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    A forja de Ga-el batia no ouvido antes de aparecer. Martelo, fole, metal cantando. O calor vinha em onda e grudava na pele. Marco entrou com os pergaminhos na mão e parou na primeira bancada livre.

    Dois ferreiros ergueram o olhar na hora.

    — Cadê a Wynrae?

    — Hoje sou só eu.

    O mais velho apontou pro papel com o queixo.

    — Então fala.

    Marco abriu o pergaminho e segurou as pontas com a palma.

    — Eu preciso que vocês façam essa peça.

    O ferreiro baixou o olhar. Seguiu o desenho em silêncio, voltou no mesmo trecho, e olhou de lado pro colega.

    — Isso encaixa com quê?

    — Eu trago a outra parte. — Marco tocou no detalhe marcado. — Aqui tem que ficar liso. Nada pra pegar na pele. Nada pra raspar.

    O ferreiro passou o dedo no ar, acompanhando a marcação.

    — E isso aqui?

    — Encaixa aqui. Sem apertar demais.

    O outro ferreiro encostou na bancada, perto demais pra não ser curiosidade.

    — Pra que serve?

    Marco não deu o nome.

    — Pra trabalho.

    O mais velho segurou o riso.

    — “Trabalho” é metade do Império.

    Marco apontou de novo, mais preciso.

    — Preciso de dois. Um deles com esse ajuste maior.

    O ferreiro pegou carvão e rabiscou por cima, marcando medidas.

    — Tudo bem, volta quando a luz cair.

    Marco fechou o pergaminho.

    — Hoje ainda?

    — Hoje. — O ferreiro repetiu, já irritado com prazo, mas com a mão indo pro metal.

    Marco não esperou o bom humor voltar.

    — Eu preciso de um machado.

    O segundo ferreiro soltou um som de deboche.

    — Você não é soldado. Pra que quer um machado?

    — Pra cortar uma árvore.

    O mais velho encarou Marco como se ele tivesse pedido uma lança pra pescar.

    — Você não pega ferramenta daqui e some no mato.

    — Eu devolvo.

    — Não é assim que funciona.

    Marco manteve a voz no mesmo nível.

    — Eu preciso para hoje.

    O segundo ferreiro cruzou os braços.

    — Você sabe usar?

    Marco olhou pra mão dele. Calo de martelo, punho forte, postura de quem aprendeu a segurar arma, mas gastava o dia no ferro quente.

    — Tá com medo de eu estragar a ferramenta e você não dar conta de consertar?

    A risada veio, seca.

    — Tá me desafiando?

    “Você tem certeza disso?”  a voz da Nova entrou, lisa.

    Marco respondeu sem olhar pro nada.

    — Eu tenho.

    O ferreiro empurrou a bancada pra abrir espaço e puxou uma vara de madeira usada pra mexer brasa, ponta marcada de queimado.

    — Encosta em mim uma vez. Eu te dou o machado. Encosto em você, acabou.

    Marco largou os pergaminhos na bancada e pegou outra vara do chão, mais leve.

    O ferreiro avançou primeiro, ombro indo junto, força de oficina.

    Marco não bateu de frente. Saiu da linha, pé no lugar certo, vara subindo só o necessário. A madeira do outro passou onde ele tinha estado.

    O ferreiro tentou corrigir no impulso e girou de novo, mais agressivo, querendo encerrar logo.

    Marco já estava perto. A ponta da vara dele tocou o antebraço do ferreiro, bem onde o músculo travava quando segurava martelo.

    Um toque. Um aviso.

    O ferreiro parou com a vara no ar, encarou o próprio braço, e depois encarou Marco.

    — Hm.

    “Olha só.” Nova provocou. “O treino da general serviu pra alguma coisa. Você não morreu. Progresso.”

    O mais velho soltou uma risada baixa, sem alegria, só reconhecimento.

    — Pega o machado. E traz de volta com a lâmina inteira.

    O segundo ferreiro foi até um canto, puxou um machado de cabo gasto e jogou na mão de Marco.

    — Se você voltar sem isso, a gente faz um cabo novo com o seu braço.

    ***

    O vidraceiro já fazia movimento de fechar: pano por cima de bancada, ferramenta voltando pro lugar, fogo sendo domado.

    Ele viu Marco e não escondeu a cara.

    — Eu já ia embora.

    — Eu sei.

    O vidraceiro enfiou a mão debaixo da bancada e puxou um embrulho de pano grosso. Jogou na frente dele.

    — Pega. E não deixa bater em nada.

    Marco segurou com as duas mãos. O tilintar veio de dentro, baixo, irritante.

    — Deu tempo?

    — Deu tempo de eu perder o resto do dia. — O homem apontou com o queixo pro pano. — Tá aí.

    Marco abriu o embrulho devagar, ponta por ponta.

    Vidro liso. Peças de tamanhos diferentes, todas com furo no topo. Discos finos que pegavam a luz e devolviam um risco. Prismas pequenos, cortados com cuidado. No meio, a estrela.

    Ele pegou a estrela e ergueu na direção da porta. A luz atravessou e riscou o chão.

    — Ficou bom.

    — Bom é o que me deixa trabalhar. — O vidraceiro encostou na bancada. — Isso aí eu faço uma vez. E acabou.

    Marco largou a estrela de volta e puxou uma esfera. Girou na palma, procurando alguma falha. Não encontrou nada.

    Ele levantou a esfera pro feixe que entrava torto pela entrada. O mundo do lado de fora entortou um pouco. A borda da porta virou curva.

    O vidraceiro soltou um som pelo nariz.

    — Pra pendurar, serve. Pra lente do seu brinquedo, você ia me encher.

    Marco pegou um prisma e girou. A luz cortou a bancada e quebrou em duas linhas. Ele marcou o prisma num canto do pano, separado dos mais frágeis.

    — Esse aqui tá limpo.

    — Esse aqui me deu raiva. — O homem apontou com o dedo sujo de pó. — Eu não faço mais fino do que isso. — Se quebrar, não volta aqui chorando.

    Marco assentiu e juntou as peças por tamanho, rápido.

    Ele já ia fechar o embrulho quando o vidraceiro puxou outro pacote, menor, amarrado.

    — E isso aqui.

    Marco segurou.

    — É o que você pediu depois. — O homem encarou Marco. — Não abre aqui.

    Marco travou um instante.

    — Por quê?

    — Porque eu não quero ninguém vendo. — A voz saiu baixa, seca. — Eu fiz. Você leva. E você não volta com pedido desses em cima da hora.

    Marco prendeu o pacote menor junto do maior, apertou os nós e testou o peso no antebraço.

    — Da próxima eu te aviso antes.

    — Ótimo. — O vidraceiro apontou com o queixo pra saída. — Vai logo. Antes que eu mude de ideia.

    Marco guardou tudo contra o peito e saiu.

    O vidro reclamou uma última vez dentro do pano.

    “Você acha mesmo que ela vai gostar disso?” Nova falou dentro da cabeça dele.

    — Eu espero que sim.

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