Capítulo 26 – O Preço de um erro
Kai continuou imóvel, usando cada segundo para recuperar as sequelas do golpe que levou. Forçando-se a manter o olhar firme na aproximação da criatura. Cada batida daquelas asas parecia acompanhar o ritmo do seu próprio coração; e, à medida que o Scaroth se aproximava, as batidas em seu peito aceleravam junto, pulsando como um aviso do confronto inevitável.
Se eu tentar bloquear, ele vai me espancar de novo. Não posso enfrentá-lo de frente.
Ajustou o peso do corpo discretamente, deslocando o centro de gravidade para a perna direita e recuou meio passo; a esquerda se flexionou um pouco, exigindo o mínimo que suas forças ainda permitiam. Neste estado não resta outra escolha por agora. Já havia definido seu próximo movimento.
Esperou.
O espaço entre eles diminuiu depressa. O Scaroth avançou rápido como uma flecha, o chifre apontou para o peito dele mais uma vez. A recente transformação corporal fazia o corpo do inseto vacilar em certos movimentos, como se ainda estivesse lutando para controlar a própria velocidade.
Kai prendeu a respiração.
Um segundo.
Dois.
O terceiro nem chegou a existir; um estalo agudo rompeu o ar no instante em que o chifre passou diante dele, cortando o espaço como uma arma viva.
“Você quer executar o mesmo ataque contra mim?” disse Kai para o bestial. “Não acha que está me subestimando demais?”
Então se lançou para o lado, sentindo as costelas protestarem com o movimento brusco. O desvio foi apertado, e seu estado o impediu de executar o movimento como havia planejado, assim não saiu ileso. Antes que pudesse finalizar o salto, o chifre raspou contra sua perna, arranhando-a como uma lâmina cega.
O Scaroth tentou ajustar a trajetória, mas a velocidade descontrolada e o ódio mortal pelo inimigo à sua frente impediram seu corpo de responder com a precisão desejada, impossibilitando-o de frear. O chifre se chocou contra a parede com um estrondo seco. Detritos de pedra voaram em múltiplas direções; a estrutura rochosa estalou, e rachaduras se espalharam como teias ao redor do ponto de impacto.
Os joelhos cederam, e a inércia o arrastou para a frente. Quase bateu o rosto no chão, mas conseguiu amparar o corpo com as mãos.
O inseto soltou um guincho enfurecido, lutando para se soltar. O chifre havia se enterrado fundo demais na pedra. As asas batiam em explosões desordenadas de movimento, levantando poeira, fragmentos e ondas de ar que rodopiavam pelo ambiente.
Sábia decisão. pensou Ygdraw, cruzando os braços novamente após soltar um suspiro que levou consigo parte da tensão acumulada sobre seus ombros.
Kai não perdeu tempo.
Mesmo com o peito queimando a cada respiração, forçou as pernas a reagirem. Empurrou o corpo para a frente e agarrou o cajado que havia caído a poucos passos de distância durante o impacto anterior. Os dedos o envolveram com firmeza, embora seu braço ainda tremesse. Usou a arma como apoio para se levantar e caminhou até se aproximar do Scaroth preso na parede.
“Não vou deixar… que isso termine do seu jeito.” murmurou, mais para si do que para a criatura.
Levantou o cajado e desferiu uma sequência rápida de golpes contra os espaços entre as placas, bem nas articulações das asas e das pernas da criatura, mirando as juntas que anteriormente haviam se mostrado pontos vulneráveis.
Mas, desta vez algo diferente aconteceu.
A carapaça recém-evoluída absorveu a maior parte da força. O cajado reverberava a cada impacto com o rebote; a dor subiu pelos braços de Kai até atingir os ombros, como choques curtos.
Ele enrugou o rosto e estreitou os olhos, sentindo a frustração se apertar junto da dor.
Também ficou muito mais resistente…
Sem tempo a perder, antes que o corpo perdesse o ritmo, ajustou a posição. Saltou sobre o Scaroth, apoiando o pé em uma das partes da perna traseira e usando o próprio cajado como apoio para alavancar o corpo até as costas do inseto.
O Scaroth reagiu com extrema violência. Apesar da inteligência limitada, ainda conservava um resquício instintivo de percepção. Lembrava-se bem do que havia acontecido com o companheiro e agora preso em uma situação parecida, um reflexo de medo percorreu seu corpo, fazendo-o reagir de forma explosiva. Começou a sacudir-se com saltos e balanços extremamente exagerados; as asas se agitaram repetidamente em movimentos curtíssimos, tentando desalojar o humano sobre si.
Kai cravou o pé entre duas placas, tentando se estabilizar. O mundo dançou ao seu redor; cada salto do inseto ameaçava lançá-lo ao chão. O corpo latejava a cada solavanco que recebia.
Se eu cair agora… só estarei repetindo os erros do passado.
Seus olhos tatearam o corpo da criatura, buscando algum ponto que pudesse usar. Entre os movimentos intensos do Scaroth, quando estava quase desistindo e optando por outra tática, encontrou uma pequena junção entre a base da cabeça e o primeiro segmento da costa. Uma fresta fina, quase imperceptível.
Sem perder um segundo sequer, ergueu o cajado e enfiou a ponta naquele espaço.
Não entrou com a mesma facilidade como da outra vez.
A resistência foi imediata; parecia tentar atravessar uma camada de pedra compactada. Seus músculos protestaram no instante em que fez contato usando sua força. O cajado deslizou apenas alguns milímetros, abrindo um buraco mínimo, quase insignificante.
O bestial enlouqueceu.
Um guincho agudo ecoou por toda a câmara, reverberando pelas paredes. O corpo inteiro do inseto se contorceu, liberando uma aura assustadora. As asas se abriram e fecharam em golpes violentos que cortavam o espaço, tentando acertar o jovem.
Os dedos úmidos de suor escorregaram um pouco sobre a madeira do cajado, e Kai quase perdeu a pegada.
“Aguente… só mais um pouco…” murmurou, mas sua voz foi abafada pelos ruídos intensos da batalha.
Reuniu tudo o que restava de força nas costas, braços e mãos e desferiu uma sequência de estocadas curtas e brutais, sempre no mesmo ponto, aprofundando a ponta do cajado na fresta a cada golpe. Um pequeno estalo soou e depois outro. Finalmente, na sexta estocada, a camada cedeu, abrindo uma fenda maior por onde um líquido branco e espesso vazou.
Em meio a tudo isso, o bestial inseto não ficou parado apenas esperando.
Em um movimento desesperado, o Scaroth finalmente conseguiu arrancar o chifre preso à parede. O corpo dele girou de forma brusca; a inércia do movimento, somada ao bater repentino das asas em plena força, foi o bastante para arremessar Kai para longe.
Ele voou alguns metros pelo ar antes de bater contra o solo. Foi arrastado pelo próprio impulso até parar de bruços; o cajado escapou de seus dedos e foi parar alguns palmos adiante.
Um gemido rouco escapou de seus lábios.
A criatura inclinou a cabeça, protegendo instintivamente a ferida recém-aberta na junção. Mas, apesar da dor, mostrou-se totalmente resiliente e pronta para continuar. As asas começaram a vibrar em um padrão conhecido. Linhas vibrantes começaram a se formar ao redor do corpo, distorcendo o ar à sua volta.
Mesmo com a [Visão De Éther] vacilando, ele ainda conseguia perceber quais eram suas intenções.
Ele vai usar a habilidade de novo… Arregalou os olhos com um certo temor.
Sua força física mal era suficiente para mantê-lo de pé. As pernas tremiam sem controle; a mão que tentava empurrá-lo para cima escorregava no próprio joelho onde se apoiava.
Ele ainda tinha energia interna. Sentia o Éther disponível, circulando dentro de si. Mas acessá-lo exigia foco e uma mente estável e tudo o que conseguia naquele momento era um turbilhão de dor e exaustão.
O inseto não lhe deu tempo para ordenar os pensamentos, e a primeira lâmina de vibração foi disparada. Kai tentou se levantar e saltar para o lado, mas o corpo não obedeceu. A lâmina atingiu sua coxa.
O membro acertado falhou, dobrando-se sem qualquer resistência. Mas ele não podia ficar parado; pelo canto do olho, conseguiu ver outro ataque vindo em sua direção. Então deitado rolou pelo solo áspero, sentindo a vibração da habilidade agitar sua perna.
A segunda lâmina passou a poucos centímetros de seu ombro, cortando parte do chão no trajeto. E não parou por aí. Ondas de vibração foram lançadas em sequência, descontroladas, como se a criatura despejasse toda a fúria em cada ataque. Marcas começaram a se multiplicar pela câmara; fissuras se abriram no chão em todas as direções.
Quando achou que conseguiria sair daquela situação, sentindo enfim a exaustão clara da criatura, um obstáculo surgiu em seu caminho. Incapaz de alterar a trajetória, acertou a rocha que se projetava do solo, fazendo-o parar por um instante.
“Oh merd…!”
Não teve tempo de terminar o xingamento.
Duas lâminas sucessivas o atingiram. A primeira acertou-lhe o flanco, atravessando os músculos já doloridos; a segunda atravessou o meio das costas, e o corpo estremeceu sob os efeitos colaterais da habilidade. Um tremor nauseante percorreu cada parte de si. A mente começou a se fragmentar, sendo possuída por uma tontura e logo em seguida uma escuridão parcial. Aquela tenacidade de permanecer consciente começou a se entregar a uma vontade de relaxar e dormir.
Mas, no instante seguinte, foi arrancado à força desse sentimento por uma dor súbita, tão intensa que liberou uma onda de adrenalina colossal, varrendo até mesmo os efeitos colaterais que o haviam paralisado. Quando olhou instintivamente para a fonte, o próprio braço esquerdo, seus olhos se arregalaram, e a face empalideceu no mesmo instante.
O bestial havia sido decisivo. Não esperou nem um segundo após acertar a primeira habilidade. Avançou sobre o humano e, com um golpe esmagador de seu chifre no braço esquerdo de Kai, decepou o membro com pura força bruta.
“Eu não queria falhar de novo…” murmurou, com uma lagrima escorrendo enquanto seus olhos se fechavam lentamente.
Do outro lado, Ygdraw deu um passo à frente. A decisão de intervir enfim havia atravessado a barreira que ela mesma impusera. Mas, antes que pudesse mover completamente o corpo, seus os olhos se arregalaram. Percebeu, tarde demais, que havia tomado a decisão um passo atrasado e seu aprendiz pagou o preço por isso.
Então, algo diferente atravessou o campo e sua sutil percepção captou na hora.
Não vinha do Scaroth. Mas sim do corpo caído de Kai.
Tomado por uma tremenda frustração e uma grande angústia, o mundo foi escurecendo ao seu redor. A dor perdeu o significado. O peso do próprio corpo desapareceu. O chão, a câmara, aquele zunido irritante do inseto; tudo começou a se dissolver em um silêncio profundo.
Sua mente vagou no meio daquela escuridão, incapaz de compreender o que havia acontecido. Foi então que percebeu que havia retornado a sua forma Etheria. A mesma de quando acordou em Etheryum; uma de pura energia.
Eu morri? pensou, sem entender onde estava nem como havia chegado ali.
Então uma voz profunda reverberou em seu inconsciente. “Está na hora daquele que julgara acordar.”

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