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    Amanheceu devagar.

    A primeira coisa que senti foi o calor. Não o do fogo, que há muito se apagara na lareira, mas o calor de dois corpos junto ao meu.
     

    Claire dormia à minha direita, o rosto sereno, uma mecha dourada caída sobre os olhos. Nix, do outro lado, estava enroscada em mim, a cauda repousada sobre nossas pernas. O sol entrava pelas cortinas entreabertas, tingindo o quarto de um dourado suave, como se o mundo lá fora tivesse esquecido, por algumas horas que havia guerras, impérios e intrigas.
     

    Fiquei ali, quieto, observando. Respirando.

    Era estranho pensar que, por tanto tempo, a vida tinha sido feita só de fuga e dor, e agora, por algum milagre improvável, havia paz.
     

    Nix se mexeu, murmurando algo em meio ao sono. Seu ouvido vulpino tremia quando um raio de luz batia nele. Claire, ainda dormindo, buscou minha mão, entrelaçando os dedos. Um gesto simples, mas que me encheu de amor.
     

    Fechei os olhos e deixei que o silêncio me engolisse. Por um instante, fui apenas Lior, não o mago, nem o filho aleijado, nem o nome que carrego por conveniência. Apenas um homem tentando guardar uma lembrança antes que o dever se impusesse.
     

    Quando levantei, o chão frio me lembrou que o mundo voltara a girar.

    Vesti a túnica leve deixada sobre a cadeira e caminhei até a varanda. Lá fora, os jardins dos Umbrani ainda estavam cobertos pela neblina da manhã. O ar cheirava a terra molhada e flores recém-abertas. Era um tipo de silêncio que prenunciava grandes tempestades.
     

    Atrás de mim, ouvi o som de passos leves.
    Nix apareceu, enrolada num lençol, o cabelo despenteado e um sorriso preguiçoso.
     

    — Fugindo sem se despedir? — ela brincou, a voz rouca de sono.
     

    — Nunca — respondi. — Só precisava respirar um pouco.
     

    Ela se encostou na balaustrada, olhando o horizonte.

    — Amanhã pode ser um inferno. Hoje ainda é bonito. — Virou-se pra mim. — Vai dar certo, não vai?
     

    Demorei um pouco pra responder.

    — Vai. Porque precisa dar. Não posso deixar Elizabeth e Juliani saírem vencedores, não depois de tudo que fizeram.

    Nix me estudou em silêncio. Ela sempre teve o dom de enxergar o que eu não dizia.

    — Acha que Lenora vai conseguir manter o controle?
     

    — Ela vai tentar. — Cruzei os braços. — Mas Juliani não é tolo. Ele sabe que estamos nos movendo.
     

    — E mesmo assim, você vai se colocar no meio.
     

    — É onde sempre estive. De certo modo, eu quem iniciei isso tudo.
     

    Ela riu baixo, balançando a cabeça.

    — Você tem o dom de me deixar preocupada e orgulhosa ao mesmo tempo.
     

    Deu um passo à frente e pousou a testa na minha. O toque foi breve, mas cheio de tudo que as palavras não conseguiam conter.

    — Eu confio em você, Lior. Sempre confiei.
     

    Claire apareceu à porta, ainda sonolenta, usando uma das minhas camisas.

    — Estão conspirando sem mim? — perguntou, rindo.
     

    — Só lembrando o mundo de que a paz não dura — respondi.
     

    Ela veio até nós, abraçando nossos ombros.

    — Então vamos aproveitar enquanto dura.
     

    Ficamos ali, os três, observando o sol vencer a neblina. E, por um momento, a vida pareceu simples outra vez.
     

    Mais tarde, o salão principal da mansão estava em um silêncio tenso.

    Lenora já estava lá quando chegamos. Vestia um traje escuro, elegante, o tipo de roupa que anunciava que algo importante estava prestes a acontecer. Pandora estava ao seu lado, a expressão serena, mas os olhos… os olhos denunciavam o peso do que estava por vir.
     

    — Dormiram bem? — perguntou Lenora, sem levantar o olhar dos papéis à sua frente.
     

    — O suficiente para enfrentar um império — respondi.
     

    Ela sorriu de canto. — Vai precisar de mais que isso.
     

    — Os convites foram enviados? — perguntei.
     

    — Sim. Disse que seria o anúncio da fundação da Torre de Magia. As casas receberam com entusiasmo. Alguns acham que é mais uma excentricidade sua, o que nos ajuda. Ninguém suspeita de Pandora ainda.
     

    Ela ergueu os olhos para mim.

    — Preciso que mantenha o discurso até o fim. Quando eu der o sinal, você recua. Deixe-me lidar com o resto.
     

    Assenti.

    — Entendido.
     

    Pandora caminhou até mim, hesitante.

    — E se eles não acreditarem?
     

    — Então eu darei a eles um motivo pra acreditar — respondi. — O império precisa de uma herdeira, Pandora. E o povo precisa de esperança. Você é as duas coisas. Ninguém esqueceu o ataque na capital, Juliani está fraco.
     

    Ela desviou o olhar, constrangida, mas um leve sorriso surgiu.

    — Espero estar à altura.
     

    — Você está — disse Lenora. — Está no seu sangue.
     

    Claire e Nix se mantiveram em silêncio, mas eu percebia o modo como ambas olhavam para Pandora, com respeito e pena. Sabiam que, de todos nós, ela era quem mais tinha a perder.
     

    Lenora levantou-se, encerrando a reunião.

    — O salão será preparado para o entardecer. A apresentação começa ao primeiro toque dos sinos.
     

    Ela pousou a mão sobre o meu ombro.

    — Hoje você não é apenas um homem casado, Lior. É o estopim de uma nova era.
     

    — Que seja uma nova era — murmurei.
     

    Ela riu, e por um segundo, voltou a ser apenas uma velha mulher sábia, não a estrategista que movia o destino de casas e impérios.
     

    O resto do dia passou como um borrão. Servos indo e vindo, preparando o grande salão, mensageiros chegando com confirmações de presença, soldados ajustando as rotas de segurança. Eu me vi no meio daquilo tudo, tentando parecer calmo enquanto por dentro sentia a velha inquietação, aquela sensação de que cada passo me levava mais fundo num abismo do qual não haveria retorno.
     

    Claire me ajudou a vestir o manto escuro com o brasão dos Aníbal. As mãos dela tremiam, mas o olhar era firme.

    — Quando tudo começar, fique perto de mim — pedi. — Se as coisas derem errado…
     

    — Vão dar certo — ela interrompeu. — Porque você vai fazer dar.
     

    Nix apareceu logo depois, ajustando os próprios adornos, o rabo balançando impaciente.

    — Eu odeio política — resmungou. — Mas, se alguém tentar algo, prometo que vai sair sem as orelhas.
     

    Sorri.

    — Conto com você.
     

    As horas seguintes passaram lentas. Reuni alguns homens de confiança, verifiquei os relatórios da guarda, mandei reforçar a segurança do perímetro. Era tudo rotina, mas a mente insistia em retornar à noite anterior, ao riso contido de Claire, ao olhar sereno de Nix, ao toque de Lenora sobre meu ombro dizendo que “a história só respeita quem ousa escrevê-la”.
     

    O sino indicava o meio da tarde quando um ruído distante me fez erguer a cabeça.

    Passos apressados. Um dos criados, ofegante, surgiu à porta.
     

    — Senhor… notícias do Palácio.
     

    — Fale — disse sentindo o estômago afundar. Lenora e Pandora tinham ido ao castelo, arrebanhar os anciãos do nosso lado.
     

    Ele hesitou, o rosto pálido.

    — Houve uma movimentação. O Conselho dos Anciãos se reuniu antes da hora. Juliani… Juliani estava com eles.
     

    Um frio percorreu minha espinha.

    — E Lenora?
     

    — Presa. — A palavra saiu quase num sussurro. — Ela e a senhorita Pandora. Acusadas de alta traição contra o trono.
     

    Por um instante, o mundo pareceu parar. O silêncio tomou conta da sala, pesado, denso.

    — Quem ordenou? — perguntei, já sabendo a resposta.
     

    — O próprio Juliani. — O criado engoliu seco. — Tiberius Vulkaris está com ele. Parte da Guarda Imperial cercou o Palácio. Dizem que o povo foi afastado à força.
     

    Meu punho se fechou com força sobre a mesa. A madeira rangeu, rachando sob o impacto. Tudo aquilo, semanas de preparo, o plano de Lenora, o sacrifício de Pandora, ruíra em questão de horas.
     

    Juliani agira primeiro.

    E o império, mais uma vez, mostrava os dentes.
     

    — Quando isso aconteceu?
     

    — Há menos de uma hora. — Ele estendeu um pergaminho. — Um mensageiro deixou isto no portão. Disse que era para o senhor, em mãos.
     

    Peguei o rolo, sentindo o selo ainda quente sob os dedos, o selo de cera com o emblema do trono imperial.

    Rompi-o.
     

    Dentro, apenas uma frase, escrita com a caligrafia firme e cruel do Imperador:
     

    “Quem se opor a mim, queimará.”
     

    Nada mais.
     

    A raiva veio como uma maré. Subiu devagar, depois tudo engoliu.

    Juliani sempre foi previsível em sua soberba. Mas aquilo… aquilo era mais que política. Era uma declaração de guerra.
     

    Empurrei a cadeira para trás e comecei a andar em círculos.

    As palavras de Lenora ecoavam em minha mente: “Quando o império tremer, você deve ser o alicerce.”
    Mas como ser alicerce quando o solo todo se desfaz?
     

    Nix entrou sem bater, os olhos faiscando.

    — Ouvi os rumores. É verdade?

    Assenti.

    — Juliani prendeu Lenora e Pandora. Dizem que Tiberius está com ele.
     

    Ela cerrou os dentes.

    — Desgraçado.
     

    — Ele sabe que o povo simpatizava com Lenora, e com você. Sabe que a apresentação de Pandora tiraria sua legitimidade. Por isso atacou antes.
     

    — E agora? — perguntou Claire, surgindo atrás dela. A expressão dela era de quem tentava conter o pavor. Sem sua bisavó, seu tio era o patriarca dos Umbrani, e ele tinha seus motivos para nos odiar profundamente.
     

    Olhei para ambas. O sol entrava pelas janelas altas, tingindo o chão de vermelho. Era quase o entardecer. A hora em que o império inteiro deveria ouvir sobre a nova herdeira. Em vez disso, ouviria sobre prisões, acusações, execuções.
     

    — Agora… — respirei fundo —, agora começamos uma guerra que não pedimos.
     

    Nix se aproximou. — O que pretende fazer?
     

    — Sair imediatamente daqui. Proteger vocês. Dar um jeito de libertar elas. — Passei as mãos pelos cabelos, tentando raciocinar. — Se Juliani quer queimar o mundo, vou garantir que ele arda junto.
     

    — Isso é loucura — disse Claire, a voz tremendo. — Ele é o trono, Lior. Tem os exércitos, os inquisidores, os Vulkaris…
     

    — E nós temos a verdade. — Olhei pra ela. — E o povo. Se soubermos falar no momento certo, ainda há chance.
     

    O silêncio que se seguiu foi denso, quase palpável. Lá fora, o som de sinos ecoava à distância, não o toque festivo do anúncio, mas o toque grave dos decretos imperiais.
     

    Peguei o bilhete de Juliani e o joguei na lareira. A chama devorou as palavras com rapidez.

    — Queime você primeiro — murmurei.
     

    Atrás de mim, Nix ajeitou sua roupa, preparando-se.

    — Então é guerra?
     

    Olhei para as chamas.

    — Ainda não. Mas será.
     

    O fogo refletia no vidro da janela, misturando-se ao último clarão do entardecer
     

    E eu, Lior, não podia mais ser apenas um homem escondido nas sombras.

    O destino me chamava para o fogo. Novamente.

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