudesse dar meia volta e sair, um padre saiu de uma porta que ficava perto do altar.

    — Bom dia! Veio confessar seus pecados na casa de Deus? A gente pode começar logo. Sei que seu tempo é curto.

    A aparência do padre o surpreendeu, pois estava esperando um velhinho, mas a pessoa que estava diante dele era um homem novo de 21 anos, cabelo castanho e olhos azuis. O padre estava dando um leve sorriso e exibia um olhar gentil, um olhar que a maioria dos brancos daqui não tinha para com os negros. Até mesmo os pardos, ou mestiços como eram eram chamados na época olhavam com desdém para os negros.

    “É irônico que nessa época gente parda se ache melhor que pretos, aos olhos dos portugueses nós não somos tão diferentes, aliás mesmo para os portugueses mesmo os brancos brasileiros são inferiores, tantas camadas de preconceito e racismo. Mas pelo menos esse moço parece ser alguém bom.”

    — Bom dia senhor, hoje não vim para isso. Na realidade me falaram que você teria algum remédio para curar meu ferimento. Eu levei uma chicotada na perna e o ferimento ainda está inflamado.

    Carlos ergueu a calça e mostrou a ferida para o padre.

    — Meu filho, como se chama?

    — Me chamo Carlos, meu senhor.

    Ouvindo isso padre riu: — Senhor é só aquele que está no céu, pode apenas me chamar de padre ou Antônio, vou buscar um remédio para você. Me siga, vamos a um local mais adequado para te passar o remédio.

    “Ele é que nem aquelas senhorinhas que odeiam ser chamadas de senhora. Ainda lembro delas nos ônibus, quando eu dava lugar para elas, se sentavam sem dizer um obrigado e ainda ficavam reclamando que as chamei de senhoras. Não basta estarem saindo de casa em horário de pico, sendo que tem o dia inteiro para sair, ainda tem que reclamar de chamá-las de senhora. Sempre dava vontade de responder: ‘Tá bom, então véia do diabo!’, apesar de que ele é mesmo bem novo para ser chamado de senhor, só estava tentando imitar umas novelas de época.”

    Seguindo Antônio, entrou numa porta que ficava na parede esquerda do altar, entraram num corredor seguiram até uma porta e no fim chegaram numa salinha com uma cadeira e muitas estantes, todas com frascos de barro fechados com tampas, o padre pegou um desses frascos, tirou a tampa onde dava pra ver uma gosma azul.

    — Sente-se na cadeira meu filho.

    — Sim padre.

    Carlos ergueu sua calça novamente e mostrou a ferida.

    O padre examinou a ferida antes de dizer: — Pelo visto foi Jairo que te atacou, não é mesmo?

    — Como você sabia? 

    — O chicote dele possui duas gemas sendo uma delas a gema da podridão, essa gema tem a capacidade de piorar ferimentos com o tempo. É uma gema inútil que só serve para fazer os outros sofrerem. Mas não se preocupe que com esse remédio dá para tratar facilmente os ferimentos causados por ela.

    “Esse remédio pode fazer isso, parece uma gosma, será que também teria sido feita com gemas mágicas? Não parece com nenhum remédio de meu mundo e imagino que os remédios do Brasil colonial não eram assim também. Mas o que importa é que ela funciona!”

    O padre notou seu olhar fixado na pomada.

    — Tá curioso? Não se preocupe, não vou passar nada de estranho em você.

    O padre colocou os dedos no remédio e começou a passar na ferida. O que doía um pouco.

    — Isso é um remédio feito de água sob o efeito da gema da cura e ervas. Esmago bem as ervas, coloco água que misturo com uma colher, essa colher é um ferramenta mágica pois tem uma pequena gema da cura. Ao mexer com esta colher a água vira essa pasta que melhora os efeitos das ervas além de deixar do jeito certinho para passar como pomada.

    O padre falava isso enquanto passava a pomada.

    “Nossa da pra por gemas mágicas em qualquer coisa, será que daria pra por em uma arma de fogo também? Ou em um trator, em um carro, imagine as possibilidades, tecnologias mais gemas mágicas. Pena que nem todo mundo pode usar as gemas mágicas.”

    Enquanto se perdia em pensamentos, o tratamento logo terminou.

    — Prontinho, apenas tome cuidado que amanhã já vai estar bem melhor, mas da próxima vez venha mais cedo pra cá, antes de ficar nesse estado. Pois as gemas de cura não são onipotentes.

    Carlos se levantou da cadeira.

    — Sim padre, muito obrigado.

    Após agradecer saiu da salinha e da capela e foi andando o mais rápido que pode, porque não poderia se atrasar para trabalhar no canavial. Já era o suficiente ter que ficar sem café da manhã. Por sorte voltou a tempo para trabalhar no canavial.

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