Índice de Capítulo

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    Os soldados, armados e semi cercando o grupo, trocaram olhares entre si. Para alívio geral, os tripulantes do Collectio — suados, animados demais e, estranhamente, desarmados — não pareciam dispostos a iniciar um banho de sangue. Ana também não. Pelo menos, não naquela manhã.

    A disciplina dos seus subordinados era… questionável. Mas podia culpá-los? Claro que não, afinal, se a mana reversa não a impedisse de treinar ao lado de todos — ao menos de forma efetiva, já que permanecia forte — talvez adentrasse na mesma sensação desconcertante que eles.

    Entendia o que eles sentiam. Aquela sensação meio vergonhosa — meio divina — de ganhar força. O tipo de prazer que mexe com o ego e com uma parte bem específica do cérebro que sussurra “você merece”. 

    O corpo todo se ajustava, os sentidos aguçavam, até a respiração parecia mais eficiente. Uma embriaguez fisiológica. Ela mesma já se pegou sorrindo no meio da noite uma infinidade de vezes por tal sentimento.

    Era bom. Ridiculamente bom. 

    Os guardas pareciam satisfeitos o suficiente ao verem que os visitantes inconvenientes não pretendiam resistir. Baixaram as armas só o suficiente para parecer que estavam no controle, sem abdicar do nervosismo característico de quem está lidando com gente que tem cara de que já matou por impulso.

    Ana acenou para Alex, que repassou as instruções com o carisma entediado de quem preferia estar fazendo qualquer outra coisa, como nadar em óleo fervente. E então, como ovelhas estranhas e bem alimentadas, seguiram seus captores públicos por entre a confusão organizada de Mare Euphoria.

    Vendo de perto, a cidade parecia ainda menor do que de longe, mas crescia verticalmente como se tentasse desesperadamente fugir da água. Conforme se embrenhavam por suas vielas improvisadas, a estrutura revelava suas camadas. Algumas das antigas pistas de pouso, não tão úteis para a quantidade de aeronaves estacionadas, haviam se transformado em mercados de quinquilharias tecnológicas, peças soltas de um passado esquecido, penduradas ao lado de drones que já nem piscavam mais. Os hangares, por sua vez, viraram tavernas de teto baixo, cheirando a mofo, rum barato e segredos suados. Em cada beco, alguém tentava vender alguma coisa — munição, órgãos (na teoria, tecnológicos, mas que provavelmente seriam um bilhete só de ida ao cemitério), bebidas proibidas e informações valiosas demais para virem com etiqueta de preço. Até esperança dava para comprar, se você soubesse pedir e não se importasse com a validade.

    Duzentos metros depois, chegaram ao que parecia uma delegacia. Ou o que Mare Euphoria entendia como tal. Um cubículo metálico, úmido, onde o ferro parecia prestes a criar bolor.

    Lá dentro, um homem os aguardava — sozinho, largado numa cadeira mais torta que sua moral. A aparência suja não enganava: não era um qualquer. Era o tipo de figura que sobrevive há tanto tempo nesse tipo de lugar que já virou parte do cenário. A camisa amarrotada grudava no corpo, os dedos tamborilavam uma caneta num ritmo que não combinava com o resto da cidade. Assim que o grupo entrou, ele parou o movimento e levantou os olhos.

    — Quem foi dessa vez?

    A voz saiu seca, arrastada, como se já tivesse feito essa pergunta um milhão de vezes. Um dos guardas respondeu com a falta de entusiasmo de quem sabe que ninguém está ali por diversão.

    — Gente nova.

    O homem franziu a testa e se inclinou para frente, encarando cada um dos presentes como quem cheira leite, achando que passou do prazo. Quando os olhos bateram em Alex, ele pareceu encontrar uma motivação legítima para se ofender.

    — Quê que ceis fizeram?

    A pergunta veio geral, mas o vice capitão foi examinado de cima a baixo com um misto de fascínio e repulsa. O homem tirou do bolso um charuto mordido e, sem cerimônia, encostou a brasa contra o pescoço do guerreiro, que grunhiu em resposta.

    — Essa porra aí é legal, mas me diz uma coisa… como é que tu dorme, cara? Como é que tu fode?

    Alex inspirou com força. A carranca começou a se formar, e pela profundidade, prometia evoluir para algo grave. Mas antes que abrisse a boca, Ana, com a elegância de quem resolve tudo com economia de energia, aplicou um leve chute na panturrilha dele — não forte, só o bastante para lembrá-lo de que a diplomacia ainda era tecnicamente uma opção.

    O vice-comandante soltou um suspiro longo, profundo, vindo de algum lugar entre o fígado e o bom senso. Daqueles que não servem para resolver nada, mas ajudam a empurrar a frustração para debaixo do tapete por mais alguns minutos. No fim, manteve a boca fechada.

    Ana avançou um passo. Claro que avançou. Pensava saber como aquele jogo funcionava. A burocracia, em lugares como aquele, era uma paródia do que deveria ser. Um teatro improvisado, encenado por figurantes bêbados com papeladas manchadas de rum e gordura de peixe. Se alguém dissesse que os registros oficiais de toda a cidade estavam guardados embaixo da cama do dono de um puteiro, ela não só acreditaria como perguntaria em qual gaveta.

    Tinha quase certeza de que a saída dali envolveria um “registro de ocorrência” escrito com a caneta falhando de tanto reuso, um punhado de moedas bem audíveis sendo deixadas na mesa, e algumas palavras cuidadosas jogadas no ouvido certo, com aquele tom entre bajulação preguiçosa e ameaça velada. Era um ritual sórdido, mas funcionava. Quase sempre.

    — Vamos. Não precisa disso — disse, com a voz mansa de quem está tentando evitar um aborrecimento logístico, e não um confronto direto. — Podemos chegar num acordo.

    O delegado — ou fosse lá qual fosse o cargo do sujeito — não respondeu de imediato. Deixando de lado o jovem de antes, caminhou até Ana com passos curtos, firmes, mas que batiam no metal do chão com uma sonoridade irritante.

    Parou a poucos centímetros dela. E então, num gesto que unia provocação, tédio e uma pitada de sadismo institucionalizado, soprou a fumaça do charuto direto na cara da capitã. A fumaça veio quente e maligna, com cheiro de folha velha e cinismo.

    — Vai se foder, boneca — disse, sem levantar a voz. — Aqui, quem quebra regra, paga. Não com conversa, não com piscadelas. Paga de verdade.

    A sala ficou um pouco mais silenciosa. Um silêncio que tinha gosto de espera. De tensão suspensa, do tipo que podia virar riso ou explosão, dependendo de quem falasse a próxima frase. A tripulação de Ana enrijeceu. Punhos cerrados, olhares afiados. Sabiam bem qual era o próximo passo naquela coreografia. E sabiam quem ia começar.

    Mas, surpreendentemente, ninguém se mexeu.

    Porque, no limite do desconforto coletivo — aquele ponto em que todo mundo respira devagar só para não ser o estopim — uma voz se fez ouvir.

    Baixa, firme, como se não precisasse de mais que um tom neutro para virar o jogo. Vinha de onde ninguém esperava. Uma figura, dentre os muitos semi prisioneiros, deu um passo à frente.

    — Não sabia que você era esse tipo de pessoa, Rafael.

    O nome caiu como chumbo derretido no meio da sala, e o homem virou o rosto devagar, como se estivesse tentando atrasar o inevitável. Quando encontrou a dona da voz, os olhos se arregalaram num susto que não combinava nem um pouco com sua pose anterior.

    No fundo da sala, com os braços cruzados e uma calma zombeteira, Madame sorriu.
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