Capítulo 193 - Ninho de Ferro

— A Ana tá brigando de novo? Já é a terceira vez essa semana.

A observação veio carregada de tédio, dita sem muito compromisso.

— Ela tá ansiosa. Precisa extravasar de alguma forma.

Madame respondeu com a mesma calma de sempre, despejando mais uma caneca de sua peculiar cerveja artesanal, formando uma espuma densa antes de alcançar a borda.

Sentada ao balcão, Niala pegou a bebida com uma única mão, girando-a nos dedos longos e esguios, como se estivesse avaliando um elixir antigo.

— É animação demais pra mim — murmurou, entornando tudo de uma vez.

Por um instante, permaneceu imóvel, os olhos semicerrados, absorvendo o calor do álcool. Então, o vermelho subiu-lhe ao rosto, e sem qualquer aviso, desabou de cara sobre o balcão.

Madame suspirou. Pegou a caneca quase vazia, bebeu o que restava e, sem pressa, começou a lavá-la.

— Essa mulher nunca aprende… — murmurou para si mesma, esfregando a louça com um pano já gasto.

O refeitório que agora chamava de seu já não era apenas um refeitório, se assemelhava cada vez mais a um pub inglês.

As paredes revestidas de madeira escura criavam um contraste perfeito com a suave luz alaranjada, que se espalhava de forma harmoniosa pelo ambiente. Barris alinhavam-se ao fundo, canecas tilintavam sobre mesas improvisadas, e vozes ecoavam em uma cacofonia acolhedora.

Mas lá fora… lá fora, a transformação era ainda mais notável.

A estrutura metálica e sem alma do navio começava a ganhar personalidade, com pinturas abstratas e tapeçarias improvisadas que davam ao lugar um aspecto mais rústico. 

Os mascarados, cuja natureza não era favorecida pelo exercício físico, haviam mudado seu foco. O treinamento de combate não era prioridade para eles, que já passaram anos chegando ao limite de suas técnicas.

Mas a engenharia, sim.

— Se essa liga for resistente a choques térmicos, podemos criar um mecanismo de resfriamento mais eficiente.

— Mas a estrutura precisa ser maleável o bastante para não quebrar sob pressão.

— E se ajustarmos esse pino aqui, o recuo reduz drasticamente…

As oficinas do Collectio foram tomadas por tais vozes curiosas durante todo o dia.

Eram poucos, mas se espalharam.

Cada peça catalogada, cada mecanismo dissecado e esquematizado em montanhas de cadernos. Páginas preenchidas com desenhos detalhados de engrenagens, anotações rabiscadas sobre combustão, cálculos de peso e impacto. Os corredores metálicos ecoavam com seus sussurros técnicos.

Quando não estavam analisando cada parafuso do navio, estavam auxiliando Ana na criação de novas peças. Os depósitos já possuíam uma diversidade considerável delas, mas não o suficiente para os delírios da capitã.

Modelos novos. Protótipos únicos. Ajustes que só existiam na mente dela.

As fábricas silenciosas agora eram ateliês de guerra.

Assim, aos poucos surgiam alicates de pressão, blocos de culatra, placas de fecho, canos lapidados em diâmetros perfeitos.

Armas de fogo cuidadosamente projetadas. Porque em um mundo sem mana, quem atira primeiro tem a vantagem.

E claro… não podiam esquecer das grandes caronadas, gentilmente apelidadas de “Sopros de Insídia”.

Estavam sendo enfileirados no convés, um a um.

Grandes, pesados, resistentes. Afinal… o que é um navio sem seus canhões?

Em meio a isso, os demais tripulantes não ficavam parados.

Pequenas tarefas os faziam se espalhar como formigas em um ninho em crescimento.

Cada um encontrava um propósito.

Alguns corrompidos se voluntariaram para cozinhar, improvisando receitas mesmo com os suprimentos limitados. Outros se dedicavam à manutenção e organização dos alojamentos, garantindo que o caos da adaptação não comprometesse a eficiência.

E mesmo se não houvesse mais ninguém para empurrar a rotina do navio, havia Alex.

O antigo conselheiro de Insídia já não era o mesmo.

Seu olhar, antes carregado de determinação e propósito, agora era um bloco de gelo sólido. Frio. Distante. Mal conversava.

Não sorria mais.

O homem que já fora um símbolo de liderança e inspiração agora se resumia ao aço forjado pelo sofrimento.

O que restava? Treinamento.

Se antes exigia disciplina de seus soldados, agora beirava o cruel.

Suas sessões haviam dobrado de intensidade, ignorando completamente os efeitos debilitantes do ambiente hostil do navio.

A academia improvisada nunca ficava vazia, e com isso, não só o movimento constante impregnava os corredores, mas também o cheiro de suor e o som da dor de músculos levados até o ponto de ruptura.

Seus guerreiros não podiam ser fracos. Ele não podia ser fraco.

O Collectio não era um lar.

Era uma forja.

E, se dependesse dele, apenas os mais fortes sairiam inteiros do outro lado.

— Se conseguir respirar, consegue continuar.

A frase de Alex cortou o ar como uma lâmina. Cega. Crua.

— Você devia pegar mais leve, Alex. Treinar demais só vai impedir que evoluam.

A voz veio do fundo do corredor. Ana entrou, com Miguel logo atrás.

O salão parou.

Por um momento, o único som restante foi o farfalhar da brisa fria entrando pelas escotilhas. Todos os soldados se curvaram levemente, um reflexo inconsciente perante a presença da antiga rainha.

Ana balançou a mão, dispersando-os sem cerimônia.

— Pegar mais leve… — murmurou Alex, os olhos deslizando para o corpo desmaiado de Amélia sobre os ombros da capitã.

Um mascarado se aproximou de imediato, e Ana passou a guerreira pura para ele com um movimento automático, sem precisar dar ordens.

O homem já vira essa cena se repetir nos últimos dois dias, então não precisava delas. A levou diretamente para a enfermaria, a qual convenientemente havia sido montada dentro da própria academia.

— Não tem como pegar leve com essa aí. — Ana resmungou, estalando os ombros antes de se jogar em um dos bancos da sala.

Abaixou-se, observando os novos piratas ao redor antes de continuar.

Braços enfaixados. Olhos fundos. Posturas rígidas, mesmo exaustos. Acenou, satisfeita, e voltou a olhar para o antigo conselheiro.

— Você podia vir brigar no lugar dela um dia desses. Ainda não tivemos a oportunidade de trocar… hm, ensinamentos — ela dobrou o braço, os músculos deslizando sob a pele com uma definição que poucos ali poderiam igualar.

O canto da boca de Alex esticou levemente, mas não em um sorriso. Foi mais um reflexo do desprezo contido.

— Não vou brigar com você.

— Você é chato demais!

Rindo, Ana se jogou para trás, deitando no banco como se aquilo fosse uma rede de descanso.

Seu olhar continuava analisando a academia.

Os sons retornaram.

Músculos gritando sob tensão. Impactos contra o chão. Respirações forçadas.

Mas era um som monótono.

Previsível.

Ana arqueou uma sobrancelha.

— E esses caras? Como estão indo?

Alex não hesitou.

— Uma merda. Mal aguentam o peso do próprio corpo. Se fazem 30 flexões, já é muito.

Ana franziu a testa. Até ela não pôde esconder o incômodo com aquela afirmação. Estavam acostumados demais a depender da mana.

Antes que pudesse dizer algo, o som de mais passos firmes adentrou a sala.

Dois mascarados entraram.

Cada um carregava três caixas de madeira, simples e sem adornos.

Ana sorriu.

— Bom, espero fiquem felizes! Se tiverem sorte, seus braços são as últimas coisas que vão usar por aqui.

Se levantou num único movimento fluido, estendendo a mão para eles.

— Obrigado, João.

O mascarado acendeu um brilho breve nos olhos, mas nada disse. Apenas assentiu. Ana deslizou os dedos pela tampa da caixa antes de abri-la, quase saboreando o momento.

As outras foram abertas ao mesmo tempo, pelas estátuas, revelando seus conteúdos.

A academia inteira ficou novamente em silêncio, todos os olhos fixos na capitã.

A expectativa crescia, mas Ana manteve o suspense.

Suas mãos deslizaram pelo primeiro item, sentindo o peso, os contornos, os detalhes. Virou-o lentamente de um lado para o outro, como se admirasse uma obra de arte.

— Vocês fizeram um ótimo trabalho nos detalhes finais.

Peças refinadas.

Estruturas metálicas que se entrelaçavam com runas precisas.

Mecanismos moldados à perfeição.

— Os entalhes ficaram lindos… — comentou em um sussurro. Então, sem aviso, virou-se para Alex, apontando o objeto diretamente para ele. — Bang!

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Ficaremos sem imagens por um tempo, mas logo volto a postar!

Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…