Capitulo 109 - A monstruosidade que trago comigo
Os meus olhos fecharam-se sem eu dar por isso, com o meu corpo à mercê da situação. O mundo não afundou na escuridão, mas abriu-se num clarão brando, de contornos que eu conhecia melhor do que gostaria de admitir.
O concreto sob as minhas mãos era frio e áspero, o rebordo do prédio sustentava os nossos corpos e, diante de nós, estendia-se uma cidade inteira, palpitante de luzes quebradas, ruas engolidas pelo movimento, motores e vozes que vinham de baixo como um sopro distante.
O vento estava forte naquela altura, mas não incomodava. Havia algo nele que mais lembrava companhia do que ameaça.
Sentada perto, com as pernas penduradas no vazio, balançava-as levemente, de forma descontraída. As madeixas escuras ondulavam com cada rajada de vento, esvoaçando sobre o ombro e, por vezes, sobre o rosto, que ela afastava.
Antes de qualquer palavra, veio o riso, solto, breve, sem depender de piada nenhuma, apenas da leveza de estar presente.
Era ela. Não precisei de mais provas. A memória do coração era independente da mente e agora lembrava-me daquilo sem me dar escolha.
— Você sumiu de novo. — falou, os olhos não desgrudaram do horizonte.
— Não foi porque eu quis. — respondi, tentando ajeitar as palavras para que não soassem frágeis demais. — As coisas mudaram.
— Hah. Você arranja desculpa pra tudo.
— Talvez. Só que ficar é complicado quando não se sabe o que fazer depois.
Virou ligeiramente o rosto, o suficiente para conseguir ver-me pelo canto do olho.
— E acha que fugir resolve? Você corta o fio e acha que a energia some.
Apenas dei de ombros porque não tive coragem de encarar a resposta inteira.
Aquela cidade lá embaixo parecia mais fácil de enfrentar do que ela.
— Não sei se resolve, mas pelo menos dá a impressão de que não tô afundando junto.
— Impressionante. — Inclinou o corpo pra frente, apoiando as mãos na beirada. — Você sempre teve mais medo de mim do que do mundo inteiro.
Calei-me por um instante, de forma alguma para fugir, mas porque não existia forma de contrariar aquelas palavras sem admitir que estava certa.
A brisa arrepiava-me a pele que se erguia com a barra da camisa.
— Acho que… tenho mesmo. — Num meio sorriso, soltei a voz sem conseguir articular muito bem. — Porque o mundo pode engolir, mas você tem o poder de fazer eu querer ficar.
Ela prendeu o ar, guardou um pouco de cuidado na boca e deixou ir devagar.
— Palavras bonitas, mas perigosas. Esse poder aí que você acha que eu tenho… eu nunca pedi. Nem sei se quero.
Passei a mão na nuca e soltei uma outra risada curta que não me serviu de escudo.
O panorama urbano vibrava abaixo, sirenes longe, vidro refletindo mais trechos de nós do que eu queria admitir.
A cidade não julgava, só consumia passos; eu sentia o nó de abandonar sonhos em pequenos lances, ver o que sobrava no prato.
— Não precisa pedir. É só o jeito que funciona. Eu entro nesse jogo já sabendo que vou perder alguma coisa.
Seus olhos me cortavam como se estivesse testando até onde eu aguentava.
— Perder é o que todo mundo faz, só que ninguém gosta de admitir. No fim, a vida inteira é um leilão de perdas. Você dá um lance alto num sonho, pega migalhas de volta, finge que foi justo.
Fiquei olhando pro vazio. O som da cidade preenchia o espaço entre as palavras, dava corpo ao que não queríamos dizer.
— É… mas mesmo migalha vale quando não sobra nada na mesa.
— Você sempre soube vender bem sua miséria. Põe jeito de discurso bonito pra enganar a si mesmo.
Encostei a testa na palma da mão e respirei fundo mais uma vez. A linha dos telhados, que recortava o céu, era como um traço de neblina sobre a cidade, e isso fazia com que tudo parecesse longe — mas também impossível de largar.
— Não é discurso. É o único jeito que achei pra acordar todo dia sem largar tudo pros ares.
Um tremor no canto da boca dela desmentia a aparente dureza. Depois de morder o lábio e pensar por um longo tempo, o vento lhe puxava o cabelo contra o rosto.
— E se um dia eu for embora? Se eu resolver te largar no meio da bagunça, sem aviso?
Travei a mandíbula.
— Aí eu desabo de vez. Mas pelo menos desabo sabendo que, por um tempo, tive um lugar onde queria ficar.
O abismo entre nossos corações se manteve intacto. Apenas ficou cheio de sentimentos não expressos, sem a necessidade de serem traduzidos em palavras.
Ao baixar um pouco o olhar, parecia que ela estava quase fugindo, embora não tenha resistido e voltado a me encarar.
Uma vulnerabilidade transparecia em seu olhar, mesmo que tentasse disfarçá-la sob uma máscara de segurança.
— Sabe o que me irrita? Você fala essas coisas… e eu acredito. Mesmo sabendo que devia fugir de você.
— Talvez seja porque eu não minto quando tô contigo. O mundo lá fora já é cheio de máscara. Com você, eu tiro tudo.
— E eu que achava que você só sabia falar merda.
— Eu falo merda também. — Inclinei um pouco meu corpo para mais perto. — Mas quando é sério, eu não brinco.
Por alguns instantes, ficou quieta, respirava fundo, e mantinha os olhos presos aos meus.
— Você é um problema. — disse, sem que houvesse rancor no tom de sua voz, apenas um cansaço doce e resignado. — E eu… não tô tentando resolver.
— Então deixa eu ser esse problema. — Aproximei-me um palmo a menos de distância.
O clima se condensou na borda do prédio. Ela não se afastou, pelo contrário, estendeu a mão e pousou os dedos em meu braço.
Foi um toque suave, mas intenso o bastante para incendiar minha pele.
— Não prometo nada, mas talvez… eu queira ficar um pouco mais.
As palavras se infiltraram em mim feito um gole de água depois de dias vagando no deserto, ocupando um vazio que eu fingia não carregar.
— Eu estava com tanta saudade.
O calor daquele gesto permaneceu, expandindo-se até dominar tudo em volta.
Mas, num rasgo abrupto, o toque foi arrancado de mim.
A sensação se partiu no mesmo momento em que uma força me puxou com brutalidade para a realidade.
Ao abrir os olhos, o peso do sonho caiu inteiro sobre mim, esmagando-me. No lugar do céu estava o teto do caminhão, e à minha frente…
— Bora acordar, vagabundo. — disse Nicholas. Soltou meu braço e eu caí sentado no assento.
O impacto não foi no corpo, mas no que tinha acabado de perder. A ausência dela latejava como ferro quente cravado na pele, mais cruel que qualquer lembrança.
— Onde tá todo mundo? — perguntei, com a voz rouca.
— Já tão lá dentro faz um tempo. Só sobrou você dormindo que nem criança depois do recreio.
O peso da realidade me esmagou de novo e uma sensação estranha percorreu minha nuca.
— Caramba, e você não achou melhor me acordar antes?
— Achei melhor te dar uns minutos de paz. Porque, acredita em mim, daqui pra frente você não vai mais ter isso.
Fiquei olhando para fora.
— Grande favor, né?
— Relaxa. — Deu dois tapinhas no meu ombro direito. — Se o mundo fosse justo, eu também tava lá ralando com eles. Mas não é. A diferença é que eu aprendi a tirar vantagem disso.
Não se tratava meramente de uma provocação, era um tipo de teste. Sempre era. Tudo ali tinha um sabor amargo, as coisas eram tão meticulosamente dispostas que faziam com que eu me sentisse pressionado até o limite antes de sucumbir.
— Levanta a bunda daí. — disse, e começou a andar para fora. — Não quero perder tempo.
Segui atrás, e o baque das minhas botas contra a terra solta levantou uma névoa vermelha que engoliu meu tornozelo.
Nicholas parou um pouco à frente e se virou para mim.
— Escuta, vou resolver umas coisas antes, então vai direto pro pátio. Fica lá e espera com os outros.
— Uhm… Tá.
No meu caminho estava um descampado recortado por cercas enferrujadas e torres metálicas se erguia contra a paisagem árida. O sol incidia a plenos pulmões, banhando o local com uma claridade crua que não perdoava detalhe algum.
Sob essa luz áspera, a base respirava. Aqueles blocos de concreto, riscados por fissuras, não se limitavam a ser paredes. Era como se fossem cicatrizes expostas de algo rompido para se sustentar.
Minha impressão quando olhava para as janelas cobertas por grades era a de que ninguém entrava ou saía dali sem deixar algo para trás.
Os cabos estendidos pelas paredes externas causavam uma sensação de nervos expostos. Se cortassem qualquer um deles, pensei, talvez não fosse só a energia que se apagaria. Existia uma vitalidade estranha por trás de tudo e uma espécie de organismo inteiro amarrado por fios.
Manchas de ferrugem, reveladas pelo tempo, desciam em trilhas escuras pela pintura cinza do portão principal. As lascas que se soltavam expunham o ferro cru em sua forma original de ossos sob a carne.
Tocando o metal frígido com a luva, tive a sensação de que aquele portão já fora testemunha de mais entradas e saídas da conta.
No alto da torre de vigia estava a silhueta de alguém com um rifle apontado para o horizonte. Era nítido o quanto ele estivera relaxado. Todo o seu corpo dizia que já tinha visto muita coisa para se surpreender com qualquer novidade.
O olhar rápido que lançou-me foi apenas um puro desdém.
Passei pelo portão. O espaço se abriu à direita para uma fileira de veículos desativados. Capôs levantados como bocas abertas, rodas sem pneus, carrocerias nuas. Estavam lá carcaças esquecidas que um dia foram úteis como recordações de uma função já morta.
Será que um dia serei um dessas carcaças, sem serventia, encostado num canto, à espera de enferrujar?
“Não dá pra acabar assim.”
Não dava também para aceitar que o futuro se tornasse sucata. Uma parte de mim resistiu à ideia e reagiu. Foi uma raiva curta e prática, mas que acendeu a vontade de se provar.
Se aquele lugar queria esvaziar para quebrar, então teria de mostrar que ainda existiam nervos doridos e inabaláveis.
Andei para o pátio.
O som mudou. Escutei vozes cheias de provocações, acompanhadas de risos baixos e falsos, além de passos que marcavam território. Os recrutas se agrupavam em pequenos grupos, silenciosos ou barulhentos.
Eles me notaram ao mesmo tempo. A maioria virou a cabeça, outros encararam de frente para medir presença.
Um recruta encostado no capô de um jipe velho fez um rápido gesto com o queixo, um tipo de saudação pouco significativa, mas que, ainda assim, representava algo. O resto trocou olhares e comentários entre si.
Os acontecimentos no pátio equivaliam a um tribunal de julgamento em tempo real. Tinha importância a posição de quem falava alto, como moeda de influência. Movi-me sem pressa para que meu corpo falasse antes do medo.
Um sujeito ao lado cruzou os braços e tossiu baixo para atrair minha atenção.
— Tá atrasado, né?
— Tô. — respondi. Não tinha paciência pra bancar o bobo.
Ele esticou o pescoço como se estivesse avaliando uma mercadoria vencida.
— O povo aqui já tá se grudando em grupinho, achando que tão montando gangue de bairro. Tu perdeu o sorteio das cadeiras.
— Sorteio? — Dava para ver os pequenos núcleos, quatro ou cinco em roda. Parecia uma escola com cheiro de pólvora. — Não parece sorteio. Parece mais cachorro escolhendo com quem vai dividir o osso.
O sujeito riu pelo nariz, ajeitando o peso do corpo pra frente.
— É, e cachorro que fica sozinho acaba virando saco de porrada. Não sei se tu já notou, mas nesse buraco aqui não tem espaço pra lobo solitário de filme.
— Talvez eu não curta ser mais um vira-lata abanando o rabo só pra não apanhar.
— Ah, tu tem ego de pedra, então. Bom, mas pedra quando não tem muro pra se apoiar só serve pra tropeçar.
Um grupo riu alto, mas foi abafado pelo motor velho sendo testado em algum canto. Aquilo me fez lembrar como todo o lugar lembrava um grande cuspe de ferro e suor.
— E tu? — perguntei, jogando de volta. — Tá em qual panelinha?
— Em nenhuma.
Dei uma risada debochada, balançando a cabeça.
— Então cê não é cachorro nem pedra. É urubu.
— É… Urubu vive mais que muito pitbull por aí.
Aproximei-me do pequeno grupo que formava o núcleo. Estava à beira do círculo esperando entender onde me encaixar.
Pessoas se transformavam em possibilidades no pátio. Os que já vinham prontos para romper se misturavam aos que vinham para durar.
Foi nesse buraco de vozes que a fagulha apareceu.
— A única coisa que tu faz direito é atrasar o treino.
O alvo parou em sua posição por um instante, o que fez com que o silêncio entre eles pesasse mais que o insulto. Então, deu um passo à frente.
— Repete essa porra, covarde.
— Não falei pra repetir? Falei que tu não passa de peso morto. — Balançou a cabeça de leve, como se estivesse rindo por trás do visor.
— Tá me chamando de lixo, é isso? — Sua respiração batia forte, audível até através da máscara, com o peito estufado contra o traje.
— Tô te chamando de estorvo. Lixo ainda serve pra queimar. Tu nem isso.
— Cê vai engolir essa agora. — Apontou o dedo indicador direto para o visor dele. — Na frente de todo mundo.
— Engolir? — Inclinou-se ligeiramente para sua direção. — O único que vai engolir alguma coisa aqui é tu, quando eu enfiar meu pau na tua própria arrogância garganta abaixo.
O círculo ao redor começou a ganhar fôlego. Havia quem se contivesse para não mostrar que achava graça, e quem apenas observasse, quieto, sem saber o que esperar.
O outro não pensou duas vezes antes de desferir um golpe no rosto. A resposta veio com o punho em um arco que atingiu o maxilar. Dali em diante, o encontro dos corpos virou algo bruto e direto. Ambos se fecharam como presas, com a nuca encostada no ombro e os cotovelos buscando espaço.
Um grunhido sufocado escapou quando um deles acertou um gancho na lateral do corpo do outro. Por trás da máscara, podia-se ouvir um som que podia ser de raiva ou de dor, não importava.
Encheu-se do odor de suor quente e de pó levantado pelo movimento. As pessoas próximas reagiram ao empurrão coletivo, entre as que incentivavam e as que recuavam por medo de se aproximarem demais do limite a ser cruzado pela luta.
As luvas encostavam, escorregavam, agarravam o tecido do colete, puxavam e arremessavam. O contato dos corpos soava como martelos, e a sequência de golpes criava um ritmo primitivo que nenhum de nós conseguia controlar ou interromper.
A essa altura foi que Nicholas atravessou o círculo a toda velocidade.
Antes que o agressor descesse o punho para o golpe seguinte, com a mão esquerda Nicholas agarrou-lhe e torceu num giro rápido, rangendo alto o ombro do sujeito.
No mesmo impulso, encaixou o cotovelo no pescoço do outro, avançou o quadril e jogou o corpo dele contra o chão.
O segundo tentou aproveitar a brecha para acertá-lo pelas costas, mas ele deu um passo curto para dentro a tempo de bloquear o soco com o antebraço. Na sequência, prendeu o seu pulso e o arrastou para baixo. Ao mesmo tempo, sua perna subiu em arco na direção da base do recruta, desequilibrando-o.
Antes que o corpo se rendesse por completo, Nicholas dobrou o braço dele para trás até que o som da articulação em risco deixou claro quem mandava ali.
Os dois estavam imóveis no chão, em posições desconfortáveis: a vítima tinha o braço preso em um chaveamento e sentia os tendões sob pressão, enquanto o agressor estava com o rosto esmagado contra o concreto e a nuca no peso do joelho do agente.
— Continuem, porra. Quero ver qual dos dois vai ser o primeiro a mijar no uniforme.
O recruta no chão tentou soltar um palavrão, mas a voz saiu estrangulada.
— Vai se foder…
— Hein? Não ouvi direito. — Aproximou ainda mais o peso do seu pescoço com uma inclinação do corpo. — Repete, campeão.
O outro, curvado pela chave de braço, resmungou com raiva.
— A gente só tava resolvendo…
— Resolvendo porra nenhuma. — interrompeu. — Vocês são recruta. Não são nada além de carne fresca testando o próprio limite. Quer resolver alguma coisa? Vai resolver correndo até cuspir os pulmões no chão, não se batendo igual dois bêbados de bar.
O círculo se desfez um pouco junto às risadas nervosas. Nicholas empurrou o corpo de um contra o outro, encostando os capacetes à força.
— Olha aí, casal do ano. O beijo tá quase saindo.
Os dois se debateram, mas a imobilização só ficou mais apertada. O que estava no chão resfolegava tentando recuperar ar, o outro arfava na chave de braço.
Nicholas ergueu o olhar pro resto de nós.
— Presta atenção, porque essa merda serve de lição. Aqui ninguém ganha por ego, ganha quem aguenta ficar de pé depois que o inferno termina. E, se depender de mim, metade de vocês não dura até amanhã.
Ao observá-lo, percebi que força sem técnica era barulho, e técnica sem cabeça, suicídio. Aquele homem conseguia unir as duas coisas em um único movimento. Se ele precisasse fazer aquilo de novo, seria um sinal de que eu precisava aprender rápido a diferença entre sobreviver e quebrar, ou seja, saber quando falar e quando calar.
“Caralho…”
O chão prendia o orgulho deles, até que Nicholas os soltou para que se levantassem.
Apesar de estarem doloridos, os recrutas se puseram de pé sem coragem para olhar um para o outro. Voltaram ao canto, mastigando a vergonha que sentiam. Não disseram nada. Assim era melhor. Voz mal usada só abria ferida pior do que corte aberto.
Nicholas andou para a frente de todos nós. Colocou as mãos nos quadris e abriu um sorriso largo que, como sempre, precedia suas facadas verbais.
— Admirável. Realmente admirável. Já estão formando os grupinhos. Excelente instinto de sobrevivência social. — Seu dedo desenhou grupos imaginários entre nós. — Os próximos três meses nessa joia de resort federal vão voar. Prometo. Entre sessões teóricas sobre criaturas que rasgam aço e… exercícios de confiança.
O olhar dele pousou, por um instante, nos dois que ainda respiravam ofegantes.
— Ah, sim. Vão criar laços tão profundos e sinceros. Laços que, sem dúvida, resistirão à primeira vez que um Mephisto de verdade lhes arrancar o medo pela garganta.
Começou a caminhar de um lado para o outro, com os olhos sobre cada um de nós.
— Porque no campo, quando a escuridão vier a galope e o sangue começar a escorrer, o que importa não é o seu lindo certificado de conclusão da capacitação. Não é quantos demônios você decorou no livrinho de regras. É saber em quem você pode cuspir quando estiver sangrando, e em quem você confiaria para costurar seu estômago aberto. Essa panelinha que tanto adoram cultivar vai virar pó. E o que sobrar de vocês… haha, isso é que vai definir que tipo de Agente vocês vão ser.
Quando riu, sua risada seca não tinha qualquer traço de humor.
— Então, por favor, continuem. Suas manobras políticas infantis são divertidas de observar. — Parou de andar e ficou de frente. — E eu adoro um bom entretenimento antes do jantar.
Sua última palavra flutuou no ar qual um fantasma tóxico.
— O espetáculo acabou por hoje. O alojamento de vocês estão no Bloco Leste, corredor oitocentos. Encontrem suas placas e estejam limpos, alimentados e com o brilho nos olhos restaurado para o meio-dia.
Como um único organismo aliviado, o grupo se moveu, sem desejar nada além da distância daquele pátio e do homem que o governava.
Os passos arrastados no piso formavam uma corrente de retirada desordenada.
Meus próprios pés giraram, e o instinto de rebanho me puxou para o fluxo.
— Krynt.
Congelei no lugar, com as costas ainda voltadas para ele. Depois que os últimos passos ecoaram pelo galpão e a porta se fechou, o espaço ficou selado entre nós.
“Fodeu.”
Ouvi seus passos se aproximarem.
Circulou até ficar de frente para mim.
— Você não acha que seria um desperdício deixar você apodrecendo num beliche com os outros? Toda essa… potencialidade.
As minhas entranhas se contraíram.
Potencialidade era um eufemismo por trás do qual se escondia a coisa que se contorcia sob minha pele.
— Os outros vão aprender a lutar contra a escuridão. — Ele cruzou os braços. — Mas você vai ter que aprender a lutar contra a sua.
— Imaginei mesmo…
— O Mephisto que você carrega não é uma sentença de morte. É uma ferramenta, na verdade. Uma ferramenta terrivelmente perigosa, mas uma ferramenta. Enquanto eles estudam sobre como lidar contra esses monstros, você e eu vamos dar uma boa olhada no que há aí dentro.
Seus olhos deixaram de mirar algo naquele momento, como se observasse uma coisa muito distante.
— Mikael teve a ideia. Ele acredita que você pode ser mais que um hospedeiro e se tornar a ponta de uma lança que nem ele e eu podemos ser. — Enquanto falava, seus dedos tamborilaram contra o próprio braço. — Odeio essa ideia. Cada fibra do meu ser se revolta contra ela. Trabalhar com a única coisa que detesto mais que nazistas… é uma ironia que me envenena.
Num gesto brusco de desprezo, ele cuspiu no chão.
— Mas o Mikael tem esse jeito de estar certo quando mais importa, e ele vê algo em ti. — Seu olhar voltou para mim. — Então, aqui estou, ensinando um demônio a lutar contra sua própria espécie. Transformando uma maldição em arma. Não porque eu queira, é porque o mundo está tão fodido que até o veneno precisa ser usado como antídoto.
Ele descruzou os braços.
— Você não vai ter a experiência dos outros recrutas, vai ser bem diferente. Me acompanha.
Eu o segui para onde estivesse indo, mas minha mente voltou atrás, fugindo do cheiro daquele local até encontrar refúgio no último lugar intacto que me restava.
— Você sumiu de novo.
A voz dela ecoou em minha memória de forma tão nítida, e eu a ouvi como se ela estivesse sussurrando em meu ouvido mais uma vez.
Naquele sonho, sua mão tocava minha pele através de um véu de algodão-doce e luz fraca. Foi tão bom.
Mas ela estava certa, e continuaria sumindo mais fundo a cada dia nesta vida que não pedi, nesta existência em que meu valor era medido pela monstruosidade que trago comigo.

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