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    Assim que voltamos da queda d’água, ordenei que desmontassem o acampamento. Precisávamos nos aproximar da cadeia de montanhas. A ideia de Germano, seguir o curso do rio, ainda ressoava na minha cabeça. Fazia sentido. Um caminho mais previsível, abastecido por água, com chances maiores de levar a um ponto relevante. Talvez até à origem da anomalia que viemos investigar.
     

    Quando tudo esteve pronto, partimos em direção à cachoeira. Já havíamos feito aquele trajeto algumas vezes, então era um trecho familiar, seguro o bastante.
     

    Ao nos aproximarmos, pedi aos dois mateiros que procurassem um caminho de subida pela encosta. A pedra era inclinada e escorregadia, mas não havia muita vegetação ou obstáculos em volta, o que facilitava a procura por um trajeto viável.
     

    Depois de algum tempo, um deles apontou para o alto, indicando uma trilha estreita entre as pedras. Seguimos a sugestão e começamos a subida. Evitei usar voo para não destacar a diferença entre mim e os demais. Às vezes, andar ao lado deles, no suor, no esforço, no passo comum, valia mais que qualquer ordem direta.
     

    Chegamos ao topo juntos, ofegantes, mas em bom ritmo. O Rosto de Cass brilhava de suor. Alissande, apesar do esforço sorria, Marreta bufava, mesmo sendo meio orc, era quem mais levava peso consigo. Pandora o incentivava, dando-lhe tapinhas nos ombros.
     

    Dali, a vista era generosa. A floresta se estendia em todas as direções, um mar verde salpicado de sombras mais densas. A margem do rio se alargava mais abaixo, serpenteando entre as árvores. As curvas eram muitas, mas o curso se mantinha constante, como um fio prateado levando direto à base da cordilheira.

    Os carregadores da Casa Argos, chegaram ao topo exaustos, arfando sob o peso da carga. Os equipamentos deles eram volumosos, caixas metálicas, contêineres protegidos por runas e apetrechos que me pareciam apenas excesso de carga. Dei ordem para que parássemos ali mesmo.
     

    — Vamos fazer o intervalo agora. — anunciei. — Aproveitem para recuperar o fôlego. Almoçamos aqui antes de seguir. Ouvi o baque de seus corpos sentando pesadamente no chão.
     

    Era um bom lugar para isso. A brisa soprava mais fresca no alto e, mesmo em silêncio, havia algo naquele ponto que parecia… observar.
     

    O almoço foi simples, mas reconfortante. Pão, carne seca, raízes assadas por Germano e um caldo espesso preparado com as provisões dos homens de Calmon. Comemos sentados em pequenos grupos, cada um à sua sombra, tentando aliviar o peso do calor e da subida.
     

    O som da queda-d’água era constante ao fundo, um rugido distante, como o sussurro de uma fera adormecida.
     

    Por um tempo, ninguém falou sobre a missão, a floresta ou a ameaça invisível que nos cercava. Apenas comeram. Mastigar, engolir, respirar. Pequenos gestos de humanidade que afastavam, mesmo que por minutos, o desconforto da tensão.
     

    Eu observava. Às vezes sem querer. Os padrões de quem se senta junto, quem evita contato visual, quem vigia com a comida ainda na mão. Niana mantinha a atenção no horizonte, vira e mexe, cheirava o ar, franzindo o nariz mesmo enquanto comia. Karel comia rápido demais, como se não soubesse a hora da próxima refeição. Pandora conversava com Germano em voz baixa, mas com gestos largos. E todos estavam alertas, ainda que tentando parecer em descanso.
     

    Foi nesse clima de pausa que Pandora se aproximou de mim. Trazia um odre nas mãos, os olhos semicerrados sob o brilho do sol.
     

    — Lior… — Ela franziu a testa, inclinando o rosto, como se procurasse algo em mim. — Você tá com a testa suja. Um pó… azulado.
     

    Antes que eu pudesse reagir, ela estendeu a mão e passou o dedo sobre minha pele, bem entre as sobrancelhas.
     

    Olhei para o dedo dela. E lá estava: uma poeira muito fina, quase translúcida, mas com um tom azulado brilhante quando refletido pela luz.
     

    Estiquei a mão e toquei meu próprio rosto. A textura era seca, quase imperceptível.
     

    Virei o olhar para os outros.
     

    — Esperem. — pedi, em voz firme.
     

    Aproximei-me de Niana, toquei seu ombro. Havia o mesmo pó sobre as orelhas e o pescoço dela, quase invisível contra o pelo dela.
     

    Depois examinei meu braço. O brilho tênue também estava lá, sobre a manga e parte da pele exposta.
     

    — Isso está em todos nós. — falei, por fim.
     

    — O que é isso? — perguntou Germano, se aproximando com uma expressão preocupada.
     

    Não respondi de imediato. Fui até a borda do platô e observei a queda d’água mais abaixo, a névoa fina que se formava com a colisão da água. Por um instante, considerei a possibilidade de ser um fenômeno natural. Um resíduo mineral? Algum pólen local?
     

    Mas então virei meu olhar para o topo da cordilheira.
     

    Lá em cima, pequenas explosões tingiam a fumaça de um vermelho incandescente. Atividade vulcânica, sem dúvida. O brilho era intermitente, mas constante, um lembrete de que a ilha estava longe de ser estável.
     

    Talvez o pó azul viesse dali. Fuligem misturada a minerais voláteis. Era difícil saber. Cada ilha envolta pela névoa seguia suas próprias regras naturais.
     

    Esse lugar não era apenas selvagem. Era estranho.
     

    — Pode ser deposição vulcânica… — murmurei. — Honestamente, não sei.
     

    As cabeças se assentiram, alguns visivelmente alarmados. Mas o almoço seguiu. Silencioso, depois disso. Como se algo houvesse se instalado entre nós, invisível, suspenso, leve como pó, mas impossível de ignorar.
     

    Quando terminamos, recolhemos tudo e seguimos pelo topo da encosta, contornando o fluxo do rio em direção à cordilheira.
     

    Ninguém falou sobre o pó azulado depois disso. Mas todos olhavam para o chão com mais frequência. E todos, até mesmo os mais rudes, passavam as mãos nos braços, no rosto, tentando sentir se ainda estavam cobertos por ele.

    Montamos acampamento em um trecho elevado, de onde era possível observar o vale e o rio em parte do percurso. A floresta era menos densa ali, e as árvores cresciam espaçadas, permitindo alguma visibilidade. Não era o lugar mais confortável, mas era defensável. E naquele momento, isso era o que importava.
     

    Distribuí as funções sem hesitar. Karel e um dos homens de Calmon fariam a ronda externa. Germano, Niana e os dois mateiros inspecionariam o entorno mais imediato. Em seguida, chamei Gus e Milena.
     

    — Vamos erguer as linhas de proteção. Vocês me viram fazendo isso ontem. Repliquem o processo.
     

    Eles assentiram em silêncio. Permaneci observando enquanto trabalhavam, atento a cada gesto.
     

    Quando passaram da metade do círculo, já estava satisfeito com a estrutura do feitiço. Dei alguns passos para trás e me afastei, deixando-os terminar sozinhos.
     

    Agora era minha vez de cuidar do que não se via.
     

    Fui até a lateral do acampamento e comecei os preparativos para erguer as defesas contra intrusões mentais, proteção contra sonhos invadidos. Algo estava me deixando preocupado.
     

    Eu não confiava mais na floresta. Não depois daquele pó azulado.
     

    Quando terminei a barreira, a noite já havia caído. Pequenas fogueiras estavam acesas. O jantar era modesto: carne assada que tinja sobrado da ave abatida, batatas e água fervida. Os homens falavam baixo. Os sons da floresta pareciam distantes, abafados. Podíamos ouvir o som do rio, mas de forma contida, como se esperasse alguma coisa acontecer.
     

    — É melhor começarmos a dormir em turnos. — minha voz saiu baixa, mas firme. — Se alguém sonhar… qualquer coisa fora do comum, me acordem. Imediatamente.
     

    Pandora trocou um olhar tenso com Niana.
     

    — Você acha que aquele pó de hoje pode ter… sido algum tipo de contaminação? — perguntou ela, quase num sussurro.
     

    — Não sei — respondi, passando a mão na nuca. — Mas não quero surpresas. Podem ser vetores psíquicos. Pontes de ligação. Talvez já estivessem conosco ontem e só agora percebemos. Esses sonhos compartilhados… são muito suspeitos.
     

    Ela assentiu, preocupada. Os olhos buscavam a escuridão entre as árvores, como se esperasse encontrar alguma resposta ali.
     

    — Algum tipo de caminhantes de sonhos? — arriscou.
     

    — Talvez. Ou algo pior. Não vamos assumir nada. Mas vamos agir como se estivéssemos sendo sondados… e observados.
     

    A noite caiu, trazendo um silêncio espesso, pesado. Um a um, os membros do grupo se deitaram, cada qual mergulhando no próprio abismo. Dessa vez, sem sonhos compartilhados.

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