Capítulo 199 - Bandeira Branca
O vento sopra forte hoje. Forte o bastante para nos empurrar suavemente, sem precisar forçar as velas. Um bom presságio, penso, enquanto rabisco números no pergaminho amassado sobre a mesa. A tripulação come mais do que deveria. Se continuarmos nesse ritmo, vamos ficar no vermelho antes mesmo de voltarmos para a cidade.
Tenho certeza que as reclamações não vão demorar pra chegar.
“Capitão Ignácio isso, capitão Ignácio aquilo…”
Como se eu fosse responsável pela gula deles. Só precisam gastar menos com putas e deixar mais pra comida, é simples.
— VELAS NO HORIZONTE!
O grito veio do alto. Droga.
Seguro o tinteiro antes que role pela madeira e me levanto de imediato, saindo da cabine para encarar o convés. O sol está forte demais para os meus olhos já cansados, então aperto as pálpebras antes de erguer o olhar para o topo do mastro principal.
— De onde vieram?
Lá em cima, o vigia se inclina um pouco para frente, uma mão segurando firme a luneta, a outra protegendo os olhos do sol escaldante. Ele devia usar mana, é claro, já disse isso mil vezes. Mas tudo bem, sei que mana cansa, também sou um homem das antigas.
Não pude deixar de notar a hesitação antes de responder, e isso me incomoda.
— Do nada, capitán. — A voz dele é carregada com aquele sotaque chiado dos portos do sul. Soa bem nos ouvidos, ele devia cantar mais. — Nenhum porto por perto. Nenhuma outra embarcação nas águas. Só… apareceu.
A pele da minha nuca se arrepia. Isso não é bom.
Caminho até a amurada e tomo a luneta do segundo imediato, ajustando-a com dedos ágeis. O mar está limpo, azul como vidro polido, mas assim que foco no navio ao longe, sinto um peso desagradável no estômago.
Velas negras.
Já vi piratas antes. Já negociei com alguns. Já lutei contra outros. Mas esse navio? Não conheço. A estrutura não segue nenhum modelo que eu reconheça. Grande, mas não pesado. Feito para velocidade, não para resistência. Não parece um galeão de carga, nem uma corveta de ataque. É algo diferente. Algo que não pertence a essas águas.
— É de alguma rede comercial conhecida? — pergunto, ainda tentando processar o que vejo.
O vigia mexe-se desconfortável no mastro.
— Talvez… mas não me parece com nada que já vi, capitán. — Ele franze os olhos. — As velas têm um símbolo… um tipo de crânio? Ou um demônio? É estranho, mas não parece bandeira honesta.
Meu estômago revira.
Estamos tão perto da cidade. Se tivéssemos mais um dia, talvez metade de um, já estaríamos seguros. Mas no mar, uma única decisão errada pode custar tudo.
— Merda… parecem piratas?
Ele hesita de novo. Não gosto disso.
— Não sei dizer. Não são como os daqui, eso es cierto. — O silêncio dele se prolonga, e percebo que há algo mais.
— Fale logo.
— Consigo ver os canhões, señor. Muitos. — Sua voz sai mais baixa, quase tensa. — Não são aqueles barris enferrujados, esses são reales. Pelo menos… treinta. Talvez mais.
Engulo seco, sentindo o gosto salgado da maresia na boca. Trinta canhões. Se estamos vendo essa quantidade de longe, quantos ainda não estão visíveis?
Desço a luneta devagar, olhando para o meu próprio navio. A Aurora Mercante nunca foi feita para guerra. Meia dúzia de canhões, e mesmo assim, mais para afastar predadores marítimos e pequenos ladrões do que para enfrentar algo assim.
Um navio com trinta canhões não se move por pouca coisa.
O que eles querem? Roubo? Sequestro? Somos mercadores simples, não carregamos fortunas. Mas então, por que esse maldito aperto no peito não vai embora?
Viro para minha tripulação. Alguns já notaram o clima estranho. A conversa no convés diminuiu. Um silêncio carregado se espalha. Um silêncio que pesa nos ombros e torna o ar espesso.
Merda.
E então, dou a única ordem possível.
— Ergam a bandeira branca. Agora.
A bandeira sobe.
O branco tremula contra o céu límpido, uma súplica silenciosa, um pedido mudo por bom senso. Não é vergonha, sabe? No mar, saber quando baixar a cabeça é o que mantém um capitão vivo. Nem sempre levantar o branco significa rendição — às vezes, é apenas um acordo não verbal, uma forma de evitar um conflito que não precisa acontecer.
Se não forem nos atacar, passam direto. Se forem, tomam o que querem e nos deixam ir. Bem, quase sempre.
Vamos torcer.
— Armas em punho, idiotas. Mas sem hostilidade.
A ordem sai seca, sem espaço para discussão. Não que isso importe — ninguém gosta de receber uma ordem como essa. Seguro minhas próprias mãos atrás das costas para não trair a inquietação crescente que sobe pela minha espinha.
Os homens obedecem, mas suas mãos estão trêmulas. Eles agarram o ferro frio de facões, pistolas de percussão, mosquetes velhos que talvez nem disparem direito.
E o navio deles se aproxima.
Rápido demais. Rápido de um jeito que não faz sentido.
A distância entre nós encurta num piscar de olhos. O vento não está forte o suficiente para justificar essa velocidade. Não há correnteza favorável. Não há explicação lógica.
Sinto o estômago se fechar ainda mais em um nó doloroso, o tipo de desconforto profundo que aperta o diafragma e sufoca o ar nos pulmões. Tento engolir, mas minha garganta está seca como areia.
Isso é insano. Já estão aqui.
Minha visão treme. Meu corpo falha.
Um peso invisível escorre pela espinha e finca garras em meus joelhos. Eles fraquejam. Um tremor sobe pelas minhas pernas, espalha-se como uma febre silenciosa e ameaça me jogar contra o chão. Seguro firme na amurada, as unhas cravando na madeira. Meu coração bate forte, rápido, como se meu próprio corpo tentasse me avisar antes que minha mente alcance o raciocínio.
Algo está errado. Muito errado.
Olho ao redor. Meus homens também sentem. Alguns piscam rápido, tentando clarear a visão. Outros se apoiam nas próprias armas, os ombros pesados como se estivessem lutando contra um cansaço repentino. Um dos marujos ao meu lado cambaleia para trás, os olhos arregalados, e então cai de joelhos com um baque surdo, como se a gravidade tivesse ficado mais forte em seus ossos.
Depois outro.
E outro.
Tento ordenar algo, qualquer coisa, mas não encontro a voz. Minha mente quer lutar, quer agir, mas meu corpo pesa como se estivesse sendo sugado por um redemoinho invisível.
O que está acontecendo? Alguma maldição? Um truque do inferno?
Meus pensamentos lutam por uma resposta, mas só encontram culpa. Eu sabia que devia ter deixado uma moeda de cobre na primeira prancha do convés quando partimos. Toda viagem precisa de sua oferenda, um presente ao mar para que ele nos reconheça e não nos tome antes da hora. Mas não — fui pão-duro, fui cético. Agora o oceano parece querer sua dívida, e o diabo veio cobrar por ele.
Ou talvez… talvez não seja o diabo.
,Com certeza aquela mulher é algo pior.
Ela está sorrindo.
Sorrindo.
Como se estivesse se divertindo, como se estivesse caçando. Um sorriso selvagem, de alguém que sabe que já venceu. O tipo de sorriso que só um louco ou um monstro usa antes de rasgar uma presa com os dentes.
Meu coração bate contra minhas costelas.
Eu sou um homem do mar. Vi aberrações. Vi monstros. Vi homens jogarem os próprios amigos no oceano por uma promessa de ouro. Mas nunca vi alguém sorrir assim.
O peso me puxa para baixo, mas não é mais o navio que me força a ceder, nem essa sensação invisível que suga minha força.
É o medo.
Meu coração já decidiu antes mesmo que minha mente acompanhe.
Cedo. Eu cedo. Não há luta a ser travada. Não há resistência a ser feita.
O mar já decidiu por mim.
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Ficaremos sem imagens por um tempo, mas logo volto a postar!
Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…
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