Índice de Capítulo

    div

    🐇🐰🎁🥚

    O ar ficou pesado. Denso como fumaça de óleo queimado, viscoso como chumbo líquido, espesso e inescapável. A vibração no ambiente não era um simples tremor — era um aviso gravado no próprio tecido do mundo. Algo estava chegando. 

    Ana deu um passo para trás.

    Não foi uma escolha, seu corpo simplesmente reagiu. Os instintos ancestrais gritaram. O tipo de grito que vem de uma época antes do fogo, antes da palavra. Antes da humanidade entender que certos terrores não podem ser enfrentados — apenas temidos.

    — O que…?

    Gabriel virou-se para ela tão rápido que o movimento pareceu um golpe, os olhos antes preguiçosos e desdenhosos agora carregavam uma dureza de gelo quebrando.

    — Se esconda.

    Foi direto, afiado, uma ordem que não pedia permissão.

    Ana franziu a testa, confusa. Seu corpo reconhecia o perigo, mas sua mente ainda se agarrava à racionalidade, tentando buscar sentido naquilo.

    — O quê? Por quê?

    O céu respondeu antes dele. Não estava apenas mudando — estava se partindo.

    Fendas douradas cortavam o azul com violência, como rachaduras em vidro prestes a estilhaçar.

    A realidade gemeu.

    — Não resta mais nada de mim — Gabriel estalou os dedos, fazendo um pequeno som seco, mas que de alguma forma retumbava, marcando um ponto sem retorno. — Não tenho como me esconder. Não tenho como fugir. Me encontraram.

    Suas asas tremeram levemente, e então, bruscamente. Logo começaram a escurecer, penas tingindo-se de um negro denso, como tinta invadindo um pergaminho sagrado, sujando a pureza. 

    E então, das sombras, algo nasceu.

    Uma foice.

    Absorvia a luz ao redor, sufocando qualquer brilho. Veios azulados pulsavam na lâmina curva, um batimento fantasmagórico que parecia ressoar em sintonia com o colapso do céu. Se assemelhava a veneno correndo sob pele translúcida, dando um charme a mais ao metal negro. Seu longo cabo de madeira escura — maior do que sua própria portadora. — estava entalhado com símbolos que não eram escritos, mas sim cicatrizes que sussurravam promessas.

    Não de dor. Mas de fim.

    A figura alada suspirou fundo, o peso daquele momento carregado em cada fibra de seu ser.

    — Você, Ana, é apenas um acidente. Um descuido.

    A mulher abriu a boca para responder, mas Gabriel ergueu um dedo, pedindo silêncio.

    — Eu sou o mesmo. Um ser esquecido.

    Houve uma risada curta, mas não havia humor ali, apenas um resquício de desdém direcionado ao próprio destino. O suor deslizava por sua têmpora, sua respiração estava errática, e ainda que seus movimentos continuassem fluidos, havia um peso neles, um desgaste que não deveria existir em algo como ele. Sua boca estava seca, a garganta trabalhava entre um respiro e um pigarreio, e pela primeira vez, Ana percebeu o óbvio. Gabriel estava sofrendo.

    — Fomos… abandonados por Deus.

    A primeira corrente caiu, destruindo as nuvens em seu caminho.

    Tinha uma luz pálida, divina, mas também era cruel e indiferente — um decreto impessoal e absoluto. Ana sentiu cada fio de seu ser estremecer. A simples presença daquela coisa a esmagava de dentro para fora, alertando centímetro por centímetro de seu corpo que não deveria permanecer diante daquilo. 

    Mas o que ainda passava por sua mente, foram as palavras de Gabriel.

    — Abandonada…

    Sorriu de modo radiante. Um sorriso tão grande que ia além do vale da estranheza, adentrando no perturbador.

    Estava aliviada.

    O peito ficou mais leve, quase etéreo. Por que sentia que poderia cantar?

    — Não uma heroína, ou alguém com grandes propósitos… só alguém que foi jogada pra um canto…

    — Menos que isso. — Gabriel não hesitou em responder. — Pra te jogarem pra um canto, teriam que primeiro saber que você existe.

    Se entreolharam por um instante, quietos. E então, riram juntos.

    O riso de quem percebeu que se eram tão insignificantes, não havia o que temer. 

    E no meio da risada, o céu rugiu.

    Outra corrente caiu.

    Gabriel cerrou os dentes e girou a foice em suas mãos, um movimento tão natural quanto respirar. Um instante ele estava ali. No outro, Ana sentiu o impacto de ser lançada para o canto da forja sem direito à escolha.

    Seu corpo encontrou o chão com força, mas sua mente mal registrou a dor. Estava ocupada demais tentando entender o que diabos acabara de acontecer.

    “Se esconda.”

    Lembrou da voz suave de seu companheiro. Ela estava um pouco irritada. Não, ela estava puta da vida. Mas poderia enfrentar aquilo? É claro que não. Não conseguia sequer imaginar um futuro onde isso fosse possível.

    Zombou de si mesma, repleta de desprezo. Agarrando firmemente suas duas obras-primas, se abaixou atrás da grande bigorna. Assim que fez isso, voltou a rir de si mesma.

    — Se esconder? Se esconder de correntes que vieram misteriosamente do céu? Ah, vai se foder, Gabriel.

    A frase saiu quase sozinha diante do absurdo. Sentiu-se ridícula ao ficar ali encolhida, então bufou e voltou a se erguer. 

    Se fosse morrer, ao menos apreciaria uma boa luta.

    Apoiou o cotovelo no grande pedaço de ferro e descansou o rosto no punho fechado, a pose despreocupada contrastando violentamente com a cena à sua frente.

    E então, a voz de Gabriel voltou aos seus ouvidos.

    — Você deve ter ouvido a história de que o mundo foi criado em sete dias. Não tem como alguém não ter ouvido essa porcaria toda.

    Ana piscou, atordoada. Não conseguia entender como conversar ainda fazia sentido no meio de toda aquela bagunça. Mas Gabriel não estava esperando uma resposta. Seus lábios se moveram novamente, como se estivesse apenas relembrando um fato inevitável.

    — Mas essa narrativa, embora não inteiramente falsa, é imprecisa.

    A voz dele acompanhou o corpo em movimento. Uma troca de posição precisa, fluida, que o colocou em uma defesa intrincada.

    Era como ver uma pintura renascentista ganhando vida — bela, melancólica, trágica. Cada pequeno músculo contido, mas longe de estar despreparado.

    — A verdade é que o Criador levou oito dias para completar Sua obra.

    A terceira corrente caiu.

    Ana sentiu seu coração descer até os pés, uma sensação absurda de deslocamento se espalhando por suas entranhas

    — No oitavo dia, o único dia do qual Ele não se orgulha, o dia do segredo bem guardado… Deus criou a morte. — A frase saiu em um sussurro rouco, como se até o próprio Gabriel temesse dizê-la em voz alta.

    Já não falava com Ana, era como se apenas narrasse memórias.

    — Eu, Gabriel… sou o arrependimento dos céus.

    Não apenas palavras soltas. Uma confissão.

    Ele baixou a cabeça por um instante, e quando ergueu o olhar novamente, o caos se desenrolou.

    Não foi combate. Não foi uma batalha justa. Na verdade, lembrava uma mera execução.

    As correntes que desciam dos céus não eram apenas armas — eram sentenças, eram decretos, vozes inquestionáveis de uma divindade que não perdoava.

    Cada elo brilhava com uma luz fria e indiferente, negando qualquer misericórdia ou redenção. E, abaixo delas, a bela arma negra de Gabriel cortava o ar como um último grito de desafio. Um contraste de sombras contra o cinza do céu, sua foice desenhava arcos tão ferozes que pareciam capazes de dividir montanhas.

    Ele dançava com a morte que carregava dentro de si.

    Cada golpe era um pedaço de revolta destilado em lâmina, uma fúria que não aceitava a condenação imposta. 

    Ana já o tinha visto lutar antes, mas nunca assim. 

    Nunca com tanta raiva. Nunca com tanto desespero.

    E também, nunca com tanta beleza.

     Mas as correntes não ligavam para isso. Não se importam com ira — assim como não precisavam dela. Elas apenas existiam.

    Ajustavam suas trajetórias como se previssem seus desvios.

    Não erravam. Negavam a ideia de resistência.

    Rapidamente o primeiro elo o atravessou.

    Rasgou através do anjo sem piedade. Não apenas sua pele, atingiam algo mais profundo. Elas arrancavam pedaços daquilo que ele era, cada impacto um clarão de dor pura que tingia suas magníficas asas de um vermelho profano.

    Ele rugiu.

    Segurou as correntes com mãos que pareciam queimar e puxou com uma força que fez o ar ao redor tremer.

     Por um breve, efêmero momento, Ana pensou que ele conseguiria se recuperar. 

    Que talvez, contra toda lógica, Gabriel fosse romper aquilo que os céus haviam decretado.

    Mas o céu não negocia.

    E, em resposta, desceu uma torrente ainda mais densa, ainda mais cruel, ainda mais definitiva.

    A esperança desapareceu.

    Ele sabia.

    Ela sabia.

    Seus olhos voltaram a se encontrar, e entre o caos, um adeus silencioso foi trocado.

    — Irônico, não é? — A voz dele veio suave. — A morte está prestes a morrer.

     Havia diversão ali, e até um pequeno sorriso de quem já aceitou a piada cósmica, mas lágrimas de sangue escorriam por sua pele pálida.

    — Espero que você possa me perdoar, Ana… por tentar torná-la uma arma na minha guerra pessoal contra Aquele que me fez assim.

    Seus passos vacilavam quando ele se aproximou, os últimos resquícios de força guiando-o até ela, mesmo com as correntes puxando seu corpo em direções opostas.

    Então, sem aviso, a envolveu em um abraço.

    Havia cansaço ali. Um lamento sem palavras.

    E então, o beijo. Suave. Trêmulo.

    Algo tão distante da brutalidade do que estava acontecendo que, por um segundo, tudo pareceu errado. Como se o universo estivesse tentando forçar a existência de um momento que não deveria existir.

    Naquele toque, Gabriel selou sua despedida.

    Deixou também, sua última dádiva. Um presente que não poderia ser devolvido.

    — Com isto, te liberto de sua solidão. 

    A respiração dele falhou. Seus olhos, mesmo cheios de dor, mostraram paz.

    — Acorde, minha amiga. E lembra-te…lembra-te que vai morrer.

    A corrente final caiu sobre ele.

    Com um puxão brutal, o céu o reclamou.

    Foi rápido demais. Cruel demais.

    Ana permaneceu parada, e as gotas de sangue que respingaram em seu rosto pareciam arder em sua pele.

    Não gritou. Não correu.

    Seu corpo não se moveu. Mas dentro dela, algo sumiu junto com ele.

    — Adeus, Gabriel.

    Sua voz saiu mais baixa do que pretendia. Um suspiro que se perdeu no vento.

    O vazio em seu peito era tão absoluto que parecia ter substituído sua própria essência. 

    Estava novamente sozinha… era isso?

    Havia perdido a única pessoa que, por um tempo impossível de medir, fora seu único elo com o mundo.

    Raiva e saudade se misturavam dentro dela, sem direção, sem propósito.

    O mundo todo parecia ter se tornado um túmulo sem lápide.

    Mas então, naquela abertura monstruosa que permanecia no céu, algo surgiu.

    Uma luz.

    A porra de uma luz.

    Como se o universo estivesse brincando com sua paciência, como se soubesse que esse era o único detalhe de um passado distante que ela nunca conseguiu esquecer.

    Quase tudo sobre sua antiga vida havia desaparecido — os dias no escritório, os amigos, o metrô lotado, até mesmo sua família, todos reduzidos a um borrão sem forma dentro de sua mente já desgastada.

    Mas aquela luz… a cintilação arrogante que ela viu antes do Grande Vazio…

    Essa, o tempo nunca conseguiu apagar.

    E agora, lá estava ela de novo. Brilhando. Zombando.

    Tudo se dobrava sobre si mesmo acima de sua cabeça, o céu um espetáculo distorcido de estrelas que não deveriam estar ali.

    Ana sentiu a bile subir pela garganta.

    — Quer saber? Foda-se! — gritou, as palavras rasgando o silêncio com toda a frustração acumulada de séculos. — Eu não ligo!

    Se virou, decidida a simplesmente ir embora. Sem mais batalhas, sem mais mistérios cósmicos, sem mais joguinhos divinos.

    Mas o universo nunca foi conhecido por respeitar decisões.

    Seu corpo foi subitamente arrancado do chão.

    O ar fugiu de seus pulmões, suas pernas se debateram no vazio por um breve instante.

    — Mas que merda vai acontecer agora? — sussurrou, enquanto sentia sua consciência sendo puxada para longe.

    E então… o nada. 

    A escuridão engoliu tudo.
    div


    Quer apoiar o projeto e garantir uma cópia física exclusiva de A Eternidade de Ana? Acesse nosso Apoia.se! Com uma contribuição a partir de R$ 5,00, você não só ajuda a tornar este sonho realidade, como também libera capítulos extras e faz parte da jornada de um autor apaixonado e determinado. 🌟

    Venha fazer parte dessa história! 💖

    Apoia-se: https://apoia.se/eda

    Discord oficial da obra: https://discord.com/invite/mquYDvZQ6p

    Galeria: https://www.instagram.com/eternidade_de_ana

    Curtiu a leitura? 📚 Ajude a transformar Eternidade de Ana em um livro físico no APOIA.se! Link abaixo!

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (3 votos)

    Nota