Capítulo 213 - Missão da Rainha de Ouro
— É claro que não seria tão simples… desgraçada… desgraçada…
Ana havia passado a manhã inteira resmungando. Não em voz alta, não o suficiente para chamar atenção. Mas com aquele tom meio mastigado que só alguém realmente irritado domina. Era quase como se falasse consigo mesma só para evitar a explosão — como quem joga aos poucos a água para fora com um balde antes que o navio afunde de vez.
Nem as pequenas lulas voadoras — sim, lulas — conseguiram distrair sua frustração. Criaturas do tamanho de um pão francês, com tentáculos esvoaçantes e olhinhos arregalados, que pareciam ignorar solenemente todas as leis conhecidas da biologia. Voavam como se estivessem nadando, com aquela graciosidade estranha de quem nunca conheceu o chão. E levavam cartas, claro. Pequenas, meio amassadas, com selos coloridos grudados com baba. Uma espécie de sistema de correio voador local, tão funcional quanto perturbador.
Claro, gastou duas dúzias de minutos as rabiscando em seu pequeno caderno de anotações, mas o interesse ainda foi mínimo.
Alex observava aquilo com a testa franzida e um leve desconforto existencial. Não era todo dia que se via um animal marinho decidindo que o ar também era seu território — e, considerando que já tinham subido numa baleia flutuante outro dia, talvez fosse o segundo ou terceiro alerta que o mundo estava com prioridades muito flexíveis.
Ele não reclamava, claro. Era melhor que descer até o fundo do oceano para descobrir essas aberrações. Pensou, por um segundo, se não estava ficando parecido demais com Ana. Assustado com a possibilidade, soltou um suspiro longo e tão exagerado que acabou tossindo. O que, honestamente, só confirmou sua suspeita.
— Não tem como você simplesmente recusar? — perguntou, após recuperar o ar. — Não lembro de você fazer uma dessas missões há uns… quatro? Cinco anos?
— Não fiz porque a Madame é um amor de pessoa. — respondeu Ana, os passos duros no chão denunciando cada pensamento homicida. — Mas aquela desgraçada se recusou a seguir com o acordo enquanto eu não resolver minhas pendências.
Ana não gritava. Mas quando grunhia, era como se o chão sentisse. Alex ficou tentado a perguntar se ela queria fazer buracos no piso também, por empatia. Mas achou melhor guardar essa sugestão para um momento em que ela não estivesse prestes a incendiar alguém.
O mais surpreendente era que Catarina, ao contrário de sua fachada de caos tropical e rum destilado no ódio, era surpreendentemente organizada. Tão logo quanto Ana aceitou fazer “sua parte no festival”, a mulher puxou debaixo do balcão uma pilha de papéis catalogados com precisão burocrática ofensiva.
Havia registros detalhados: quando Ana se tornou uma Fundadora de Bronze, quando virou Patrona de Prata, e — para desespero da própria Ana — sua coroação como Rainha de Ouro Aficcionado, graças a uma sucessão de feitos que a “sempre honesta Madame” registrara nos relatórios anuais em caligrafia impecável.
Tudo muito bonito. Até que se descobriu que Ana, a tal rainha, não cumpria uma única obrigação relacionada ao título havia anos. Nenhuma presença formal, nenhum discurso, nem mesmo um panfleto com a própria cara. E isso, para Catarina, era inaceitável.
A rainha mercenária tentou protestar. Tentou mesmo. Alegou que Leviathan era uma prioridade, que tudo logo estaria à beira do colapso, que chuvas radioativas podiam cair a qualquer momento (sabe-se lá o motivo de ter pensado nessa desculpa) — mas não adiantou. Catarina, prática como uma lâmina na jugular, respondeu com um mapa.
A rota da baleia estava bem traçada. Se Mare Euphoria seguisse diretamente até Deadman’s Cay, ficariam sem muitos problemas abaixo da área de embarque da flutuante Leviathan em exatos seis meses. E considerando os dias mais longos do Novo Mundo, isso era praticamente férias. Tempo de sobra para uma missão: caçar piratas.
Missão esta que, aliás, fez Ana engasgar com a cerveja aguada assim que ouviu. Espirrou metade no balcão e a outra metade no próprio orgulho. Catarina sorriu. Aquele sorriso grande demais para ser sincero, e cheio demais de dentes brilhantes para ser pacífico.
— ¿Tú de verdad pensaste que no vi quando llegaste no Aurora Mercante, pequeña bastarda?
Não havia rancor na voz, mas o tom deixava claro que a observação não era um elogio. Felizmente, não insistiu. O tipo de coisa que poderia virar briga, mas que, naquele momento, ela estava com preguiça de transformar em confronto.
— Esse tipo de coisa acontece, cariño — disse, ajeitando o brinco dourado com a ponta do dedo. — Desde que tú no exagere, no teremos um problema, vale? Pero escucha bien… os piratas que tú vai atrás… ellos son diferentes. Muy diferentes. Sus navios… están vacíos.
“Vazios.” Ana repetiu mentalmente a palavra como se fosse um mau presságio disfarçado de descrição logística.
— Ya perdemos gente demais tentando capturarlos — continuou Catarina, cruzando os braços irritada. — Al final, desistimos da rota pro gran mercado de Tortuga. Os piratas… prefieren largar todo el carregamento do que encarar un navio fantasma.
— Então vocês têm medo de fantasmas?
— Claro que sí. Ser supersticioso en el mar es lo básico si queres salir vivo dele, entiendes?
E foi isso, uma explicação com buracos de tamanho médio. Bem no estilo já conhecido desta tal realeza mercenária. Ana às vezes suspeitava que o curso para se tornar taverneiro incluía alguma disciplina chamada “Enrolação Avançada”. E, se fosse verdade, tanto Catarina quanto Madame teriam sido alunas exemplares.
Infelizmente, Ana precisava de soldados. Muitos. Caso contrário, mandaria a caribenha ir a merda. Como não podia, aceitou que seis meses era tudo o que tinha. E se para isso precisava limpar o mar de fantasmas — ou seja lá o que aqueles navios vazios fossem — então assim seria. Seguiu seu caminho até o caís.
— Não quer pelo menos arrumar as coisas antes? — perguntou Alex, vindo atrás, já prevendo o desastre.
— Você tá insistente demais. Quê que tá rolando?
— Só acho que perder mais gente agora não vai ser bom pro moral da tripulação…
— Ah, porra, desde quando você ficou tão bunda mole? Que a tripulação fique aqui, então! Relaxem nessa porcaria de ilha!
— Não foi isso que eu quis dizer… vamos seguir você, mas não é a melhor escolha.
— Não, mandei relaxarem!
E antes que ele pudesse continuar, veio o gancho.
Um movimento seco, um soco seguido de um puxão pelo colarinho, e Alex foi jogado de lado com a elegância de um saco de batatas alcoólatra. Caiu com um som abafado, meio gemido, meio surpresa, e bateu as costas no chão com dignidade zero. Não machucado, mas momentaneamente imobilizado.
Ana balançou a mão dolorida — porque socar muralhas humanas ardentes tem dessas — e, sem cerimônias, cortou as amarras da fragata com um estalo preciso. Não podia conduzir tal embarcação sozinha, mas não precisaria, queria apenas se afastar rapidamente.
Não olhou para trás, afinal, no horizonte, o Collectio já surgia.
Aquelas lulas eram realmente úteis.
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Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…
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