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    Comecei pelos homens de Calmon. Mais precisamente por ele próprio. Afinal, era o mínimo que eu podia fazer, tinham sido eles os que mais haviam se exposto à fúria implacável dos esporos que se abriram. À medida que avançava no trabalho, percebia lesões cerebrais assustadoras em alguns, como se parte da própria essência deles tivesse sido corroída de dentro para fora.

    Quando finalmente terminei, estava exausto. A pressão mental dos últimos dias tinha se acumulado como um peso constante sobre minha cabeça, a ponto que pensar se tornara um ato doloroso. Meu corpo inteiro protestava contra cada movimento, e minha mana oscilava, instável. Apesar de todo o empenho, quatro dos homens de Calmon não mostravam qualquer sinal de melhora. O coração ainda batia, mas as pupilas estavam vazias, inertes, indiferentes a qualquer estímulo. Era como se estivessem ali… e ao mesmo tempo não estivessem.

    Calmon percebeu meu semblante carregado. Sem cerimônia, se aproximou e me deu dois tapas firmes nos ombros.

    — Não fique assim. Se não fosse pelos seus esforços… — fez um gesto largo com a mão, como se abrisse um leque no ar — todos nós estaríamos mortos a essa altura. Ou pior, vivendo uma não-vida, como recipientes para esses malditos cogumelos.

    Assenti, mais para animá-lo do que a mim mesmo. A culpa, no entanto, não se afastava. Cassiopeia e André, deitados e ainda inconscientes, eram lembranças dolorosas de que eu não tinha agido a tempo. O peso da responsabilidade se agarrava às minhas costas como uma corrente fria.

    Era hora de cuidar dos meus. Comecei por Cassiopeia. Usei o conhecimento arrancado das memórias de Mahteal, as observações sobre o corpo resistente de Marreta e as lições aprendidas nas tentativas com os homens de Calmon. Examinei cada lesão com cuidado, infundindo mana para estimular glândulas e células que reconstruíam tecidos, enquanto aplicava magia de cura em paralelo. Uma vez que o corpo estivesse restaurado, o restante dependeria dela.

    Repassei o procedimento em André, Pandora, Alissande, Karel, Germano… todos, enfim, até mesmo em Marreta, apesar de sua resistência natural. Quando já estava quase terminando, vi Cassiopeia esboçar os primeiros sinais de consciência. Um peso saiu do meu peito. Deixei que se recuperasse no próprio ritmo e me afastei para descansar. Eu também precisava reparar meu corpo antes que colapsasse de vez.

    Do outro lado da redoma, Cris ajudava a organizar os poucos homens ativos. Alguns haviam pescado peixes, que Gus examinava com cuidado, certificando-se de que não estavam contaminados. Outros reforçavam o que agora chamávamos de acampamento, mas que, pela quantidade de reforços e improvisos, mais parecia uma fortaleza flutuante. O medo de sair da proteção mágica era palpável.

    Aproximei-me de Cris, intrigado. Ele era o único que não havia sido infectado. Se eu descobrisse o motivo, talvez pudesse replicar sua imunidade.

    — Está se sentindo bem? — perguntei.

    — Estou. Chateado por tudo que aconteceu, mas bem. A situação podia ter sido muito pior. Você descobriu a tempo.

    Eu não concordava. Não no fundo.

    — Quero entender por que você é o único imune. — falei sem rodeios. — Ou você sabia e se protegeu de propósito… o que eu não sei se conseguiria perdoar… ou há algo em você que os esporos não conseguem tocar.

    Ele baixou os olhos. Não era culpa o que vi ali, mas vergonha.

    — Eu não sabia. É que… tenho sangue de elfo do gelo. Minha mãe era uma. Talvez tenha sido isso, não seria a primeira vez.

    Levantou a mão e formou uma esfera de gelo pura e límpida. Mesmo sendo guerreiro, possuía magia — lembrei-me de Nix e Niana, guerreiras com dons mágicos raciais.

    — Posso examinar você? — perguntei.
    Ele assentiu.

    Ao mergulhar minha mana em seu corpo, senti imediatamente a diferença: seu fluxo era frio, cristalino, impregnado com as propriedades do gelo. Sua energia parecia converter-se automaticamente para essa natureza, como uma segunda pele interna. E ali, no cérebro, encontrei um caroço de esporo, morto, congelado. Seu próprio corpo o havia neutralizado antes que pudesse se expandir.

    — Obrigado. — murmurei.

    Talvez eu pudesse replicar esse efeito, modificando a natureza da minha própria mana. Poderia ensinar a Gus, Milena, Germano e outros que dominassem seus sóis de mana. Mas Calmon, seus homens… e até Marreta… esses não poderiam seguir o mesmo caminho. Precisava de outra solução.

    Enquanto ponderava, dividi minha atenção. Uma parte da mente buscava respostas, traçava possibilidades. A outra trabalhava silenciosamente, reparando meu corpo, tecido por tecido.

    Foi nesse estado de distração que senti dois braços me envolverem por trás. O abraço era firme, carregado de gratidão. Reconheci o calor: minha irmã. Retribuí o gesto, mesmo que a culpa ainda me perfurasse por tê-la colocado, junto com todos os outros, em perigo.
    Era o padrão que me seguia. Eu sempre colocava os outros em perigo. Fora assim com Selune, com Claire… e algo me dizia que não seria a última vez.

    Pandora se aproximou, sorrindo.

    — É a segunda vez que salva minha vida, Lior. Lembra como agradeci da primeira vez?

    Meu coração deu um salto. Lembrava. Muito bem. Era capaz de lembrar do gosto de seus lábios. Olhei de relance para Niana e senti o calor subir ao rosto. Conhecia o ciúme que Nix nutria por Pandora. Ultimamente eu estava sendo considerado um mulherengo… mesmo essa sendo uma impressão totalmente equivocada.

    Assim que me afastei de Cass, caminhei até a borda do campo que nos mantinha protegidos. O ar parecia mais pesado ali, como se a própria redoma vibrasse em resposta à minha aproximação. Eu precisava realizar alguns testes, experiências arriscadas, mas inevitáveis. No fim das contas, apenas eu poderia assumir o peso desse risco.

    — Vamos ver no que isso dá… — murmurei para mim mesmo, sentindo a tensão percorrer meu corpo.

    Respirei fundo, e então me ergui no ar, atravessando a barreira de proteção. A sensação foi imediata e quase sufocante: uma onda invisível me atingiu, impregnada de partículas hostis. O manto de segurança ficou para trás, e eu estava novamente entregue àquele ambiente saturado.

    Meus sentidos se expandiram de forma quase dolorosa. A mana me guiava, revelando cada detalhe oculto. O espaço ao redor estava saturado de esporos, incontáveis, suspensos no ar como poeira viva. Bastou eu surgir além da barreira para sentir sua reação. Eles se moveram lentamente em minha direção, como se reconhecessem minha presença, atraídos por algo que não compreendiam, mas desejavam.

    Cerrei os dentes e me concentrei. Ajustei o fluxo do meu núcleo, alterando sua frequência, obrigando a mana em meu sol interior a ressoar em outro tom. O calor pulsante se transformou em frio cortante, assumindo a natureza do gelo. Queria ver como aqueles organismos reagiriam à mudança, se recuariam, se morreriam, ou se adaptariam como uma praga teimosa que encontra sempre uma brecha.

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