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    Deixei para trás a cordilheira, voando com todos dentro do campo de força, praticamente refazendo passo a passo o caminho que havíamos trilhado na ida. O vento oferecia uma resistência inesperada, cada metro percorrido arrancava mais força do meu corpo. Sentia o peso de cada vida que carregava e o peso ainda maior da incerteza, estávamos indo para longe do perigo… ou apenas para um abismo mais profundo?

    Quando alcançamos o lago, a superfície imóvel refletia o céu cinzento como um espelho de metal. Era o mesmo lago onde eu tinha queimado o antigo acampamento. Ali, uma ideia audaciosa me atravessou a mente, tão súbita quanto um raio. Se conseguisse ancorar a plataforma improvisada bem no centro, talvez tivéssemos uma chance real de descanso.

    Essa lembrança veio de um detalhe quase esquecido: alguns dos homens, haviam comentado ter visto peixes nadando ali, quando passamos por lá na primeira vez  Era um contraste gritante com o resto da paisagem. Desde o encontro com aquelas aves, ainda na floresta, nenhum outro animal cruzara nosso caminho.

    Isso me levou a uma conclusão que soava lógica, mas não menos arriscada: os esporos não funcionavam debaixo d’água. Se a fauna aquática estava viva, talvez estivéssemos seguros sobre o lago, pelo menos por um tempo.

    Com um último esforço, pousei no centro exato. Meu corpo tremia, os músculos ardiam e minha visão oscilava. Concentrei-me, fazendo o campo de força baixar em pontos específicos para formar pilares invisíveis que sustentariam a estrutura. Gravei runas de alimentação automática de mana ambiente, para que a redoma permanecesse firme enquanto não fosse atacada.

    Quando ergui os olhos, Alissande e Cris me olhavam como se estivessem diante de um condenado. Aqueles olhares me atingiram mais do que qualquer ferimento. Tentei esboçar um sorriso para tranquilizá-las, mas minha tentativa foi patética. Estava à beira do colapso. Sangue escorria discretamente de quase todos os meus orifícios, um sintoma claro de que eu havia ultrapassado os limites.

    — Lior… — murmurou minha meio-irmã, sua voz trêmula, no instante em que meu corpo cedeu. Tentei resistir mais um pouco, mas naquele estado, não tinha o que eu pudesse fazer.

    Todos à minha volta permaneciam inconscientes. Eu já tinha feito todo o trabalho de cura possível no momento. Não restava nada para dar. Minha mente ardia em febre, meus ossos pareciam vibrar com dor, e um zumbido constante ameaçava engolir meus sentidos. Tentei me erguer, mas foi como empurrar uma muralha com os ombros. A escuridão me tomou antes que pudesse protestar.

    Quando acordei, a noite já havia caído. O céu do lago era negro, salpicado de estrelas pálidas, e o ar estava pesado de umidade. Uma toalha úmida repousava sobre minha testa. Ao virar a cabeça, vi Niana sentada ao meu lado, atenta.

    — Você estava com febre — explicou ela, mantendo o tom baixo. — Delirando. Assustou os homens quando começaram a acordar.

    Meus olhos percorreram o abrigo improvisado. Além de Niana, percebi que metade dos homens de Calmon estava de pé, alguns conversando baixinho, outros simplesmente observando a água. Do nosso grupo, Marreta, Karel e Gus estavam acordados. O restante… dormia. Ou pelo menos era o que parecia.

    — Como estão todos? — perguntei, e minha voz saiu fraca, quase falhando.

    — Bem… mais ou menos — respondeu Niana, séria. — Dos homens da Casa Argos, metade ainda não abriu os olhos. E… — ela fez um gesto com o queixo, indicando nosso pessoal — tenho más notícias. Milena e Cassiopeia continuam desacordadas. Nenhuma reação até agora.

    Engoli em seco. Um peso gelado me apertou o estômago. Será que eu seria o responsável por deixar sequelas permanentes naquelas pessoas? Milena e minha irmã, que tinha sobrevivido a tantos atentados… agora estava vulnerável por causa de minhas decisões? Não queria acreditar que o destino era tão irônico e cruel.

    Meu corpo ainda estava em frangalhos. Cada articulação doía, meu sol de mana latejava num ritmo irregular, como se fosse explodir a qualquer instante. Eu sabia que, se me esforçasse agora, poderia danificar meu próprio corpo de forma irreversível. A última vez que me sentira tão frágil havia sido durante minha captura por Drael… ou no dia em que Joana e Victor morreram na invasão.

    Estávamos encurralados. Fugir com tantos feridos não era uma opção. Nossa melhor chance era esperar que o isolamento no centro do lago nos desse tempo para nos recuperar.

    — Droga… — murmurei, olhando ao redor, impotente. Eu não tinha sequer analisado os danos que meu próprio cérebro havia sofrido, quanto mais pensar em uma solução para todos.

    A única pessoa que eu tinha certeza estar em perfeitas condições era Alissande, já que fora a primeira a ter o esporo removido.

    E foi então que meus olhos caíram sobre Marreta. Sua constituição robusta e recuperação absurda de orc… aquilo poderia ser a chave que eu buscava.

    — É isso… — murmurei, já me levantando com esforço. — Marreta, venha aqui.

    Minha voz ecoou mais alta do que eu pretendia, assustando alguns ao redor. Gus, percebendo que eu estava acordado, se aproximou também.

    — Lior, dê uma olhada na estrutura do campo — disse ele, quase com orgulho. — Fiz algumas alterações. O pessoal precisava… usar o banheiro. E também pescar. Então abri dois buracos no chão.

    Meu primeiro impulso foi explodir. Alterar runas de sustentação era um risco enorme, ainda mais sobre um lago. Mas contive a irritação. Gus havia agido para resolver problemas imediatos e essenciais.

    Me concentrei na trama de runas. Felizmente, ele fora cauteloso. Os dois buracos estavam posicionados de forma segura, com modificações mínimas e precisas. A estrutura principal não fora comprometida. Um resquício de orgulho surgiu no meio da exaustão.

    — Fez bem, Gus. Cuidado exemplar. Parabéns.

    O instrutor imperial abriu um sorriso de satisfação.

    — E me diga, Lior… como fez tudo isso? — apontou para a redoma que nos protegia.

    — Depois explico — respondi, voltando o foco para o que importava. — Agora preciso cuidar de algo mais urgente: a saúde de todos.

    Marreta já estava ao meu lado, como um bloco de granito vivo.

    — Venha. Desculpe, amigo… talvez seja incômodo, mas preciso analisar você a fundo.

    Ele olhou para os que ainda estavam desacordados e assentiu sem hesitar.

    — É claro, Lior.

    Coloquei as mãos sobre suas costas largas e respirei fundo. Iria infundir minha mana nele até que transbordasse, vasculhando cada detalhe de seu corpo, revisitando mentalmente as cicatrizes e ferimentos que os esporos haviam deixado. Eu precisava entender tudo, cada sutura, cada resposta natural de regeneração. Aquilo poderia ser nossa salvação.

    Após alguns minutos de intensa concentração, senti um calor familiar no peito e, quase sem perceber, um sorriso se formou nos meus lábios. Eu finalmente tinha encontrado um ponto de partida para tratar os outros. A técnica era arriscada e exigia precisão absoluta, mas funcionaria, desde que os ferimentos não tivessem se aprofundado demais. Se fossem extensos demais, não haveria nada que eu pudesse fazer, e essa possibilidade me rondava como uma sombra insistente.

    Respirei fundo, deixando escapar um suspiro pesado que carregava um alívio tímido, contido, misturado à tensão que não me abandonava. Estava longe de ser o fim do problema, mas pelo menos não estávamos mais totalmente no escuro.

    Levantei-me devagar, sentindo o peso nos ombros e a rigidez nos músculos. Esfreguei uma mão na outra, como quem aquece não só os dedos, mas também a própria determinação. Olhei ao redor, tomando consciência do silêncio denso que nos cercava. Então, mesmo sendo noite, deixei que minha voz cortasse o ar.

    — É hora de começar.

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