Capítulo 23 – Scaroth
Reino Oculto, segundo dia após o despertar do Sonho Eterno.
O ar estava mais frio dentro da câmara subterrânea. As paredes de pedra selavam o espaço, impedindo que qualquer ruído do exterior atravessasse. Apenas o gotejar da água, escorrendo pelos veios minerais, quebrava o silêncio.
Kai percebeu a leve mudança na postura de Ygdraw; até o ar parecia diferente. “Aconteceu alguma coisa?” perguntou, tentando decifrar aquele olhar dela.
Ela não respondeu de imediato. O brilho nos olhos oscilou enquanto observava a parede, como se algo além da pedra chamasse sua atenção.
“Interessante…” murmurou, a voz tão baixa que não chegou aos ouvidos do jovem. “Parece que baixei minha guarda mais do que imaginei.”
O jovem franziu o cenho; percebeu um leve zunido começou a ecoar dentro do túnel que levava até a câmara, abafado pelas paredes úmidas de pedra.
Ygdraw fixou o olhar; o Éther respondeu de imediato ao seu comando, e a aura que emanava dela preencheu a câmara, expandindo-se em um fluxo constante.
“São apenas dois bestiais do tipo inseto…” disse por fim; sua voz soava calma, porém carregada da arrogância natural de seu poder. “Nada que mereça minha atenção. Mas você…”
Kai entendeu de imediato o significado por trás daquelas duas ultimas palavras. O coração deu uma leve acelerada, mas nada além disso; sua mente permaneceu inabalável.
“Ser destemido é bom; mas se baixar a guarda, eles podem te despedaçar antes mesmo que perceba.” A mestra completou, observando com calma a reação do pupilo.
Ygdraw cerrou os olhos. “Demonstre-me o quanto evoluiu após todo esse treino.” disse ao jovem, executando um movimento sutil e oculto.
Ela inspirou suavemente; o ar pareceu se curvar ao redor de seu corpo enquanto retraía a própria aura. A energia densa se dissolveu no ambiente, suave e silenciosa.
Como assim todo esse treino? Praticamente faz apenas um dia que ela está me treinando… pensou, encabulado; por um instante quase deixou escapar o pensamento em voz alta, mas se controlou antes que as palavras saíssem.
“Darei o meu melhor… tentarei não trair sua expectativa.” respondeu, desviando o olhar para que sua expressão não o denunciasse.
As criaturas bestiais que se aproximavam hesitaram por alguns instantes na entrada da montanha, percebendo as leves oscilações no ar; logo, retomaram o caminho ao sentirem a mudança; adentrando o túnel que levava à câmara. Apesar da força contida naquela pressão espiritual, não havia nela nenhuma intenção hostil, apenas um forte domínio. Por isso, as feras não sentiram medo de atravessar seu território; ao contrário, pareciam ser atraídas por ele, como se fossem conduzidas em silêncio.
Kai ajustou a respiração, ouvindo o som das criaturas que se aproximavam. O zunido aumentava a cada segundo, e ele não pôde evitar a tensão percorrer o seu corpo.
Desta vez, não posso abaixar a guarda. Aquele erro idiota quase me custou a vida. ponderou, apertando os punhos, sobre o instante em que fora capturado pelo bestial-cobra.
Vendo que ele se perdia em pensamentos desnecessários, Ygdraw soltou um leve suspiro; havia algo na convivência com o garoto que lhe trazia um antigo sentimento, o tipo de exaustão sutil que ela pensava ter esquecido.
“Acho que fiquei sozinha por tempo demais.” murmurou, afastando os pensamentos dispersos enquanto voltava o olhar para o jovem.
“Este é um bom momento para você aprender a usar a visão de Éther.”
Kai saiu de seus devaneios e olhou para ela com uma expressão distorcida.
“Mestra, eu sei que tem grandes expectativas em relação a mim, mas… não acha arriscado aprender uma técnica de concentração logo na minha primeira luta?” questionou, incerto sobre tais.
Ela quer que eu ultrapasse meus limites… ou apenas descobrir até onde posso ir? Seus olhos se estreitaram diante de tal pensamento; por um instante, tentou discernir se, por trás daquela calma inabalável e do semblante neutro, existia alguma intenção oculta.
“Mas…” Seus lábios se curvaram de forma tão sutil que o gesto quase passou despercebido. “Você já sabe.” completou Ygdraw, como se fosse algo óbvio;
Kai piscou, confuso.
“Como assim… já sei?”
“Usar a [Visão De Éther] é igual a invocar a [Armadura De Éther]; a diferença está apenas no foco. Em vez de envolver o corpo com energia como veio treinando até agora, redirecione-a para os olhos. Permita que o Éther os envolva… e então verá o ambiente reagir.”
Kai hesitou.
Depois de ter dominado parcialmente aquela técnica, deveria ser mais simples empregar o mesmo princípio nesta. Mesmo com tendo uma pequena semente de dúvida, sua mente já trabalhava em uma forma de utilizá-la.
Mas o tempo não estava a seu favor. Um zunido grave reverberou na entrada da câmara; o som ecoou pelas paredes, fazendo cair pequenos fragmentos de poeira do teto.
Dois Scaroth emergiram da escuridão. A carapaça escura de seus corpos mal reluzia sob a pouca luz da câmara. Um suas asas batiam em alta velocidade, fazendo o ar vibrar de uma forma que distorcia o espaço ao redor de seus corpos.
Kai encarou as criaturas, ajustando a postura.
Ygdraw, por sua vez, se virou e começou a se afastar dele. Levantou o braço direito à altura do peito; da palma aberta, uma pequena esfera verde surgiu, expandindo-se como se tivesse vida própria.
O broto cresceu em ritmo acelerado, transformando-se em um ramo de textura úmida. As folhas se abriram e logo se desprenderam, dissolvendo-se no ar em pequenos fragmentos. O caule, agora espesso, escureceu e assumiu o aspecto de madeira seca, o contorno de um cajado firme e pesado, quase como um porrete.
Mas era mais do que um simples objeto. Ela havia infundido ali uma fração de sua própria essência vital; o Éther ainda circulava sob a superfície, discreto, como se contido em silêncio. Quando o artefato atingiu pouco mais de um metro, Ygdraw fez um gesto rápido com a mão esquerda e o separou do corpo.
Sem olhar para trás, arremessou o cajado em direção ao pupilo.
“Boa sorte.”
Kai, que a observava de canto, notou o objeto arremessado vindo em sua direção e o agarrou no ar com um simples movimento rápido de agarrar. Seguiu com o olhar as costas dela se afastando.
Pode ter soado como uma gentileza… mas, pelo pouco que conheço dela, isso quer dizer ‘se vira’.
Deu de ombros e voltou o olhar para o que estava em sua mão. Enquanto não tenho uma arma, isso vai servir bem. pensou, girando o que parecia ser apenas algo qualquer que ela havia lhe dado.
O guincho de uma das criaturas trouxe sua atenção de volta. Os Scaroth avançaram pela entrada e adentraram a câmara lentamente, os olhos compostos percorrendo o ambiente com curiosidade aparente.
Aproximaram-se, atraídos por uma energia distinta que pairava no ar. Quando seus olhares se fixaram no jovem, um som baixo e áspero escapou de suas gargantas, algo entre frustração e desdém, como se estivessem decepcionados ao perceber que ele era a fonte.
“Porra… não acredito. Agora estou sendo menosprezado por insetos.”
Eles não demonstravam hostilidade, mas aquele pequeno gesto foi o bastante para que ele compreendesse o significado.
Quero lhes ensinar uma lição… pensou. Mas não posso negar que, apesar dessa aparência… Se referindo ao tamanho pequeno e a expressão boba. Minha intuição me diz para não abaixar a guarda.
Fez essa anotação mental enquanto observava o corpo compacto do inseto, esculpido em um metal negro fosco; o chifre curvado para cima, que emergia da testa, lembrava a ponta de uma lança lapidada, e um segundo, menor, despontava logo acima, reforçando a impressão de uma arma viva.
Do outro lado da câmara, Ygdraw já havia chegado ao seu canto e os observava em silêncio, imersa em seus próprios pensamentos.
Bestiais comuns possuem duas formas. A primeira é a base, em que a criatura acumula energia. Quando alcançam a cota necessária, podem evoluir para o estado adulto a qualquer momento; e quando isso acontece… o aumento de força é exponencial. Alguns preferem esperar, acumulando ainda mais poder antes da transição, para expandir o limite da própria espécie, ou de sua linhagem.
“Esses ainda estão em estado inicial.” murmurou para si mesma. “Assim, posso deixar a criança ganhar um pouco de experiência lutando contra eles.”
NT: Gostaria de expressar minha gratidão a todos que têm acompanhado esta jornada.
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