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    Quando o Charks estava prestes a colocar a mão em um dos fios do meu cabelo, senti uma mão me tocar. A mão do livramento. Rapidamente, sumi da sua vista e me vi na sala do orfanato, encontrando o corpo do Nikolas naquela mesa de operações sem rastros de loiça, ainda sendo velado por aquelas duas médicas.

    Coloquei a mão no peito, dando um suspiro de alívio. Meredith estava sentada em uma das cadeiras com a cabeça curvada como se estivesse pensando na vida, enquanto Zernen não estava ali. Mas sua voz denunciou sua presença lá fora, sua e a do seu cachorro.

    Sinceramente. Uma pequena risada saiu dos meus lábios. Nem parecia que há pouco tempo estávamos em apuros. Agora ele estava brincando com o seu cachorro como se fosse a coisa mais natural do mundo.

    — Pelo visto, vocês tiveram um grande trabalho…

    — Nem me fale, quase fui pego. Mas o bom é que conseguimos. — Tratei de retirar a sacola que estava nas minhas costas e a pousei no chão, atraindo os olhos de Theresa que ganharam um brilho cristalino.

    — Perfeito!

    Ela se aproximou, pegando em uma das pedras.

    — O Gaia vai gostar imenso.

    — Só podia ser você, Theresa… — Dei uma pequena risada. — Sempre pensando no Gaia…

    Acho que a ficha acabou caindo agora e eu não havia percebido, que na verdade, Gaia não era mais meu. Agora ele tinha uma nova dona, a Theresa.

    Sendo sincero, ambos combinam. Ambos construíram laços juntos durante essa nossa caminhada da cidade capital de Gracia até a atual cidade, Nova Sola, no centro do Reino.

    Me limitei a dar mais um sorriso de gratidão, sem expressar em palavras o quão estou agradecido por ela estar cuidando do Gaia para mim. Isso me lembrou de que eu não era tão preocupado com o meu cachorro, quem na verdade, preparava tudo para ele era a minha mãe. Deve ser por isso que ele fugiu e encontrou refúgio em nova dona.

    — Eu ainda preciso aprender a cuidar melhor daquilo que tenho.

    Acabei pensando alto. Theresa reuniu os traços em confusão, tentando perceber o motivo das minhas palavras.

    — O que disse?

    Ou talvez não tivesse ouvido direito, já que não passou de um pequeno sussurro.

    — Não é nada. Agora temos que nos apressar para fazer essa tal comida que só de pensar nela me dá um enjoo!

    Segurei minha barriga de repulsa.

    — Não precisa comer se não quiser. Acho que se eu comer, já é o suficiente — disse Theresa, me tranquilizando, enquanto deixava a pedra de mana. Mas em troca, puxei a manga da camisa e cerrei o punho.

    — Eu vou comer!

    — Já agora, Jarves, o que você queria dizer?

    — Ah, é mesmo! — Estalei um dos dedos, fazendo Meredith erguer o rosto. Ela parecia cansada e sua barriga acabou murmurando. É mesmo, a gente ainda não havia comido nada. E lembrar disso acordou novamente a fome que eu estava sentindo há um tempo.

    — Croma saiu um pouco, mas ela está demorando para voltar, então vou eu mesma servir e preparar essa comida para não perdermos mais tempo — disse Antonella.

    — E eu te ajudo. Vamos. Vamos.

    Assim, Theresa carregou aquela sacola, caminhando ao encontro de Antonella, para a cozinha.

    — Acho que posso contar depois.

    Rein concordou.

    Depois de alguns minutinhos, aquelas duas apareceram com pratos. Um deles foi entregue a mim. O cheiro era delicioso. Minhas narinas saborearam cada aroma enquanto meus olhos se deliciavam com aquela visão, embora líquida, mas chamativa devido às hortícolas que passeavam por ali.

    — É tudo o que temos por agora.

    Antonella se desculpou por estar nos servindo isso. Já agora, lembrei do Handares, não estava avistando ele quando normalmente deveria estar com o irmão. Quando perguntei depois de ingerir uma colher daquela deliciosa sopa, Antonella respondeu que ele estava descansando no quarto. Acabou dormindo.

    Mas nem tanto, ao que parece. Meus olhos alcançaram ele na entrada da porta com suas muletas. Seu rosto ainda era carregado de profunda preocupação e seus olhos pareciam com os de quem havia chorado noite inteira de tão pretos que suas pálpebras inferiores estavam.

    Antonella ofereceu uma sopa para ele, que se sentou ao meu lado.

    — Eu te entendo — Meredith disse com um sorriso gentil. — Vai passar.

    Essas palavras haviam saído das entranhas do coração de uma mulher que havia perdido seus dois irmãos para as mãos de um bandido traiçoeiro e que também havia recuperado eles depois de grandes batalhas que quase lhe custaram a vida.

    Essas palavras eram de uma irmã para um irmão. Ambos mais velhos.

    — Obrigado.

    — Eu nunca soube a sensação de ter um irmão mais novo ou mais velho, mas deve ser algo lindo, não é? A sensação de compartilhar algo com sangue do seu sangue…

    — É de fato algo lindo. Ter um irmão é uma benção do Criador — disse Theresa com um sorriso nostálgico. — Que saudades dos meu… Aí, Hellion, onde você está?

    — É algo bom sim. O meu irmão desde sempre me apoiou quando os nossos pais se foram em um acidente no norte.

    — Acidente no norte?

    — Sim, eles eram aventureiros. Mas já pretendiam deixar isso para arranjar um trabalho por aqui. Mas infelizmente, um monstro superior ao rank deles, que fugiu da masmorra, roubou a vida deles.

    — Ah… Sinto muito…

    Lamentei e não fui o único. Meredith e Theresa também prestaram suas sentidas condolências ao Handares.

    Monstros podiam fugir da masmorra, por isso que quando surgia uma masmorra, ela precisava ser selada imediatamente como aconteceu com aquela masmorra, que era guardada por aqueles dois soldados, até que aventureiros do rank correspondente venham e acabem com o monstro. Mas como uma masmorra surgia sem aviso prévio, essa catástrofe acontecia naturalmente.

    Depois de acabarmos de comer, entregamos os pratos a Antonella. Agora estávamos à espera de uma segunda dose, a comida que recupera mana que demorava cerca de duas horas para que o cristal fosse dissolvido completamente e se transformasse em nutriente mágico, que tinha um gosto nada agradável e facilmente poderia provocar uma indigestão em pessoas de estômago frágil.

    — Olha, não é por nada mal, mas precisamos nos apressar, porque os soldados com certeza não ficaram impávidos e serenos depois de terem descoberto que o grupo do manipulador charlatão está aqui…

    Esse nome ainda me incomodava, mas Rein tinha razão. Precisávamos nos apressar e sair daqui o mais rápido possível.

    — Falta só um pouquinho — disse Antonella. — E, Croma está demorando para voltar… Para onde será que ela foi?

    — Talvez tenha ido arranjar novos ingredientes para o jantar de hoje a noite como temos convidados — disse Handares.

    — É mesmo? É uma pena não podermos ficar para o jantar.

    Eu queria tanto comer o jantar da Croma. Cerrei um dos punhos de indignação.

    Logo, logo a porta se abriu bruscamente como se estivesse sendo arrombada. Por um momento pensei ser aqueles dois soldados, já que aquele tal de Charks tinha uma intuição bem sobrenatural.

    — Estamos com problemas — disse Zernen suspirando de cansaço. Eu me levantei da cadeira instintivamente, aguardando o pior.

    Todos também estavam com rostos preocupados.

    — Eu estou com fome!

    — Ah, Zernen… Era só isso…

    — Fome é um problema, sabia?

    As crianças atrás dele também começaram a murmurar fome ao mesmo tempo em que chamavam pela Croma.

    Antonella pediu que as crianças a seguissem para comerem no quarto, incluindo o Zernen. Enquanto isso, Theresa trazia comida de mana para a gente no prato que carregava uma coloração azul e brilhante, mas seu cheiro não era nada atrativo.

    Mas fazer o que, não é? Já dizia minha mãe. O que é bom sempre amarga. Todos comemos aquela comida que amargava muito, era como se estivéssemos tomando uma tonelada de pimentas malaguetas exprimida em líquido. Na verdade, eu não chamaria aquilo de comer, mas sim de forçar a comida a entrar no nosso estômago.

    Não demorou para vir a dor de barriga que nos derrubou da cadeira e fez a gente se deitar no chão enquanto seguravamos nossas barrigas fortemente como se a quiséssemos rasgar. Theresa e Antonella eram às sortudas, que aliviavam sua dor com magia de cura.

    — Aaaaaah, que dorrrrrr!

    Esse grito continuou por mais alguns minutos e não foi apenas meu, com exceção das médicas. Foram elas que deram fim a essa dor depois que se recuperaram. Suas mãos pousaram sobre nossas barrigas como um alívio e acalento, a doce luz pairando e dissipando toda e qualquer dor que nos atormentava.

    No fim, pudemos suspirar com um alívio inimaginável. Era como se tivéssemos saído do inferno para o paraíso, um lugar de paz e tranquilidade.

    — Que alíviooooo! Nunca me senti bem na vida como me sinto agora.

    Levantei o punho.

    — De fato, essa é uma dor que ninguém deveria passar. Será que gravidez é assim também?

    Era uma boa questão a da Meredith. Se dores de parto se assemelhavam a isso, então eu sentia muita pena das mulheres.

    Olhei para aquelas três com uma expressão de pena e alívio por ser homem.

    — Sinto muito por vocês…

    — Sinto muito que nada, quem disse que eu vou ter filhos? — Theresa me lançou um olhar afiado.

    — Pensando bem, acho que vou ter que repensar se vou mesmo querer passar por essa dor…

    — Eu não esperava isso vindo de você, Meredith — disse, incrédulo. O que eu mais desejava era ver os filhinhos da Meredith e do herói.

    — Ah, bom, ainda que eu quisesse ter…

    Ela não completou a fala, mas eu sabia o que ela queria dizer. Sua confiança havia sido fragilizada ao ponto dela não mais acreditar em um amor, um amor de verdade.

    — Não se preocupe, Meredith. Você vai arrumar alguém que vai corresponder o seu amor, tenho a certeza!

    — Você já me disse algo do tipo… Obrigada.

    — Ouvi dizer que você vê o futuro… — disse Antonella. — Então sobre mim, consegue me ver com alguém? Quer dizer, digo, o meu futuro…— Ela acabou ficando corada, com as bochechas rosadas.

    — Ah, bom. Meu poder não funciona assim, mas… — Sinceramente, não sabia se eles tinham química ou não, mas sentia que ambos combinavam. Olhei para o Handares. — Talvez a pessoa esteja mais perto do que você imagina.

    — É sério?

    Handares nem reparou nos nossos olhares sob ele. Estava bem longe do nosso mundo, na verdade, seus olhos estavam no seu irmão sobre aquela mesa.

    — Muito bem, chega de papo furado e vamos a isso — Theresa disse, indo contra a mesa na companhia da Antonella que agora assumiu uma postura de seriedade.

    Quando Theresa esticou suas duas mãos, uma aura verde envolveu o corpo do Nikolas. Não demorou muito para vermos os resultados do nosso sacrifício em obter as pedras de mana. A aura que envolvia seu corpo, começou a mudar para um violeta enegrecido e nela haviam várias bolhas flutuando como se fossem células malignas.

    Então Theresa moveu seu braço para cima, reunindo toda aquela aura enegrecida em cima do seu peito. Uma esfera enegrecida acabou se formando.

    — Esse era o veneno que estava no corpo do Nikolas esse todo tempo…

    Acabei engolindo em seco.

    Então era algo assim que ele estava pretendendo injetar no meu corpo, aquele maldito…

    Não evitei de ficar indignado.

    — Benção do Criador, purificar!— Então Theresa juntos as mãos em oração, fazendo com que aquele veneno se convertesse em aura verde e as bolhas desaparecessem completamente. A esfera agora estava completamente limpa.

    — Nossa… — Os olhos de Antonella brilhavam. — Que magia é essa?

    — É uma magia que acabei desenvolvendo, mas que só tive a certeza dela quando pedi para que o homem da catedral visse minha magia. Também vi outras magias interessantes…

    — Outras magias interessantes?

    — Sim, uma tem a ver com o Gaia e a outra… — Seus olhos encontraram os de Handares. — Agora é sua vez, Handares. — Theresa direcionou aquela esfera para Handares. Ao tocar em seu corpo, ela o envolveu com um brilho e uma energia acolhedora, aos poucos reduzindo como se sua pele estivesse absorvendo tudo. Na verdade, estava.

    — Handares, largue as muletas.

    — Mas assim, eu vou cair…

    — Em nome do Criador, seja curado — Quando Theresa disse isso, Handares largou a muleta. Algo inacreditável que jamais havia contemplado durante toda a história deste era livro aconteceu. Podia ser algo simples e trivial mesmo em um mundo de magia, mas era raro de acontecer.

    Handares ficou em pé, mas não se limitou a isso, deu seus primeiros três passos.

    Neste mundo, pessoas que nasciam com deficiência não podiam ser curadas nem mesmo com os mais poderosos mestres de curas. Tais pessoas estavam condenadas a carregar o fardo dessa enfermidade por toda vida, no entanto, hoje, a barreira que regia as leis e os poderes desse universo havia sido quebrada.

    E quando uma barreira que rege as leis e os poderes de um universo é quebrada, ou melhor, ultrapassada… isso só tinha um nome.

    Milagre.

    Um milagre.

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