Índice de Capítulo

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    — Foi mal, não sabíamos que isso tava aí — comentou Alex, notando o olhar distante de Ana sobre a faca. — Mas é uma bela arma.

    — Não tem problema. Viram minha armadura?

    O jovem hesitou por um momento antes de ir até um pequeno monte de mochilas jogadas próximas à fogueira. Remexeu entre os pertences, e por fim, ergueu um pedaço de metal escuro, parcialmente retorcido e sujo de sangue seco.

    — Tiramos pra te enfaixar… mas parece que as runas não estão mais funcionando.

    — Ah, sim… as runas. — Ana murmurou, pegando o equipamento com uma expressão indecifrável. — Não se preocupem com isso.

    Virou a peça nas mãos, fingindo inspecioná-la. Mas a verdade era que já sabia exatamente o que veria. Nenhum resquício de feitiçaria, nenhum brilho oculto, nenhuma marca mágica oculta entre as fendas. Só aço.

    Eles não perceberam?

    Mordeu o lábio para conter um sorriso. Se realmente acreditavam que aquilo era algo especial, não seria ela quem os desmentiria. Deixaria que seguissem acreditando em qualquer fantasia que quisessem. No fim das contas, talvez fosse melhor assim.

    Com cuidado, usou sua faca para desentortar alguns poucos pontos da armadura onde o metal se retorcia para dentro e, com cuidado, o vestiu. O item estava quase inutilizado para sua finalidade inicial de proteção, mas o simples fato de tê-la por perto trazia uma estranha paz ao seu coração.

    — Pode me dizer quem a fez?

    A pergunta não veio de Alex, mas sim do outro jovem, Felipe, que até então permanecia imóvel. Agora acordado, sua voz saiu fraca, cansada, mas havia uma certa firmeza ali. Seu olhar ia da armadura para seu próprio ombro esquerdo, agora um vazio onde antes havia um braço.

    — Se eu sobreviver a essa noite, vou precisar de um bom engenheiro mágico para fazer uma prótese.

    Ana o observou, surpresa com sua lucidez. Pela palidez e a forma como mal conseguia se manter acordado, imaginou que ainda estivesse fraco demais para raciocinar direito. Mas não, ele já estava pensando no futuro, na adaptação.

    Por um breve segundo, a imagem de uma velha forja lhe veio à mente. O calor do forno, o som do martelo moldando o metal.

    — Infelizmente, não sei quem foi o criador. — Disse a primeira mentira que lhe veio à cabeça. — Encontrei essa peça em Aurórea.

    Felipe assentiu levemente, como se já esperasse aquela resposta.

    — Entendi… é uma pena. Sinto que, com uma dessas, eu nem precisaria de escudo. Tão resistente…

    A última frase saiu como um sussurro antes de ele fechar os olhos de novo, afundando de volta no cansaço. Ana ficou imóvel por alguns instantes, encarando o jovem com um misto de fascínio e reflexão. Era possível criar próteses funcionais com magia?

    Seu interesse pela tal “engenharia mágica” cresceu rapidamente, como uma faísca caindo sobre madeira seca. Fazia tanto tempo que não via algo realmente inovador para estudar… Não que não tivesse interesse nos muitos assuntos descobertos no dia de hoje, mas eram dúvidas passageiras, nada que a deixasse tão curiosa. Mas uma nova área de estudo já era algo peculiar.

    Se eles podem fazer um braço funcional, o que mais podem criar?

    Antes que pudesse seguir sua linha de raciocínio, uma voz cortou o ar.

    — Ei, mané, fica acordado. A gente já vai se preparar pra sair.

    Felipe fez uma careta com a frase rude de Alex, espremendo a testa como se a luz da fogueira lhe causasse incômodo.

    — Tô cansado demais… Me dá só mais umas horas.

    — Não vai rolar. Tá cego? Já escureceu.

    — E daí?

    Um uivo foi a resposta.

    Longínquo, distante o suficiente para não ser uma ameaça imediata… Mas não sozinho. Outros o seguiram, um eco de presenças invisíveis costurando-se pela noite.

    Então, o silêncio. Um silêncio carregado de expectativa.

    Com os olhos arregalados, Felipe se levantou com esforço,

    — Tá, vamos.

    Rangendo os dentes pelo movimento brusco, passou por Ana e fez um sutil aceno.

    — É um prazer.

    Ela retribuiu o gesto, mas sua mente já estava longe dali.

    Percebeu que estava mole.

    Viver em um mundo sem ameaças por tanto tempo a havia tornado… complacente. O perigo nunca foi um problema real. Criaturas selvagens eram irrelevantes. Se alguma coisa ameaçasse sua existência, ela simplesmente as esmagaria com os punhos.

    Mas agora… agora, a noite era uma promessa de algo mais.

    Uma promessa feita de silêncio e predadores à espreita, uma sombra que sussurrava ao redor, lembrando-a de que o mundo tinha mudado — e que ela não fazia mais ideia do que esperar dele.

    Era incrível que tivesse andado tanto sem se deparar com criaturas desse tipo. Mais incrível ainda não terem aparecido mais feras por enquanto, afinal, O cheiro de sangue impregnava o ar, grosso, metálico, uma súplica silenciosa para que a selva reclamasse seus mortos.

    Inspirou fundo, descartando qualquer vestígio de hesitação.
    — Vocês têm algum acampamento por perto?

    Alex jogou a última mochila sobre o ombro e assentiu.
    — Não tão perto, mas também não é longe. Se nos apressarmos, cinco horas devem bastar. — O jovem lançou um olhar para a ruiva. — A ideia era partir durante o dia, mas vocês estavam um fiasco. Júlia, dá uma ajuda aqui.

    — Tá, vou buscar a carroça.

    Ana observou a dinâmica do grupo. Os olhares trocados, os pequenos gestos que pareciam carregar significados próprios. A forma como trabalhavam em sincronia, ajustando-se aos danos do combate sem precisar discutir muito. Havia tensão, sim, mas não havia pânico.

    Eles já tinham passado por isso antes.

    Seus olhos seguiram Alex enquanto ele se aproximava da Marina adormecida. Com cuidado, a ergueu nos braços e a carregou na direção de onde Júlia surgia com um carro de bois. Não era pequeno — talvez acomodasse umas dez pessoas, com um pouco de esforço.

    Felipe, ainda sem muita firmeza nos movimentos, foi o primeiro a subir, aceitando as mochilas que Alex lhe passava. Quando a garota desacordada foi entregue, ele a acomodou num dos bancos de madeira com uma delicadeza surpreendente para alguém que, minutos atrás, parecia à beira da inconsciência.

    — Ana, me desculpa, mas você vai ter que ir junto com os mortos.

    Ana piscou, olhando ao redor. Não havia reparado, mas agora via os seis corpos enfileirados sob as árvores mais próximas, levemente afastados do restante do grupo. Trabalhadores, aqueles mesmos que vira mais cedo. Não sabia quando haviam morrido, mas as marcas em seus corpos deixavam claro que a segunda criatura os eliminou antes de ir socorrer seu companheiro.

    — Não esquenta com isso — respondeu, subindo na carroça sem rodeios.

    Os cadáveres ao seu lado já estavam levemente azulados. O sangue seco formava um contraste estranho contra a pele pálida, e as mordidas tinham um padrão peculiar — presas que penetraram fundo, mas com cortes quase limpos. Diferente de um predador comum, que rasgaria a carne com brutalidade, essas criaturas pareciam… meticulosas.

    Sentiu uma pontada de curiosidade. Um interesse genuíno, científico. Nunca tinha visto algo assim antes. Suas mãos coçaram para tocar os cadáveres, examinar, catalogar.

    Mas respirou fundo e se controlou. Não era uma sem noção.

    Pensou. Pensou. E desistiu.

    Foi então que outra questão lhe ocorreu.
    — E as carcaças dos lobos?

    O grupo parou.

    Foi sutil, um instante apenas, mas Ana percebeu. Um brilho de ganância lampejou nos olhos de alguns deles antes de ser apagado pela razão. Mas foi o suficiente para ela notar.

    Havia algo valioso ali.

    Silêncio. Alex coçou a nuca, desviando o olhar. Júlia fez uma careta, enquanto Felipe seguiu com um gesto de cruzar os braços — o que era estranho, visto ter apenas um — encarando o chão como se as tábuas da carroça fossem subitamente muito interessantes. Os três ficaram cabisbaixos.

    — Não teremos tempo — resmungou Alex, jogando uma última olhada para as carcaças antes de voltar a ajustar as mochilas.

    — Sabem quais são as partes importantes?

     — Ahn? — Ele piscou, confuso. Mas então a compreensão veio. — Ah, sei sim. Monstros da família canídea são famosos por terem tendões incrivelmente resistentes e ossos de densidade anormal. O couro é valioso, mas exige muito tratamento pra virar armadura, e a carne… bom, digamos que há chefs dispostos a pagar uma fortuna por um bom corte de um monstro ranque D.

    Ana assentiu e baixou novamente para o solo, aproximando-se dos cadáveres com movimentos lentos, puxando a faca de seu cinto.

    Caçar havia sido uma necessidade por muitos anos do Grande Vazio. Com o tempo, já tinha formas mais práticas de obter alimento, e a necessidade tornou-se um passatempo. E o passatempo virou arte. Ela já havia dissecado incontáveis corpos, possuindo um conhecimento sobre anatomia que transcendeu a simples sobrevivência.

    Analisou a estrutura da criatura, traçando em segundos o caminho perfeito para a faca. Os cortes foram rápidos, sem hesitação. A pele, dura como couro curtido, cedeu como papel de seda sob a lâmina bem afiada. Ossos, músculos e tendões saíram quase sozinhos, expostos em uma harmonia grotesca.

    Lindamente cruel.

    O queixo dos jovens caçadores quase tocou o chão. Se não tivessem visto sua habilidade de luta antes, poderiam ter acreditado que estavam diante de uma cozinheira lendária, alguém que dedicou a vida inteira ao refinamento absoluto de suas técnicas.

    — Preciso apenas de alguns ossos — murmurou, limpando a lâmina contra a própria perna antes de recolher os restos robustos em um saco improvisado.

    Durante o processo, verificou os órgãos internos, curiosa para ver se encontrava algo diferente. Mas não. Apesar do tamanho e das pequenas reorganizações anatômicas, eram essencialmente os mesmos órgãos de um predador comum. O coração pulsava no mesmo lugar. Os pulmões se expandiam da mesma forma. A bile, o estômago, até mesmo o fígado, tudo seguia uma lógica previsível.

    Uma criatura mutante sem ser mutante.

    Mas os ossos… os ossos eram uma história diferente. Eram resistentes. Muito. Algo nela dizia que poderiam ser aproveitados para algo mais. Alguma espécie de proteção.

    — Você tem certeza? — Alex quebrou o silêncio. — Sabe o quanto vale tudo isso? 

    Ana suspirou, cansada.
    — Não é como se eu pudesse ter vencido sozinha. Apenas peguem.

    O grupo trocou olhares antes de explodir em um agradecimento quase sincronizado.

    — Obrigado!

    Aceitando o agradecimento com um simples aceno, Ana voltou para seu lugar. O banco de madeira era duro e desconfortável, mas depois de tudo, parecia o lugar mais convidativo do mundo. Estava pronta para descansar, o sono viria fácil.

    No entanto, antes que pudesse se entregar à escuridão tranquila do descanso, um movimento em sua visão periférica chamou sua atenção. Júlia, de pé próxima à fogueira, segurava um pedaço rasgado de tecido entre os dedos. Girou o objeto por um instante, como se ponderasse uma última vez, antes de jogá-lo nas chamas. Três outros seguiram o primeiro, engolidos sem cerimônia pelo fogo.

    Brasões.

    — Será que realmente não vão nos dar uma última chance? — murmurou a ruiva, apreensiva.

    — Essa já era a última chance… — respondeu Alex, sua voz carregando um sorriso que não chegou aos olhos.

    Juntos, se dirigiram para a parte da frente da carroça. Suspiraram, como se precisassem reunir forças para algo maior do que apenas partir. Então, com os músculos tensos, começaram a puxar.

    Ana não reagiu, mas a cena grudou em sua mente. No entanto, não demorou a desviar o olhar.

    Não é da minha conta…

    Havia sido intrigante, sim, mas não era problema seu.

    Fechou os olhos. O balanço sutil da carroça embalou seus pensamentos.

    Era hora de dormir. Amanhã, sua nova vida começaria.
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