Capítulo 212 - Fracos Sobrevivem em Dobro
Lucia abriu os olhos.
Demorou um segundo para perceber que estavam mesmo abertos. O mundo à sua volta parecia imóvel, engasgado em um silêncio que não era exatamente paz. Ela não se mexeu. Não por escolha. Apenas não conseguia.
O cenário diante dela era estranho e inaceitável. Corpos caídos em posições tortas, como se tivessem sido deixados ali por engano. O chão era duro e úmido, o cheiro ainda azedo, e o ar estava denso demais para ser respirado sem esforço. Lucia só observava, imóvel, como se o simples ato de tentar entender pudesse piorar tudo.
De canto de olho, viu Eva caída ao lado do corpo de Garm. O lobo estava parado. Uma massa grande, escura, quieta.
“No fim, nem ele resistiu…”
Isso piorava as coisas, e o desespero veio rastejando, não como um grito, mas como algo mais interno — como um parafuso solto em algum lugar entre o estômago e os pulmões. Ela tentou se mexer novamente, mover os dedos, flexionar uma perna — qualquer coisa. Mas era como se o próprio corpo tivesse entrado em greve. Um protesto fisiológico contra decisões que ela não lembrava de ter tomado.
Apertando os dentes, tentou ao menos girar o pescoço. Conseguiu. Viu Sérgio caído ao lado, boca entreaberta, o cheiro das folhas ainda pairando em torno dele. Ainda estava apagado. Talvez morto, já que não parecia respirar. Aquela possibilidade atravessou sua mente como um prego mal batido, mas ela não teve tempo de lidar com isso, pois ao fundo do corpo do médico, o motociclista falador mexeu a cabeça.
No início, foi só um movimento lento, involuntário. Reflexo. Depois, os ombros. As mãos. A espinha. A expressão.
O homem começou a levantar o rosto. Os olhos, antes apagados, agora brilhavam de raiva e algo mais — uma fome estúpida e pequena, dessas que só existe para destruir o que está mais perto.
“Foi mais rápido do que eu…”
Os olhos dele encontraram os de Lucia, e ele sorriu sutilmente, o tipo de sorriso que antecede o pior tipo de frase para situações desse tipo. Aquela que começa com “agora você vai ver…” ou “agora é minha vez…”.
Lucia conhecia muito bem sorrisos assim. Odiava todos. Sentiu os olhos arderem por raiva. Raiva de si, do corpo, da mana que insistia em não fluir quando mais precisava, do mundo, do maldito asfalto que não colaborava. Não era justo. Não era justo estar consciente e ainda assim inútil.
Seu orgulho era quem mais gritava. Um grito mudo, que vibrava por dentro. Se aquele homem conseguia, ela também precisava conseguir.
Sim, precisava.
Começou a se mover.
Não fez com elegância, e muito menos controle — coisa que os dois ou três tropeços provaram sem dificuldade — mas tinha vontade e desespero suficiente para arrancar a si mesma do chão. Um músculo de cada vez. Um impulso de cada lado. Uma ordem seguida de enjoo.
Em paralelo, o corpo do bandido à frente já havia se posto de pé. Ele ainda sorria. Achava que tinha vencido. Achava que era só terminar o serviço.
Os dois continuaram se encarando. Ofegantes. Imundos. Cansados além da conta.
— Seu pai é um puta de um cuzão — cuspiu por fim o motoqueiro, com a voz grossa, seca. — Mas não adiantou porra nenhuma.
Lúcia tentou responder. Queria devolver algo — uma frase, uma risada, qualquer coisa. Mas nada colaborava. Os lábios estavam trêmulos demais para ironia. Os olhos, no entanto, ainda funcionavam. Vasculharam o ambiente em busca de qualquer coisa que se parecesse com esperança ou com uma arma.
Viu um graveto. Viu uma bolsa vazia. Viu seus companheiros. Viu um brilhante machado. Não pensou, se jogou. Um impulso instintivo, feio, torto. O homem, ágil e esguio como uma cobra, entendeu a jogada no mesmo instante e mergulhou junto.
O que se seguiu foi briga de cães.
Sem técnica, sem honra, sem plano. Unhas, joelhos, dentes.
Lúcia não era forte — pelo menos não em comparação com um adulto com provavelmente muito mais mana que ela, apesar de lutar melhor do que muitos — mas, naquele momento, agradeceu por isso. Ser forte era tentador demais, dava a ilusão de controle.
Ana sempre a ensinará que fraqueza mata, e assim, sempre evitou ser fraca. Mas agora estava pouco se fodendo para aquela mulher. Fracos podiam ficar fortes um dia. Ser fraca a fazia evoluir, não ser indefesa. Quando se é fraco, tem que saber sobreviver em dobro.
O homem grunhia enquanto tentava imobilizá-la. Apertava seu braço contra o chão, a boca dele perto demais, o hálito cheirando a carne estragada e covardia. Ela girou o quadril, forçou o peso no braço que, acidentalmente ou não, se entrelaçou com sua perna. Sentiu o ombro do homem sair do lugar com um estalo doentio. Ele gritou. Não o suficiente.
Os dedos de Lucia encontraram o machado caído durante o giro. Agarrou com ambas as mãos, virou ainda mais o corpo e desferiu o primeiro golpe. Veio torto. Pegou na clavícula. Não matou.
Deu tempo de um cotovelo acertar seu olho esquerdo, mas o direito ainda estava bom, então o segundo golpe foi mais preciso.
Na lateral do crânio. Um som abafado, um jato de sangue quente no rosto. O corpo dele tremeu uma vez antes de desabar por completo, esmagando a jovem manipuladora contra o chão.
Lucia respirou fundo. Ainda trêmula, ainda sangrando dos próprios arranhões e com um esforço que não gostaria de estar fazendo, o empurrou para o lado e se arrastou até o próximo oponente.
Não esperou que acordasse, isso seria burrice. Ergueu a arma e desceu uma machadada no pescoço. Depois outra. Ela olhava nos olhos ainda em torpor antes de descer o fio. Murmurava algo baixo, não por eles, mas por si. “Sou eu ou vocês.” Repetia como um mantra feio, mas eficaz. Cada golpe era menos difícil que o anterior.
Já estava acostumada com a morte, a guerra contra a cidade corrompida fez questão de lhe dar uma boa dose de lições práticas. Mas não gostava desse tipo de morte. Um duelo era um duelo, a emoção, a adrenalina, a honra, o medo. Duas pessoas que sincronizam suas brutalidades.
Mas aquilo era só assassinato, deixava um gosto amargo no céu da boca.
Terminando o último, caiu de bunda no chão. Os braços pendiam ao lado do corpo como sacos molhados. O machado escorregou da mão. A respiração era alta, irregular, o tipo de som que normalmente antecede um choro — mas nada veio, é claro. Aquilo era só exaustão.
Sérgio ainda estava deitado, mas agora de olhos arregalados, fixos nela. A boca entreaberta num misto de cansaço e admiração desconfortável. Talvez tivesse um toque de repúdio ali, mas Lucia decidiu ignorar. Depois de um tempo que poderia ser segundos ou décadas, ergueu o polegar com esforço. Um gesto ridículo, mas… honesto.
— Você fez bem.
Lucia bufou e cuspiu um troço de sangue — e talvez um pedaço de dente — para o lado.
— Juro que não sabia que ia afetar o lobo mais do que a gente… — murmurou o médico, sem mudar de posição.
A jovem deixou a respiração finalmente escapar de verdade, esvaziando os pulmões. Soltou um riso curto, rouco.
— E eu juro que ainda vou te matar por isso.
— Justo.
Os dois riram de forma quebrada, sem alegria. Mas era o que dava para fazer.
— Um belo início pra nossa nova vida, não acha? — completou ela, olhando para o céu encoberto, que não parecia nem um pouco impressionado com a sobrevivência deles.
— De fato, uma chegada espetacular.
E ali ficaram por alguns minutos. Juntos, mas cada um isolado dentro do próprio corpo cansado. Respirando. Só isso.
Respirando.
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Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…
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