Capítulo 204 - Afinal… É Humano
— Não se parece com uma cobra.
Todos olharam para Garm. O lobo falava pouco — quando falava —, e isso por si só já era suficiente para prender a atenção. Lúcia riu baixinho, com um toque de ternura contida, e passou a mão entre as orelhas dele, mas sem soltar Eva, que ainda balançava em suas costas. A ex ruiva estava desperta, ou pelo menos com os olhos abertos, o que já era uma vitória. Não consciente, no entanto.
— Não é uma cobra de verdade — resmungou o médico, descendo das costas do lobo com a elegância que podia. Quase escorregou, amaldiçoando a própria idade, o próprio peso e o mundo de maneira geral. — Vocês só eram burros demais pra entender o que é a merda de uma rodovia.
A última palavra saiu como se estivesse mastigando areia. Ou grama. Porque era exatamente isso que ele fazia naquele momento: mascava uma folha grossa, com cheiro de planta que não queria ser comida. Segundo ele, era uma “erva relaxante”, embora nenhum dos dois acompanhantes tenha pedido maiores detalhes, talvez por receio da resposta envolver fezes de lagarto ou algo do tipo, coisa que já tinha acontecido em perguntas anteriores. Sérgio jurava que funcionava, então aceitaram o passatempo do homem.
Aproximaram-se do que um dia fora uma grande rua. Ou algo assim.
O chão negro ainda estava ali — pelo menos o conceito dele. Uma superfície escura, rachada, com mais buracos do que certezas. As linhas que um dia delimitaram faixas estavam quase apagadas, substituídas por fungos e ervas daninhas que surgiam de cada fenda como se o chão estivesse tentando devorar a própria civilização. Era sutil, mas claro: aquilo já foi um caminho.
E ainda era. Só que agora, disfarçado de floresta.
Mesmo assim, Garm sentia que o traçado ainda se impunha. Era o tipo de terreno onde um animal grande podia correr sem ser interrompido por raízes traiçoeiras, galhos traiçoeiros ou pedras — também traiçoeiras. Ali, se quisesse, podia acelerar. Avançar. Investir por quilômetros antes de precisar pensar no que fazer a seguir. E havia algo de reconfortante nisso. Um trecho de mundo em que as escolhas vinham depois da velocidade.
Lúcia observava a paisagem sem dizer nada. A ausência de árvores dava a ela uma sensação incômoda. Não era medo. Era exposição. Crescera entre sombras e paredes de pedra. Espaços abertos a deixavam desconfiada. Aquilo ali era… limpo demais. Um corredor largo que gritava emboscada. Mas não tinham tempo.
Sérgio não parecia preocupado. Talvez porque estivesse distraído demais com os próprios pensamentos. Talvez por outra coisa.
Garm finalmente pisou. Com certa cautela, a pata se ajustou ao solo quebradiço. Franziu o focinho. Aquilo não era terra, nem pedra.
— É ruim — sentenciou, como quem confirma que morder alumínio é, de fato, uma péssima ideia.
— Sim, é humano — respondeu Sérgio, rindo sozinho, como se tivesse acabado de provar seu ponto em uma discussão que só ele estava travando.
Lúcia arqueou uma sobrancelha e o olhou de lado.
— Por que você sempre reclama da humanidade? Tem gente babaca pra todo lado, mas não é todo mundo.
Ele não respondeu de imediato. O que, vindo de Sérgio, era quase um elogio. Ainda assim, ela já sabia o que viria — alguma versão atualizada da frase que encerrava todas as histórias dele. Não importava se o tema era arquitetura, medicina, sistemas de irrigação ou artefatos mágicos de guerra: ele sempre terminava com aquela entonação de quem chegou a uma conclusão inevitável, seguido da sentença final. “Afinal… é humano.”
Lúcia não sabia se era mágoa, tédio ou simplesmente idade. Talvez fosse só um vício narrativo. Uma espécie de ponto final automatizado, tipo um velho que assovia depois de tossir.
O entendia, de certo modo. Sérgio realmente era velho. Quase cinquenta. O que, naquele mundo, era praticamente um milagre ambulante. As pessoas — não por saúde, mas sim devido a um mundo com perigos inconstantes — não viviam tanto. Ou, se viviam, não andavam. E, se andavam, não falavam. E Sérgio fazia os três — com frequência excessiva.
Seus pais também tinham falado do velho mundo para ela. Mal se lembrava, mas tinha certeza que não era com esse cinismo, mas sim com uma nostalgia quase poética. Falavam das cidades altas, das luzes artificiais que venciam a noite, de máquinas que corriam mais que cavalos e de lugares onde as pessoas comiam só pelo gosto. Era um conto de fadas na mente infantil da garota.
O médico, por outro lado, descrevia o mesmo mundo como um grande laboratório de erros mal varridos. Cada tecnologia era uma tentativa fracassada de fingir controle. Cada prédio alto, um monumento à arrogância. Ele não dizia com ódio — e talvez isso fosse o mais estranho. Dizia como quem já tinha cansado de se importar. Ou de se decepcionar.
— Eu reclamei? — perguntou ele, arrancando um tufo de capim seco que crescia entre duas fendas, como se estivesse fazendo um favor à botânica local. — Tô só constatando. Isso aí que vocês estão pisando é asfalto. Como pensam, é um tipo de chão falso, feito pra foder a natureza. O ser humano, no fundo, é só um bicho que adora estragar a porcaria do mundo.
— E você é só um bicho que adora reclamar de outro bicho — rebateu Lúcia em uma frase quase sem sentido, sem real irritação. Era o tipo de conversa que os dois sabiam que não ia dar em nada, e por isso mesmo, rendia.
O lobo os escutava sem se incomodar. Deu alguns saltos curtos no mesmo ponto, medindo a firmeza da estrada. Correu até o outro lado da rua com um impulso repentino, quase fazendo Lúcia cair, e voltou com a mesma naturalidade de quem apenas foi confirmar se a física ainda funcionava.
— As… falto… Dá pra ir. — murmurou, satisfeito.
— Ótimo — disse Sérgio, dando uma batidinha na coxa como se estivesse apresentando um plano brilhante. — Agora é seguir até o infinito. Talvez além. É rua pra caramba, mas só tem um destino… então assim, é impossível a gente não encontrar.
— Vão deixar a gente entrar quando a gente chegar lá? — Lúcia perguntou, com um tom que misturava receio e antecipação.
O médico parou por um segundo. Raridade. Coçou o queixo como se procurasse a resposta num lugar que já não existia mais.
— Deixar entrar? Vão. Mas se não fosse pela zumbi aí — disse, apontando com o queixo para Eva — eu não recomendaria. Aquele lugar comia pessoas vivas antigamente. E, pelos boatos, não mudou tanto assim.
Garm estremeceu. Não por medo. Ele só não gostava de lugares que comiam coisas.
Sérgio soltou um suspiro exasperado.
— Você tem que aprender o que é figura de linguagem, grandão. A cidade não come gente de verdade.
Com um riso leve, Lúcia voltou a se ajeitar no dorso do lobo. Sérgio subiu em seguida, murmurando para si algo sobre hérnias. Eva, ainda fora de si, foi presa com cuidado entre os dois, envolta em panos e cintos improvisados, como uma encomenda frágil entregue a um transportador exausto.
Garm esperou. Respirou fundo, uma, duas vezes, esperando terminarem de se acomodar.
Só então, disparou rápido de uma forma que nunca havia feito antes.
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Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…
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