Capítulo 250: Isadore
Acordei em uma cama estranha, encarando um teto que eu não reconhecia. O cheiro de pó e mofo me invadiram. Demorei alguns segundos até entender onde estava. O corpo ainda respondia mal. O estômago revirava, a cabeça pesada. Teleportar daquele jeito sempre cobrava um preço. Estava aprendendo do jeito mais difícil.
Virei o rosto devagar. Havia outra cama ao lado. Mesmo na penumbra, reconheci Lenora. Estava imóvel demais. A respiração vinha curta, irregular. O corpo parecia menor, encolhido sob os lençóis improvisados. Nunca a tinha visto assim. Os torturadores do Imperador não tinham se segurado.
— Maldito — murmurei para mim. A raiva por todas as injustiças entalada na garganta.
Apoiei os pés no chão e me levantei com cuidado. Encostei a mão em sua testa. Quente. Febre alta. Seu corpo ainda era o campo de batalha imediato, tentando se consertar.
Minha mana tinha se recuperado parcialmente. Não estava cheio, longe disso, mas era suficiente. Inspirei fundo e deixei a energia fluir com cautela. Não podia errar. Uma cura profunda demais poderia causar choque. Fraca demais não resolveria.
Canalizei aos poucos e com calma, seguindo os caminhos internos.
Senti a resistência do corpo dela, como se ainda lutasse contra algo que já tinha passado. A febre começou a ceder. A pele esfriou sob meus dedos. O inchaço do rosto diminuiu lentamente. Os hematomas clarearam. A respiração ganhou ritmo.
Lenora não acordou, mas o corpo relaxou.
Soltei o ar devagar. Não percebi quando tinha prendido.
Foi então que percebi as vozes. Sussurros abafados vindo do quarto ao lado. Muitas presenças. Senti a mana deles através da parede. Me afastei da cama e atravessei a porta.
O cômodo ao lado era um depósito. Caixas de madeira empilhadas, prateleiras antigas, sacos de pano jogados num canto. O cheiro era de poeira velha, grãos e esquecimento. Alguns anciãos dormiam no chão, cobertos por mantas improvisadas retiradas de uma das caixas. Outros estavam sentados, encostados nas paredes, falando baixo.
Pandora estava de pé, imóvel, como se montasse guarda. Os olhos atentos não saíam da inquisidora.
Ela estava acordada. Sentada no chão, amarrada, com algemas de supressão de mana presas aos pulsos. Uma mordaça improvisada cobria sua boca. Um dos olhos estava roxo. Lembrei vagamente do impacto contra a parede. Aquilo tinha sido Pandora.
Pandora se moveu no instante em que me viu. Em dois passos estava diante de mim e me envolveu com força.
— Lior… — disse, a voz baixa, mas tensa. — Pandora precisa de você. Eles também.
Indicou os Anciãos adormecidos. Apesar da mana interna que cada um cultivava que os mantinha em forma, o desgaste era visível. Seus corpos e mentes tinham sido levados além de seus limites.
Ela apontou com o queixo para a inquisidora.
— Essa aí tentou fugir. Tive que colocar no lugar dela.
— Fez bem — respondi. — Mas precisamos falar com ela. Contar a verdade. Precisamos da igreja, ou parte dela, do nosso lado.
Pandora fez um som irritado pelo nariz, mas não retrucou. Estava exausta demais para discutir.
— Já cuidei da Lenora — continuei. — Ela vai se recuperar. Deve demorar, mas vai. Acho que consigo restaurar os dedos, quando for possível.
Os olhos dela se encheram d’água. Não chorou. Apenas assentiu, engolindo seco.
Afastei-me e comecei a verificar os outros anciãos. Um por um. Cura simples. Estabilização. Nada além disso. O suficiente para evitar problemas maiores.
Fisicamente, ficariam bem. Mas suas cabeças, eu não sabia o quanto de coragem ainda restava nelas.
Juliani tinha sido eficiente. Agiu rápido, com a forca do estado. Isolou, torturou Lenora onde podiam ouvir. Medo funcionava melhor quando acompanhado de incestados.
Além disso, as famílias deles estavam vulneráveis. Ilhas isoladas, mas não inacessíveis. Reféns da força conjunta do Império e dos Vulkaris.
Cada família tinha sua ilha. Com a pedra de ancoragem adequada, a névoa se tornava estrada. A distância não significava nada, e ainda, impedia fugas e informações de circular.
Eu não tinha dúvidas de que representantes do Império já estivessem se movendo. Eles sabiam. Todos ali sabiam. O silêncio pesado dizia isso.
Se eu não pudesse proteger essas famílias na guerra que Juliani iniciou, Pandora governaria ruínas habitadas apenas por mortos.
Puxei uma caixa vazia e me sentei diante da inquisidora. Pandora se posicionou atrás de mim, silenciosa, alerta.
Retirei a mordaça.
— Me desculpe, senhora inquisidora… — comecei.
— Isadore — ela interrompeu, com voz firme, tentando manter o controle da conversa. — Meu nome é Isadore, lorde Lior. Lembro de você do julgamento. Você parece não lembrar de mim.
— Lembro, sim. Só não do seu nome — respondi. — Mas vamos deixar isso claro: quem faz as perguntas agora sou eu. Fiz errado em manter você viva?
Ela sustentou meu olhar. Havia medo ali, mas também algo mais. Curiosidade e algum desafio.
— Depende — disse. — Você é um traidor? Se sim, foi um péssimo negócio me deixar viva — falou ela, sem medo, me encarando nos olhos. — Sempre foi bom com palavras. Virou aquele tribunal inteiro a seu favor. Até hoje não entendo como. O outro garoto… Dante… também não mentiu.
— O que fiz foi dizer mais verdades do que ele — menti, sem piscar. — E não. Ninguém aqui é um traidor. Quero provar isso a você.
Inclinei levemente o corpo para frente.
— Sabe quem é essa mulher?
Isadore olhou para Pandora e assentiu.
— Sabe mesmo? — continuei. — Sabe que ela é a filha sobrevivente de Arturus. O herdeiro legítimo do Império. O escolhido de direito.
O choque foi breve, mas real. Os olhos se abriram um pouco mais. Rápido demais para ser fingido.
— Não — disse após um instante. — Isso eu não sabia. Se for verdade… é uma coisa que pode abalar o império.
— Tenho provas. Lenora também. — Cruzei os braços. — E ela tem evidências de que a invasão da capital foi orquestrada por Annabela e Juliani.
O queixo dela caiu levemente. Pela primeira vez, perdeu o controle da expressão.
— Isso é… — começou, mas não terminou.
— Eu sei como soa — completei. — Grande demais. Absurdo demais. Exatamente o tipo de mentira que ninguém ousaria inventar sem ter certeza.
Ela ficou em silêncio. Olhou para os anciãos. Para Pandora. Para mim.
— Se isso for verdade — disse enfim — o que você espera de mim?
— Que ouça — respondi. — Que veja as provas. E que, quando chegar a hora, possa nos ajudar, roendo o suporte deles.
Pandora deu um passo à frente.
— Não pedimos sua fé — disse ela. — Só que não nos entregue antes de entender.
Isadore respirou fundo. O medo ainda estava lá. Mas agora havia algo mais perigoso: dúvida.
— Então me mostrem — disse. — Tudo.
Encostei as costas na caixa.
— Assim que Lenora acordar mostramos. Mostramos tudo que quiser saber.
Aquela noite ainda estava longe de acabar.

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