Capítulo 211 - Siga o Jogo
— Se continuar nesse ritmo, nos pegam em cinco minutos…
Lúcia já não tentava manifestar nada. Nem pedras, nem paredes, nem desculpas. Com um gosto amargo na boca — e não apenas da poeira no ar —, aceitou que não conseguiria pará-los daquele jeito.
— Você pode lutar? — perguntou, virando-se para Sérgio com um olhar que ainda carregava um resto de esperança, talvez por reflexo.
O homem respirou fundo. Ainda abaixado sobre o lombo do lobo, fechou os olhos por um segundo. Não foi dramático. Só resignado.
— Lutar, não. Mas posso fazer… alguma coisa.
— “Alguma coisa” não inspira confiança.
Sem responder, o médico meteu a mão no bolso. Tirou um punhado de folhas amassadas, hesitou — talvez ponderando se aquilo era mesmo uma boa ideia — e, com a decisão de quem já superou a dignidade faz tempo, enfiou tudo na boca. Mastigou com uma voracidade que sugeria tanto desespero quanto hábito.
— Garm, diminui a velocidade. Você cuida do resto.
O lobo lançou um olhar breve para trás, com um quê de interrogação. Não porque não soubesse o que fazer, mas porque ainda esperava, contra toda lógica, que alguém tivesse um plano melhor. Como ninguém se pronunciou, obedeceu. Ser pego com um plano ainda era melhor do que ser pego correndo em círculos.
— O que você tá fazendo? — Lúcia perguntou, relutante. Preparava-se para voltar a revidar da forma que pudesse — mana bruta, gritaria, quem sabe mordidas —, mas Sérgio apenas estendeu o braço e baixou as mãos dela.
— Calma. Só vamos ter uma chance.
— Explica melhor, caramba!
— Segue o jogo, garota.
As motos finalmente os alcançaram. Vieram como cães que sabiam que a presa já tinha parado de correr. O médico levantou as mãos com exagerada docilidade, como quem fazia questão de parecer inofensivo. Lúcia, contrariada, fez o mesmo. Pensou brevemente em inflamar o próprio corpo e explodir com tudo — um plano ruim, mas eficiente. Garm rosnou, mas seguiu o comando silencioso da companheira, abaixando o corpo para que todos pudessem descer com relativa segurança.
Os perseguidores, ainda com altas risadas, finalmente cercaram o grupo.
— Parece que não são tão burros quanto pareciam de longe! — gritou um dos manipuladores ao descer da moto com um salto que não era nem ágil, nem elegante, mas que fazia barulho suficiente para impressionar. — Vamos, larguem tudo e fiquem calmos. Ninguém quer sangue aqui.
— Amigo, olha pra gente — começou Sérgio num tom descontraído, ainda mascando a mistura vegetal com o entusiasmo de um bode. — Tá vendo alguma coisa pra largar? Eu e minhas filhas estamos só de passagem. Ouvimos que hoje em dia dá pra recomeçar a vida na capital.
O homem franziu o cenho por trás dos óculos absurdamente grossos. Sua feição estava escondida, mas o deboche não — ele escorria até pelas pontas dos dedos, enquanto se apoiava no guidão com a pose ensaiada de quem já repetiu muitas vezes situações como essa.
— Não parecem suas filhas. Quê que se acha, Betão?
— É, filha o caralho — comentou o segundo, rindo de um jeito que envolvia mais catarro do que charme. — Essa aí de cabelo curto parece que come gente no café da manhã. A outra… bom, a outra parece morta. Cê tá me parecendo a porra de um escravista, irmão.
— Adotivas! — rebateu Sérgio, quase ofendido. — Sabe como são esses tempos conturbados. A gente tem que cuidar das crianças. Elas são o futuro. Ou, pelo menos, são o presente em velocidade decrescente. E sim, ela tá meio morta, o que é uma pena. Tem dias em que ela é tão simpática.
O primeiro motoqueiro ignorou o comentário e se virou para o colega de trás novamente.
— Acha que vale alguma coisa?
— A morta?
— A outra.
— Só se vier com instruções de uso.
O grupo riu. Um riso esticado, meio nervoso, meio ansioso. Riam porque podiam, e porque estavam em maioria, e porque era isso que se fazia antes de espancar ou saquear alguém: ria-se um pouco, para aquecer o clima.
— Tá bom, chega de enrolar — disse o que parecia ser o líder, ou pelo menos o mais falante. — Eu gastei a carniça toda perseguindo vocês, então de algum jeito vão me pagar. Qualquer merda serve. Armas, amuletos, pedaços desse bicho grande… até livro, se for rúnico.
— Ou com figuras — acrescentou o segundo, rindo da própria piada. — Aquele da fada peituda era bom.
— Cala a boca, já disse que aquilo era um manual de rituais, não pornografia. A fada tinha função simbólica.
— Simbólica o cacete, tu lia escondido.
— Era didático.
— Didático é teu cu.
— Tá, Betão, só cala a boca… bom, ou com figuras — acrescentou o líder, revirando os olhos. — Se não, vai na mana — murmurou, fazendo um gesto de cortar na própria garganta.
Sérgio levantou um dedo, como se fosse responder. No entanto, após alguns segundos de espera, apenas riu baixo.
O líder, franzindo o cenho, se aproximou erguendo o punho, mas parou. Fungou. O cheiro no ar estava mais forte agora, mais azedo. Era uma coisa estranha, com um toque amargo no fundo da garganta. Não deixava um sabor ruim, mas também não parecia saudável. O tipo de aroma que faz você suspeitar que algo está errado antes mesmo de saber o quê.
O primeiro a reagir foi o nariz. Depois os olhos começaram a lacrimejar. O motoqueiro olhou para o companheiro — que, torcendo a boca, já coçava o nariz como um cachorro com rinite.
— Que porra é essa?
O silêncio que veio em seguida era daqueles que só termina com algo ruim ou muito ruim. Mas acabou com um espirro. Um espirro de Garm.
Forte, sonoro, e úmido o suficiente para ser sentido em três direções.
Todos se entreolharam, desta vez com menos sarcasmo e mais cálculo. O tipo de troca de olhares que acontece logo antes de uma burrada coletiva: o início de um tiroteio mal pensado, uma fuga apressada ou, como parecia ser o caso ali, uma decisão que todos se arrependeriam em silêncio, se tivessem tempo para isso.
Sérgio ainda mascava, sorrindo com uma serenidade que ninguém ali achava confortável. Então, sem qualquer aviso, o médico caiu. Não tropeçou, não cambaleou, não reclamou da coluna. Simplesmente tombou para o lado com a rigidez de uma estátua empurrada da prateleira. Um baque seco e antinatural. A respiração cessou, os olhos viraram e o corpo endureceu em uma velocidade inumana.
O líder dos bandidos hesitou por um instante. Depois, como era de se esperar de alguém com mais bravata que bom senso, se aproximou. Seus passos foram se tornando mais lentos à medida que o cheiro se intensificava — agora mais ácido, quase metálico, como se o próprio ar estivesse sendo empurrado para fora do corpo do médico. Ele tocou o velho com a ponta da bota, talvez esperando uma reação, um espasmo, qualquer coisa.
O que veio foi pior.
O cheiro subiu como um tapa na cara de todos os presentes, e o motoqueiro recuou com uma careta sincera, tossindo alto. Seus olhos se arregalaram antes da boca.
— O filho da puta é a porra de uma variante! — gritou, cuspindo entre as palavras. — Matem os desgraçados! Rápido!
As palavras ainda ecoavam quando Lúcia, até então em pé e claramente perplexa com o que tinha acabado de ver, também caiu. Não fingiu. Não teve tempo. Apenas desabou, como se um interruptor tivesse sido desligado dentro dela.
Os motoqueiros já tinham descido das motos, todos eles. Armados com pequenos machados e uma confiança que não combinava com a situação, começaram a avançar com pressa. Claro, não adiantou.
Um a um, começaram a cair. No começo, tropeços sutis. Depois, quedas completas. Baques abafados contra o asfalto ou contra a própria perna do companheiro da frente. Alguns ainda tentaram gritar, ou balbuciar qualquer ofensa de rodapé, mas a garganta já não respondia. O mundo ao redor os engoliu com a mesma indiferença com que os havia tolerado até então.
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Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…
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