Capítulo 211: O acampamento
Criei uma barreira em volta da minha cabeça antes de me aproximar do que restava do acampamento. Era um cuidado simples, instintivo, eu já vira coisas demais para confiar no que os olhos mostram à distância.
A cena diante de mim era… errada. Estranha de um jeito que o cérebro hesita em processar de imediato. Me fez parar por um segundo, com a pele do rosto repuxando, como se algo dentro de mim recuasse.
Havia cinco pessoas ali. Estavam de pé, imóveis sob o sol da tarde, como se algum impulso as tivesse congelado no tempo. Mas não era apenas a rigidez dos corpos. Era o que havia sobre eles. Protuberâncias cobriam suas peles, crescimentos estranhos, vivos, como cracas marinhas, pulsando em tons vibrantes de azul, roxo, vermelho e amarelo. A composição daquilo não era exatamente orgânica… e ao mesmo tempo, era. Como se a própria carne tivesse cedido espaço a algo novo.
Dos olhos de cada um brotavam caules finos, quase translúcidos, que se estendiam por dois metros até se abrirem no topo em estruturas arredondadas. Pareciam flores ocas, estranhas e silenciosas, soltando uma névoa constante de esporos azulados. Um vapor suave e traiçoeiro. Era dali que vinha o pó. Uma das perguntas, pelo menos, estava respondida.
Projetei um pulso de mana, explorando.
As figuras não reagiram.
Nenhum sinal de vida. Nenhuma resistência. O mesmo vazio sem alma que senti ao tocar os esporos flutuantes. Não era morte no sentido comum, era uma ausência estranha. Um vácuo preenchido por algo que não devia estar ali.
Mas havia um detalhe que me incomodava. Por baixo da superfície, algo se estendia. As pernas e pés das criaturas estavam parcialmente enterrados, e dele saíam raízes grossas e ramificadas, que mergulhavam solo adentro. Me concentrei nelas. A mana fluía com força por essas raízes, como sangue em veias muito antigas. Mas ela se dissipava antes de alcançar a superfície, como se fosse desviada. Sugada.
Abaixei os olhos. Senti meu estômago revirar.
Aquilo estava se alimentando de todo aquele mana.
Aprofundei meus sentidos, buscando a origem do fluxo. E ali estava: um veio de pedras de mana sob o solo, inativo, talvez há séculos. As raízes desciam direto até ele, como se o que quer que tivesse transformado aquelas pessoas soubesse exatamente o que queria.
Então, um movimento sutil.
Um estremecer, quase imperceptível, mas nítido para mim. A criatura mais próxima mexeu a cabeça, ou algo que um dia foi cabeça.
— Urgh — gemeu, como se um pedaço de humanidade ainda restasse lá dentro.
Dei um passo atrás, em silêncio. Ouvi atrás de mim os homens se moverem, armas se levantando. Levantei a mão, indicando que não atirassem. Ainda não.
O som veio logo depois. Rasgos secos. Estalos. Madeira se partindo. A coisa se contorcia, tentando se soltar das raízes que a prendiam ao solo. Cada movimento rompia mais um elo da conexão.
Eu não podia permitir aquilo.
Estalei os dedos.
O fogo respondeu de imediato, alimentado pelo ar seco e pelo impulso da mana. Tomou o acampamento com voracidade. E o mais estranho, talvez o mais aterrorizante, foi que as chamas não pareciam atingir carne. Elas se espalhavam como se queimassem madeira velha. Como se o que estava ali já não fosse mais humano há muito tempo.
As figuras gritaram.
Não era dor. Não era desespero. Era outra coisa. Um som agudo, distorcido, como metal retorcido por dentro da garganta. Um eco de alguma inteligência distorcida.
Em poucos segundos, tudo se transformou em carvão. Restaram apenas manchas negras, formas irreconhecíveis e o silêncio pesado que acompanha a certeza de que se fez o certo… mesmo sem entender tudo.
O grupo se aproximou logo depois. Vasculhamos os arredores em silêncio. Não havia nada útil ali. Nenhuma anotação. Nenhum equipamento. Nem mesmo restos pessoais. Só desolação.
E uma sensação crescente, incômoda, de que havíamos tocado em algo muito maior do que parecia à primeira vista.
O ânimo do grupo estava estranho. Silencioso. Denso. E era compreensível. O que tínhamos presenciado era algo que mexia com qualquer um. Mesmo com os corpos irreconhecíveis, deformados por aquela infestação de cracas coloridas e esporos, havia sempre a dúvida incômoda: seriam conhecidos? Todos homens de uma mesma Casa que encontraram um destino terrível.
Talvez fosse melhor que estivessem irreconhecíveis. Ou talvez pior. Não sei dizer.
Dei a sugestão de seguirmos mais adiante. Informei apenas a Calmon, em voz baixa, que abaixo da área onde havíamos parado existia um veio profundo de pedras de mana. Senti as raízes drenando energia de lá, não queria que montássemos acampamento em cima disso. Soava errado, como desrespeitar um cemitério.
Mesmo assim, não havia lugar melhor. Montamos acampamento perto dali, um pouco afastados da cena macabra. Esgotei quase toda a minha reserva de mana ao erguer uma redoma ao nosso redor, uma versão expandida do meu campo de força, pensada para proteger um perímetro maior. Não era o uso original do feitiço, e por isso o gasto era absurdo. Mas naquele momento, era o que tínhamos. E isso precisava bastar.
Depois disso, ensinei a Gus e Milena como criar a proteção mental. Um encantamento simples, mas vital, diante do que vimos. Observei enquanto executavam o feitiço, passo a passo, e confesso que me surpreendi. Ambos eram realmente talentosos. Disciplinados. Foi reconfortante ver aquilo.
Mais tarde, vieram se sentar comigo ao redor da fogueira. Pandora, Marreta, Karel, Germano, Niana, Cris, Milena e Gus. Calmon também se juntou a nós, trazendo dois de seus homens. Dividimos o calor e o silêncio.
— Amanhã quero fazer uma varredura — disse, quando já estávamos mais aquecidos. — Um exame completo. Agora que sei o que procurar, quero me certificar de que ninguém aqui está infectado por aquilo.
Calmon se inclinou na direção do fogo. Sua expressão era tensa.
— O que exatamente é “aquilo”, Lior?
— Ainda não sei — respondi. — Algum tipo de infecção. Ou parasita. Ou simbiose… Sinceramente, nunca vi nada parecido. E isso me preocupa.
Observei cada rosto à luz do fogo, procurando sinais estranhos, alterações na pele, nos olhos, qualquer indício. Nada, até o momento.
— O que vamos fazer? — perguntou Karel. — Tem algo aqui que… não sei explicar. É como se até a névoa evitasse esse lugar.
Olhei para ela por um momento. Muita gente não levava a sério o que Karel dizia, suas intuições, seus comentários quase místicos. Mas eu aprendi a prestar atenção. Nem sempre ela estava errada. Seus conhecimentos me intrigavam.
— Ainda seguimos com o plano — respondi. — Vamos ficar aqui mais um dia. Precisamos conhecer melhor esse inimigo. Entender de onde veio, como se manifesta. Só então decidiremos se avançamos ou recuamos.
Eles assentiram, um a um. Ninguém parecia confortável, mas entendiam a lógica. Eu também não estava confortável. Muito menos tranquilo.
— Esse tempo vai me permitir estudar o que enfrentamos. Descobrir como nos protegermos. Porque agora… — parei por um instante, escolhendo bem as palavras — …agora eu não faço a menor ideia de como derrotar algo que nem consigo nomear.
O silêncio que veio depois dessa frase foi longo. O fogo crepitava. E cada um, eu imaginava, lutava à sua maneira contra o medo de estar cercado por algo invisível, incompreensível e possivelmente fatal.
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