Capítulo 21 – Necessidades básicas
Após um longo dia, a caverna, agora serena, ajustava-se ao silêncio. A iluminação provinha de pequenas plantas em forma de cogumelos luminescentes, espalhados aleatoriamente em algumas paredes e no chão. Sua luz, de tom esverdeado e suave, tornava-se mais intensa à medida que a noite se aprofundava, preenchendo o ambiente com um brilho etéreo, fazendo jus ao dono do lugar.
Acima da plataforma de treinamento, Kai permanecia inclinado, com as mãos apoiadas sobre os joelhos, projetando uma pequena sombra irregular abaixo si. O peito subia e descia em um ritmo acelerado, o suor escorrendo pela têmpora. “Finalmente… consegui um grande progresso dessa vez.” disse ofegante. “Mantê-la ativa por cinco minutos.” exclamou, esboçando um meio sorriso, enquanto lutava para recuperar o ar.
O jovem havia passado o resto do dia praticando a Armadura de Éther, até que os braços, as pernas e todo o seu corpo protestassem fortemente, cada tentativa havia lhe custado energia e resistência mental. A cada falha, seu corpo reagia mais lento, clamando por descanso. Ao dar uma pausa para tomar um ar, sua mente relembrou algumas horas antes, os importantes conselhos de sua mestra antes dela se ausentar.
…
“A técnica exigirá menos Éther a medida que seu domínio sobre ela melhorar, pode até chegar ao ponto onde será insignificante.” disse Ygdraw, mantendo aquele semblante refinado, inalterável, independente da forma como proferisse suas palavras ou executasse seus gestos.
Kai interrompeu o treino e a fitou com uma expressão desconfiada.
“Então… se eu conseguir dominá-la por completo, poderei utilizá-la sem gastar minha energia?” perguntou, ao imaginar algumas possibilidades com a teoria. Mas contrariando sua expectativa, a resposta que veio foi diferente do que esperava.
“Jamais te tornes refém de uma única habilidade. Elas são apenas ferramentas, criadas para serem usadas nos momentos certos. Todavia, ter um trunfo oculto, algo que possa surpreender teu adversário quando ele acreditar que te conhece por completo é indispensável.”
Por fim, com um suspiro cansado, deixou mais um conselho antes de se virar.
“As crianças, têm a mania de jogar com a sorte.” Ygdraw comentou, com um tom descontente ao relembrar antigas memórias. “No entanto, estás no caminho certo. Apenas aqueles que se moldam através de incontáveis repetições, até que cada movimento esteja gravado em cada fibra do corpo, tornam-se realmente fortes. Somente assim poderás confiar no teu próprio poder.”
Concluído o que queria dizer, virou-se de forma lenta e com um último olhar de canto afastou-se do jovem, retornando à sua posição habitual no fundo da caverna. As raízes que sustentavam seu corpo se moviam pelo solo, retraindo naturalmente ao seu corpo de forma silenciosa. Com uma expressão serena e levemente desgastada, fechou os olhos, entregando-se a um breve repouso.
…
Mestra, eu prometo… nunca deixarei que o poder me suba à cabeça e continuarei seguindo meus princípios até o fim. Ele pensou, após emergir de suas lembranças.
Com um suspiro longo, deixou seu corpo desabar para trás até trombar contra o chão. Agora deitado, ouviu o som das gotas deslizando pelas paredes até se unirem em pequenas poças. O eco ritmado da água, somado à temperatura amena, criava uma atmosfera tranquila, acolhedora demais para alguém que passou o dia inteiro lutando contra a própria exaustão.
Mais ao fundo, Ygdraw mantinha-se em silêncio, sua imponente silhueta recostada parcialmente na parede rochosa emanava uma forte pressão mesmo aparentado estar dormindo.
Kai, ao perceber que havia sido deixado sozinho com seus próprios pensamentos, levantou o olhar em direção ao teto da caverna. Um lampejo de nostalgia atravessou seus olhos, refletindo memórias que pareciam tão distantes quanto dolorosas.
“Em pensar que já vivi daquele jeito…” murmurou, referindo-se ao tempo em que perdera a vontade e as esperanças. “Nunca mais!” Respirou fundo e voltou à postura de treino. Repetiu o processo inúmeras vezes. Cada tentativa era uma batalha silenciosa contra si mesmo: quando a respiração se tornava irregular, algumas falhas se apresentavam e o Éther fugia ao controle; quando o foco vacilava, a técnica simplesmente desaparecia.
O tempo escoou sem pressa, até que o corpo se rendeu. As pernas tremeram, e ele desabou sobre o chão frio, sentindo os músculos latejarem em protesto.
“Ugh…” murmurou, rolando de lado. O suor escorria pelo rosto e o peito subia e descia com força. “Acho que agora sim… já dei o máximo por hoje.”
Recostou-se contra uma das raízes mais grossas, áspera e corrugada que emergia do solo. Foi então que o silêncio foi quebrado por um som inesperado que tomou conta do ambiente.
Grrrrrumrrrrrum…
O som ecoou como o rugido de uma besta faminta, fazendo com que ele se encolhesse, constrangido. “Que fome… acabei me empolgando demais no treinamento.” murmurou Kai, levando a mão ao estômago, que roncava em protesto.
De olhos fechados, Ygdraw despertou de imediato ao ruído, percebendo o que havia acontecido. Um leve riso abafado escapou-lhe, ecoando suavemente pela caverna. As folhas em torno de seu tronco balançaram em resposta, acompanhando-a como se partilhassem de sua breve diversão.
“Vejo que não deste a devida atenção ao teu corpo, criança” disse ela, abrindo os olhos e observando o impasse em que o jovem se encontrava.
Kai coçou a nuca, sem graça. “É… parece que sim. O problema é que não faço ideia do que é comestível neste lugar” resmungou, desviando o olhar. Antes, já havia vasculhado toda a região ao redor da caverna, mas só encontrara flores, mato e alguns cogumelos e nenhum deles lhe pareceu comestível.
As raízes ao redor de Ygdraw se moveram suavemente, deslizando como serpentes vivas sob o solo. Uma delas avançou até parar diante do jovem. Na ponta, repousava uma pequena bolsa de pano, simples, mas elegante, fechada por um laço firme.
Ao abri-la, Kai encontrou várias sementes esféricas de coloração acobreada. A aparência não era das mais agradáveis, mas o aroma que emanava delas era surpreendentemente apetitoso, fazendo-o salivar de imediato.
“Alimente-se disto, por enquanto.”
Kai inclinou-se e pegou um dos pequenos grãos dentro do saco, observando-o de perto. O tamanho era ridículo, menor que a unha do dedo mindinho, e por um instante ele franziu o cenho, duvidando seriamente de que algo tão minúsculo pudesse fazer alguma diferença.
“É sério? Apenas isso?” perguntou, franzindo o cenho. “Com todo respeito, mestra, mas estou com tanta fome que poderia comer um elefante inteiro. Acho que essa coisinha nem serviria de tempero!”
Ygdraw abriu um dos olhos e o fitou em silêncio. “Experimente” disse, soltando um leve sorriso zombeteiro que contrastava com sua habitual serenidade.
Ele suspirou, rendido.
“Tá bom… vou comer, mas não reclame se os barulhos do meu estômago piorarem” disse, erguendo a pequena semente entre os dedos antes de levá-la à boca e, começou a mastigá-la. Para sua surpresa, o sabor era agradável, algo entre mel e noz, com um toque levemente amargo. Mas, antes que pudesse fazer qualquer comentário, sentiu o corpo inteiro aquecer de dentro para fora.
Um calor suave percorreu seu estômago, expandindo-se como um balão. Em poucos segundos, o cansaço desapareceu. A dor muscular sumiu. E a fome… evaporou como se nunca tivesse existido.
“Mas… o quê…?” exclamou, incrédulo, piscando várias vezes enquanto o corpo permanecia imóvel, completamente paralisado pelo espanto. “Isso é inacreditável!” murmurou, a voz ecoou pela caverna, dividida entre o choque e o fascínio diante do que acabara de sentir.
Não fora algo tão simples como um passe de mágica. Ele sentiu todo o processo do início ao fim.
A semente dissolveu-se em seu estômago, liberando uma energia suave, porém intensa, que percorreu cada parte do corpo. A sensação era incrivelmente agradável, uma onda cálida que eliminava a fadiga enquanto nutria músculos e fibras, restaurando o vigor perdido. O cansaço se dissipou, e a fome desapareceu por completo, como se cada célula tivesse sido saciada por aquela força viva.
“O que acabas de comer não é um simples alimento” disse a voz de sua mestra, soando próximo ao seu ouvido, carregada de um leve tom de orgulho. “É uma semente vital. Ela nutre o corpo, repõe a energia e estabiliza o fluxo do Éther. Em eras passadas era utilizada por guerreiros e viajantes durante longas jornadas, quando a fome e o cansaço se tornavam inimigos mais perigosos que o próprio caos.”
Kai gesticulou com expressão de que entendia bem sobre isso, os velhos costumes que se perdiam ao longo do tempo. Então voltou sua atenção para ela e disse: “E achei que iria ter que caçar algum animal por aí.”
“Ainda bem que entendes rápido” retrucou ela, voltando a fechar os olhos. “Amanhã, sua tarefa será sair para caçar teu próprio alimento.” Fez uma breve pausa, e o som seco das raízes se movendo ecoou pela caverna. “E só comerás o que conseguires por conta própria!”
Kai engoliu em seco. “Compreendo!” respondeu, ciente de que aquilo fazia parte de sua própria evolução. “Eu prefiro carne mesmo… em vez de sementes” murmurou, sentindo falta de degustar alguns pratos de carne.
Ygdraw deixou escapar um pequeno bufo. Como pode comparar algum prato aleatório com este item? pensou, num tom de desdém. Essas crianças não sabem valorizar as coisas boas… reclamou em silêncio, enquanto um leve sorriso surgia em seu semblante antes de voltar ao repouso.
Vendo que ela voltaria a descansar, Kai ajeitou-se no chão, esticando as pernas e deixando o corpo ceder ao cansaço. Enfim, estava pronto para relaxar e conceder à mente o descanso que ela tanto exigia.
Quando ergueu o olhar, percebeu que as luzes da caverna haviam diminuído de intensidade. O espaço imenso começava a mergulhar na penumbra, e apenas pequenos pontos luminescentes permaneceram nas paredes.
O silêncio começou a tomar conta do ambiente… até que o ar mudou. Ygdraw ergueu a cabeça e abriu lentamente os olhos. Sua visão estava em uma certa direção. As pupilas se estreitaram, refletindo algo que não podia ser visto a olho nu.
NT: Obrigado por acompanhar minha história.
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