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    Quando abri os olhos e vi, de um lado, minha querida raposinha toda esparramada, com a cauda entrelaçada nas cobertas, e do outro, Claire, minha bruxinha, recatada até mesmo no sono, com o corpo encolhido e o rosto sereno, senti um calor leve no peito. Por um instante, o mundo pareceu simples. Os problemas, uma futura guerra, o império, Lock, e outros problemas, pareciam menores. Só havia o cheiro delas, o toque da manhã, e o silêncio das paredes que pareciam guardar nosso pequeno refúgio.
     

    Com cuidado, escapei da cama. O chão estava frio e as primeiras luzes filtravam pela cortina, tingindo o quarto de um tom dourado. Puxei o casaco, ajeitei o cinturão e deixei o quarto em silêncio, fechando a porta atrás de mim. Havia assuntos pendentes, negócios a tratar antes que o dia terminasse, e antes que minha vida mudasse de vez.
     

    Eu precisava encontrar Rosa e os mercenários. Agradecer por tudo e quitar a dívida. Depois, tomar posse da ilha que os Argos me deviam. Lembrei-me de Lock, e o nome me pesou na mente como uma pedra. Será que conseguiria vê-lo tão cedo? Juliani não me queria por perto, eu era o empecilho em seus planos, a peça fora do tabuleiro.
     

    Enquanto atravessava as ruas ainda úmidas do bairro mercante, lembrei do que Lock dissera: que o reino deles estava fragmentado, espalhado em pedaços, cada parte contida em um ser feérico diferente. Lembrei também do líder da Caçada Selvagem, o mesmo que eu havia libertado sem querer, e destruído junto o equilíbrio precário de seu reino. Ele prometera reunir os fragmentos e trazê-los até mim. E eu, como um tolo esperançoso, prometi um lar. A nova ilha seria a âncora. Ali, talvez, o reino pudesse renascer, longe da névoa e do deus do vazio.
     

    Esses pensamentos me acompanharam até o Matadouro, o velho coliseu de pedra e madeira que Rosa transformara em sua base de negócios. Assim que cheguei, percebi que tudo já estava resolvido. Os contratos com os mercenários, a casa Argos já havia honrado meus acordos, satisfeita com o resultado da missão. Rosa me esperava, recostada em uma pilha de caixotes, fumando um cigarro fino que perfumava o ar de canela e ferro queimado.
     

    — Fez um bom trabalho lá, Lior — disse ela, me medindo dos pés à cabeça. O olhar dela era atento e percebeu meu mancar. — O pessoal me contou o que aconteceu. Mas… — Ela cruzou os braços. — Não sem custos, né?
     

    — Pois é. — Ri de leve. — Vou levar um tempo pra me recuperar completamente.
     

    Ela assentiu, jogando o cigarro no chão e o apagando com a bota. Depois, abriu um pequeno cofre e me entregou um saco de pano grosso. Dentro, dezenas de pedras de ancoragem reluziam como âmbar fosforescente. Tinha também um pergaminho, selado com o símbolo do Conselho dos Anciãos, a escritura.
     

    — Litoral Branco. — Ela pronunciou o nome com uma pontada de orgulho. — A ilha é sua agora. Cinquenta pedras de ancoragem. Cuide pra não deixar ninguém indesejado chegar lá.
     

    — Pode deixar. — Pesei o saco na mão. Era mais do que pedras. Era um símbolo de posse, e de responsabilidade.
     

    Conversamos por mais algum tempo. Falamos de nossos negócios, de lutas na arena e de política. Antes de ir embora, pedi que ela comparecesse ao casamento. Ela riu, fingindo desinteresse, mas percebi que iria.
     

    Saí dali com a sensação de que tudo começava a se encaixar. Mas o tempo corria. Tinha de ir à mansão dos Umbrani. O casamento estava praticamente sobre nós, e Lady Lenora, junto das garotas, me esperava para os preparativos finais.
     

    O portão de ferro se abriu com um rangido grave, e fui recebido por uma voz que soou como vinagre sobre mel.
     

    — Até que enfim o senhor resolve aparecer nos preparativos do próprio casamento, lorde Lior. — Sybela, a casamenteira escolhida parecia exausta e armada de paciência curta.
     

    — Tive uns assuntos a resolver… — comecei, mas ela ergueu a mão.
     

    — Poupe-me das desculpas. Venha.
     

    Fui arrastado, sob as risadinhas das damas de companhia, para uma sala cheia de tecidos, alfinetes e espelhos altos. Dois alfaiates me esperavam com sorrisos tão grandes que poderiam engolir o sol. Quando vi os rolos de linho e veludo vindo na minha direção, percebi que enfrentar um dragão teria sido mais fácil.
     

    Horas depois, ou assim me pareceu, estava vestido com metade do traje, suando como num campo de batalha. Os alfaiates me cercavam, murmurando entre si enquanto Sybela dava ordens como um general.
     

    — Não respire fundo, lorde Lior. O veludo não foi feito pra suportar músculos em movimento.
     

    Por dentro, gargalhei. Quando enfim me libertaram, fui levado até o pavilhão montado nos jardins. O sol já subia alto, refletindo nas toalhas e nas taças recém-polidas. Trabalhadores corriam de um lado para outro, ajeitando tapeçarias, flores e lustres. Era uma coreografia caótica, mas bela.
     

    — Aqui é onde você ficará, — explicou Sybela, apontando para o altar adornado com fitas de seda prateada. — Claire entrará primeiro, como primeira esposa. Nix virá em seguida, como segunda. Você se posiciona à direita.
     

    Assenti. Elas sabiam mais dos arranjos do que eu, e, sinceramente, confiava nelas. Claire tinha aquele brilho sereno de quem vê sentido até nas tradições mais estranhas, e Nix, bom… Nix parecia mais radiante do que eu jamais a vira, mesmo se reduzindo ao papel de segunda esposa.
     

    — Seu padrinho deve entrar agora, — completou Sybela. — Trazendo as fitas nupciais.
     

    — Padrinho? — perguntei, engasgando. — Eu não…
     

    Ela arqueou uma sobrancelha, divertindo-se. — Por sorte, Lady Nix já cuidou disso.
     

    Antes que eu pudesse perguntar, uma voz familiar soou atrás de mim.
     

    — Olá, Lior.
     

    Me virei, e um sorriso escapou antes mesmo que eu percebesse. — Joaquim!
     

    Nos abraçamos forte. Havia algo reconfortante em vê-lo ali, vestido com sobriedade, o olhar firme.
     

    — Então é você o padrinho? — perguntei, meio incrédulo.
     

    — Desapontado? — ele provocou.
     

    — Nunca. Foi a escolha certa.
     

    Ele sorriu. — Não sei não. Ouvi dizer que você andou se metendo em aventuras sem me chamar.
     

    — Ia ser perigoso demais — respondi, meio envergonhado. — E você ainda estava lidando com o luto de sua prima.
     

    — Mesmo assim, podia ter chamado. — Ele deu um leve soco no meu ombro. — Da próxima vez, não me deixe de fora.
     

    — Prometo.
     

    Enquanto conversávamos, percebi Claire e Nix se aproximando. Vinham em trajes simples, mas o modo como caminhavam transformava tudo. Claire parecia uma pintura viva; Nix, uma centelha de fogo travessa. Meu coração tropeçou dentro do peito.
     

    Sybela riu baixinho. Joaquim também.
     

    As garotas se juntaram a nós, e repassamos as cerimônias, as falas, os gestos com as fitas. Eu mal conseguia me concentrar, estava mais encantado do que nervoso.
     

    No começo da noite, exaustos, voltamos para casa. A sensação de finalmente estar em um lugar limpo, seguro e silencioso era quase surreal depois de tudo que passamos. Tomamos banho, jantamos juntos, uma refeição simples, mas cheia de risadas cansadas e olhares que diziam mais do que palavras.
     

    Quando terminamos, pensei que iríamos todos descansar no mesmo quarto, como de costume. Mas, inesperadamente, as garotas se levantaram, trocando olhares cúmplices entre si, e começaram a recolher as próprias coisas.
     

    — Pra onde vocês vão? — perguntei, confuso.
     

    Nix, com aquele sorriso malandro de canto, respondeu sem sequer olhar pra trás:

    — Pra outro quarto. É pra você aprender a valorizar mais a gente.
     

    Claire, mais comedida, tentou disfarçar o riso, mas falhou miseravelmente.
     

    Fiquei parado por um instante, olhando enquanto as duas desapareciam pelo corredor. Suspirei e deixei escapar uma risada baixa.

    — Justo — murmurei para mim mesmo.
     

    Era verdade. Um pouco de distância faria bem. A expectativa sempre tem seu próprio sabor. Amanhã seria um dia importante, talvez o mais importante da minha vida, e, por mais que o corpo pedisse descanso, a mente permanecia desperta, imaginando cada detalhe, cada olhar, cada passo até o altar.
     

    Sorri sozinho, sentindo o peso leve da exaustão misturado com a ansiedade. O dia seguinte prometia. E, pela primeira vez em muito tempo, eu me permiti simplesmente deitar e sonhar.

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