Capítulo 9 - Dia de Descanso
Mais uma vez o sol nasceu no engenho e ao contrário dos outros dias, desta vez Carlos estava animado para ir trabalhar, pois conseguiu convencer o senhor do engenho a comprar armas no dia anterior ou seja, só teria que aguentar seus dias de escravo até a próxima visita do comerciante ambulante, que seria no mês seguinte. Claro, tudo dependerá se o ambulante conseguisse algumas armas e balas.
Animado comeu o café da manhã, se é que dava para chamar café da manhã, afinal nem tinha café, era apenas feijão e farinha de mandioca. Depois de comer foi direto para o canavial apenas para descobrir que não tinha ninguém indo para lá.
“Ué, porque ninguém mais está vindo pro canavial?”
Pedro que estava passando ali perto, viu Carlos perdido.
— O que você está fazendo? Quer trabalhar até no dia de descanso?
— Como assim? A gente tem dia de descanso?
— Mas é claro que tem, digo, pelo menos o pessoal que trabalha no canavial. Quem trabalha na casa-grande não tem descanso, o que é meu caso. Apenas passei por aqui, porque o seu Jorge pediu para eu repassar uma mensagem para o carpinteiro do engenho.
“Não acredito nisso. Uma folga? Eu não esperava por isso, nem sei o que fazer com o tempo livre, mas não vou reclamar.”
— Pelo seu sorriso já sei que você deve ter ficado animado, mas só porque é folga não quer dizer que estamos livres, hoje é dia de missa. Como a senhora Alice é muito religiosa, até convenceu o marido a fazer todo mundo ir, inclusive os escravos. Daqui a pouco o pessoal da casa-grande e o senhor do engenho vão também.
“Só porque queria ficar fazendo nada o dia todo. Isso me lembra da infância quando a gente ia à missa, meu pai era bem religioso e ia sempre na missa, mas não vou mais, acredito em Deus mas não no Deus que a igreja prega… De qualquer forma é melhor que trabalhar e o padre parece ser uma pessoa boa”
— Entendi, obrigado pelas informações.
───────◇───────◇───────
Não demorou muito para chegar na capela, pois lembrou do caminho depois da sua última visita. Chegando lá já estava um pessoal reunido, os escravos, os capatazes e a senhora do engenho junto de Tia Vera, a senhora do engenho tentava controlar a sua criança que estava correndo ao redor. Já o neto da Vera não estava em lugar nenhum.
“Tomara que o molequinho esteja roubando caju, preciso de algo a mais além de feijão e farinha de mandioca. Bem que podia roubar também uma picanha do senhor do engenho, torresmo, café, pão, chocolate…”
Enquanto pensava nessas coisas, quase babou mas se recompôs ao ver o senhor do engenho chegando junto com Jairo. Assim que chegou, todos entraram na capela. Infelizmente nem todo mundo poderia ficar sentado, então muitos tinham que ficar de pé, e no caso quem tinha que ficar de pé eram os escravos.
Carlos não prestou muita atenção à missa, que aos olhos dele parecia ser bem chata. Porém um dos sermões do padre acabou chamando sua atenção.
— Provérbios 25:21-22 “Se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber pois isso amontoará brasas em sua cabeça e por isso o Senhor te retribuirá”, não cabe a nós julgar quem pode ou não comer, mesmo a nossos inimigos devemos dar de comer, pois o único que pode julgar é Deus. E ele nós retribuirá por nossas ações, por isso em nosso dia de descanso peço que perdoemos nossos inimigos e damo-lhes de comer. Amém.
Todo mundo entendeu qual era a mensagem que o padre queria passar. E pequenos olhares foram direcionados para o senhor do engenho. As pessoas estavam até receosas em falar “amém” para o padre, mas uma pessoa no meio falou amém e aos poucos todos falaram também.
Jorge relutante falou “amém” mas estava vermelho que nem um pimentão.
“Esse padre não tem medo pelo visto, realmente é uma boa pessoa. Depois dessa, não tem como não tirar a máscara da Tassi. Pode até ser o dono destas terras, mas acho que nessa época a religião ainda tem peso, isso ou o padre não liga para a própria vida.”
Por sorte de Tassi, a esposa do senhor do engenho, era muito religiosa e levava a sério os sermões do padre, tanto que convenceu o marido a ouvir o padre. Para a surpresa de todos, fora da capela depois da missa, Jorge pegou a chave que estava em seu bolso e colocou no cadeado que ficava da máscara que ficava na nuca, com isso retirou a máscara.
Assim que Tassi ficou livre se virou para trás, olhou bem nos olhos de Jorge, com seus olhos cor de esmeralda e disse: — Apesar de você ser meu inimigo, eu lhe perdôo por suas ações.
Parecia impossível mas o velho conseguiu ficar mais vermelho ainda. Dava pra ver uma veia saltando da cabeça dele, mas não bateu em Tassi, não na frente da capela e do padre.
“Pelo visto não é só o padre que tem muita coragem… Mas não acredito que esse velho não fez nada contra ela, acho que a igreja deste mundo deve ter mais poder que a do meu mundo. Apesar de que ele ainda pode fazer algo depois, longe dos olhos de todos.”
Depois da comoção já era hora de começar a preparar a comida para o almoço, em dias de semana os escravos não podiam almoçar, mas no dia de descanso era diferente. Todos os escravos foram andando com calma para a senzala. Menos Tassi, que foi andando bem rápido para começar a preparar algo para comer, quando Carlos chegou na senzala ela já estava terminando de comer.
“Tenho que aproveitar que ela está livre agora para conversar, Pedro me disse que ela quem mais entende de gemas mágicas, então seria bom conversar para entender como elas funcionam, assim como para aprender mais deste mundo.”
Antes que Carlos pudesse falar algo. Tassi terminou o prato, chegou perto dele e falou baixinho:
— Então, qual o seu plano?
Surpreso com a questão e pensou por um momento antes de responder.
“Como assim, da onde tirou que tenho um plano? Aliás, até tenho, se é que se pode ser considerado um plano. Só planejo conseguir algumas armas e resolver nossa situação na base da bala. Mas se falar que tenho um plano vou acabar dando expectativas e não tenho certeza se vai dar certo. O plano depende só de mim e da sorte. Falar algo não vai me ajudar em nada, além disso parece que o plano que bolou na última escapada do engenho foi dedurado por alguém.”
— Que plano, não tenho plano nenhum. — Respondeu baixinho para não chamar atenção dos capatazes.
— Pelo discurso de ontem você não é o tipo que fica parado vendo as coisas acontecerem, você falava com muita certeza, parecia muito que você tinha um plano.
— Apenas tenho esperança e nada mais.
Tassi ficou muito irritada por dentro, mas não demonstrou isso por fora.
— E que tal assim, te falo como a gente escapou, quem usa gemas mágicas aqui, e porque não conseguimos escapar e você me fala seu plano. E quem sabe eu possa te ajudar.
“Ela sabe quem foi o dedo duro? Será que foi o Pedro mesmo, a forma como ela olhou para ele ontem parecia meio suspeita. Além disso, gostaria de ter essas informações mesmo, afinal se for lutar com uma arma, preciso no mínimo saber contra o que vou lutar. Afinal não sei nada sobre como a magia deste mundo funciona… Apesar de que talvez seja melhor manter tudo em segredo até a última hora, posso obter essas informações apenas observando e conversando com os outros. Porém não faz mal conversar um pouco mais.”
— Como vou saber que você vai me falar mesmo essas coisas? E como tem certeza quem foi o dedo duro?
— Sabia, você tem mesmo um plano!
“Putz, falei demais. Apesar de que parece ser de confiança, pelo menos não vejo alguém que foi tão torturada por aquele velho quanto ela, acabar ajudando ele. Acho que tudo bem falar um pouco.”
— Então qual é o plano?
“Apesar de que não posso simplesmente chegar e falar: ‘Então sou do Brasil no futuro, mas um futuro sem magia, e o que vocês chamam de artefatos do diabo não passam de objetos do meu mundo, e alguns deles são armas e acho que consigo usá-las” ela não iria acreditar muito, posso misturar um pouco de mentira e um pouco de verdade.”
— Responde logo.
Carlos respirou fundo, olhou para os lados e começou a falar baixinho, ela até chegou mais perto para ouvir melhor.
— Sou de uma terra bem distante onde a gente sabe como invocar artefatos do diabo. E sei como usar um tipo específico deles, se chama arma de fogo. Esta arma é bem letal e funciona a longa distância, dá para matar uma pessoa a uns 50 passos de distância. Se a pessoa souber usar a arma bem, consegue até matar uma pessoa de bem mais longe. Infelizmente este não é o meu caso, mas ainda acho que consigo matar facilmente uma pessoa que estiver perto. Além da arma preciso de balas, que seriam tipo as flechas da minha arma. Estas balas são bem pequenas mas com a arma são letais.
Tassi suspirou, e olhou para baixo decepcionada e disse baixinho:
— Vou te contar um segredo, já teve um escravo que já tentou atacar o senhor do engenho. Ele pegou uma pedra bem grande que achou no chão e tentou acertar na cabeça do senhor do engenho. Aquele homem era muito forte e tinha os braços bem fortes, mal pude ver a pedra sendo atirada em direção ao senhor do engenho, mas a pedra que lançou não faz nada. Porque invocou dois escudos em sua volta, um escudo de defesa, e um escudo de defesa divina! Ele esconde as gemas num colar que fica em sua camisa, por isso ninguém nunca notou que podia usar a gema da defesa e a gema da da defesa divina.
— Já fui pra guerra várias vezes e conheço bem como é difícil quebrar a defesa dessas gemas, isso que apenas encontrava pessoas que pudessem usar uma das gemas. Nunca encontrei alguém que pudesse usar as duas. A vida realmente é injusta, além dele já ter toda essa terra e todas nossas vidas em suas mãos, ainda nasceu com uma benção dessas.
“Então tem gente que pode usar mais de um tipo de gema. Aliás a própria Tassi pode não é mesmo, pelo menos lembro que o cajado que usou para fazer as canas de açúcar crescerem tinha duas gemas. Mas essa informação é útil, acabei nem pensando se ele poderia usar gemas mágicas. Imagine se tivesse sido pego de surpresa por isso, esqueço que estamos em outro mundo, então tenho que sempre ter essas gemas mágicas em mente.”
“Mas isso pode acabar com meus planos… Não, espera, pelo que me lembro quando vim aqui o senhor do engenho disse que iria sugar cada gota de mana da Tassi. O que significa que tem um limite de quanto poder mágico uma pessoa pode usar. Além disso, será que esse escudo conseguiria mesmo defender uma bala? Defender uma pedra é fácil, pelo menos a força de uma pedra nem se compara a força de uma bala. A Tassi deve estar achando que vou atirar algo com a força de uma flecha.”
— Por acaso existe limite de poder mágico que cada pessoa pode usar em um dia? E quanto mais dano faço no escudo, mas magia é usada para se defender? Aposto que deve consumir muito poder mágico usando dois escudos ao mesmo tempo.
Tassi ficou surpresa com a pergunta de Carlos.
— Tem um limite, e sim, quanto mais dano no escudo, mais magia consome. Mas saiba que a quantidade de magia que se pode usar no dia varia de pessoa para pessoa. Com a prática dá para aumentar a quantidade de magia que você pode usar, como não pratica muito então é provável que não tenha muita magia. Porém, nunca subestime a quantidade que uma pessoa tem de magia, isto pode levar ao seu fim, já vi inúmeras companheiras serem mortas no campo de batalha por subestimar um oponente. Algumas pessoas nascem com uma quantidade de mana enorme, isto pode muito bem ser o caso do senhor do engenho.
— Além disso, não é só com ele que você tem que se preocupar. Pois até você colocar sua outra “bala” o capataz Jairo já vai ter te derrubado. Ele pode usar usar a gema do vento e da podridão. A gema da podridão não é um problema imediato mas já a gema do vento faz com o chicote se movimente mais rápido e com mais força. E pior, o próprio estalo do chicote dele consegue te deixar surdo. A nossa primeira escapada, só foi possível porque ele estava fora do engenho.
“Então aquele verme pode usar mesmo uma gema mágica tão forte assim! Só aparece notícia ruim. Mas espera, vai ter que estar perto de mim para usar o chicote. Posso atirar de longe e um tiro é bem mais rápido que um chicote. Pelo menos consigo matá-lo. Mesmo que a defesa do velho seja impenetrável, sem seus capatazes o que pode fazer? Nada!”
— Entendo. Mas isso não será um problema, pois não preciso de tempo para colocar outra bala, posso atirar várias delas de uma vez, mais rápido que um chicote, e mais veloz e forte que qualquer flecha que você já viu na vida.
Tassi balançava a cabeça enquanto pensava: “Que idiotice esse homem está falando, isso é impossível!”
— Você nunca foi a guerra não é mesmo, você não sabe o que fala!
Carlos deu leve sorriso malicioso enquanto falava — Apenas espera e verá. Mês que vem quando o comerciante vir que, matarei todos os capatazes daqui, e o senhor do engenho não poderá prender nem matar ninguém sem seus capatazes, só preciso saber se mais alguém usa alguma gema mágica. Também seria útil saber porque seu plano deu errado.
Assim que essas palavras saíram de sua boca, imediatamente se arrependeu de ter dito elas, “Eu acabei me gabando demais, me incomodei com sua descrença, mas é que ela não entende o poder de uma arma. Realmente a magia deste mundo é incrível, mas uma flecha de fogo e um super chicote não são nada se comparado a uma arma.”
Tassi suspirou não escondendo sua decepção, a última fala de Carlos apenas cementou ainda mais a sua idéia de que não passava de um ignorante.
“Ele não sabe do que fala. Mas no dia que o ambulante chegar estarei preparada para salvar ele da morte. Afinal, está aqui por minha causa, então tenho que pelo menos salva-lo da própria idiotice. Estou francamente decepcionada, depois das falas dele de ontem, achei que teria um excelente plano para sair daqui, não achei que tinha apenas depositado suas esperanças em umas armas. Realmente existem armas poderosas, mas nenhuma arma vence uma guerra, quem vencem as guerras são os guerreiros e guerreiras.”
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.