Capítulo 218 - Anne, Mary
— De novo! — gritou Ana. — Se funcionou uma vez, funciona duas!
Estava se enganando. Sabia disso. Mas no caos de uma batalha onde a lógica já havia pulado pela borda, repetir o absurdo parecia mais sensato do que tentar reinventar.
Niala não respondeu. Suava, e não com elegância. Uma perna aracnídea tremeu, outra se esticou, e com o rosto contraído em puro esforço, ela lançou o Collectio de volta ao céu. O navio gemeu, as velas se enrijeceram, e o mundo oscilou. Lá iam eles, mais uma vez, contra o último navio restante.
Do outro lado, Jack viu. E gritou.
— Imperiais desgraçados! Mary, sua estúpida, eles são mesmo navios sapo!
Girou o leme com fúria, os dedos finos segurando o aro como se estivessem dançando num salão pegando fogo. O navio não virou. Ele deslizou. Não havia ondulação ou vento que explicasse. Apenas movimento. Como se a água tivesse recebido ordens diretas de um rei louco.
— Marujos! — Jack urrou. — Continuem atirando! O inimigo não tem mais munição!
E eles continuaram. Ou melhor, as balas que voltaram sozinhas continuaram, cuspindo esferas de ferro na mesma cadência impossível.
O Collectio tremeu com os impactos recebidos. Seguia resistindo, mas as pequenas rachaduras se multiplicavam. Ana grunhiu, a mandíbula tensionada o suficiente para quase trincar os dentes.
— Miguel! Saquem as pistolas, manda mirarem nos três! Não importa quem acerte, só acerta!
Dito e feito. Ou, no caso, disparado. Algumas dezenas de balas de rifles de aparência fantasiosamente antiga cruzaram o céu em trajetórias tão disciplinadas quanto desesperadas. Talvez não fossem fortes o suficiente para realmente matar uma Sombra — principalmente sem mana embutida nelas —, mas eram o suficiente para, de alguma forma, distraí-lo.
Jack arregalou os olhos.
— Todos joguem-se no chão! Esperem recarregar!
Mary e Anne tombaram como se suas articulações não tivessem mais ligações reais. O capitão caiu duro, com um baque seco e ridículo, mas rindo, o rosto imundo de lascas de madeira e uma quantidade absurda de orgulho.
O convés virou campo de tiro. Balas ricocheteavam, enfiavam-se na madeira, perfuravam barris. A embarcação inimiga, mesmo chacoalhando de um lado a outro em uma tentativa falha de desvio, começava a parecer uma grande peneira. Mas o problema de munição também estava presente nas armas de fogo dos mascarados, que não demorariam para parar seu ataque.
Niala, cada vez mais pálida sob o esforço mental de controlar a embarcação tão rapidamente, fechou os olhos e voltou a erguer o Collectio. Mais uma tentativa. Talvez a última.
Ana acompanhou com o olhar, os músculos inquietos. Sentia o cheiro da madeira queimada. O gosto metálico na língua. As mãos, até então contidas, também alcançaram as duas pistolas.
Sabia que era uma jogada arriscada. Usar a mana reversa ali não sairia barato. Cada vez que se permitia, a coisa ganhava mais espaço dentro dela. Como mofo em canto úmido. Valia a pena?
Não soube responder, então decidiu agir antes que a dúvida a atrapalhasse.
Enrolou uma corda na cintura e conferiu a espada mal presa nas costas: ainda ali, meio esquecida. Não importava. O foco era outro. Se jogou do navio em pleno voo.
O vento rasgou o silêncio. O mastro girou. A corda esticou com violência, quase puxando-a de volta. As runas das pistolas se acenderam como se estivessem respirando por conta própria. Linhas negras, trêmulas, dançando sobre o metal como serpentes em pânico. Mas não estavam em pânico. Estavam com fome.
A madeira do cabo queimava suas palmas. A pressão no peito aumentou. A visão piscou, como uma vela vacilando antes da escuridão.
Disparou.
As balas avançaram como promessas frias. E por um instante — breve, cruel, honesto — parecia que iriam funcionar. Voaram certeiras, rumo à figura central, aquele maldito capitão com o pescoço torto.
Então, como se obedecessem a uma peça ensaiada mil vezes, as duas mulheres se jogaram à frente. Elas não correram. Elas surgiram. Num salto impossível, como se o tempo tivesse dobrado a lógica para favorecer o drama.
Os tiros atravessaram os corpos das duas com facilidade — não limpos, não elegantes. Buracos largos, abertos como bocas famintas, os estômagos retorcidos como trapos encharcados. Um pedaço de costela solto. Pedaços de roupas rasgadas ainda queimando nas bordas. E um cheiro que fez Ana arregalar os olhos.
Intrigada, soltou-se da corda, lançando-se no ar em direção ao trio, preparada para o golpe final, a lâmina nas costas finalmente gritando por uso. No entanto, por algum motivo que não conseguia explicar, antes mesmo de atingir o convés, a capitã soube que aquele homem não morreria ali.
Como se ouvisse seus pensamentos, Calico Jack se ergueu. O corpo se curvou, flutuou por um instante, antes de cair de joelhos ao lado dos cadáveres. Seus olhos antes opacos agora fervilhavam, animalescos.
— NÃO! MARY! ANNE! FILHAS DA PUTA, ELAS MATARAM VOCÊS! EU… EU NÃO DEIXEI E MESMO ASSIM MATARAM VOCÊS!
Ana pousou em meio aos berros. A aterrissagem foi pesada, mas firme. Olhou para as pistolas. Ou para o que restava delas. Gostaria de atirar de novo, evitar se aproximar do louco a sua frente, mas estavam condenadas. Os canos imbuídos com a energia escura estavam rachados, tortos, uma fumaça negra saindo como suspiro final.
— Armas descartáveis, então… bela porcaria— murmurou. E largou-as ali mesmo.
A mão foi para as costas, estourando as amarras para liberar a lâmina em cruz, que saiu com relutância de velhas feridas. Sem hesitar mais, disparou em direção ao capitão em prantos.
— MATARAM ELAS! BRITÂNICOS MALDITOS! VOCÊS MATARAM ELAS DE NOVO!
— Amigo — disse Ana, com um tom que beirava o cansaço —, esses corpos já estavam mortos antes de eu chegar. Não queria dizer nada, mas é uma puta sacanagem eu levar a culpa.
Jack congelou. O rosto esticou num sorriso que não sorria. Os olhos giraram. A boca abriu demais.
— NÃO! NÃO! ELAS ESTÃO VIVAS! ELAS FALARAM COMIGO! MARY FALOU COMIGO AGORA HÁ POUCO! — gritou, encolhido e explosivo, como um filho do surto e da histeria. — ATIREM! ATIREM! ATIREM! ATIREM!
A ordem ecoou pelo ar, e a primeira bala acertou Ana antes que ela tivesse tempo de reagir. Não era potente. Um cartucho velho, talvez sem pólvora, voando baixo. Mas acertou.
Ouviu apenas o estalo seco logo abaixo da costela. Havia um pequeno buraco em seu abdômen. Ponto limpo, ponto crítico. Um furo fino, discreto, traiçoeiro.
Não atravessou, e isso era o pior. Órgãos danificados. Um pré-requisito para qualquer coisa dar muito errado.
A tosse veio em meio ao pensamento, e com ela, o sangue de um vermelho-escuro. O gosto amargo denunciava mais do que queria saber, mas sua atenção foi atraída pela linha.
Tão fina quanto cruel, saía de dentro do ferimento.
— Mer… da.
Estava atenta às linhas, é claro, mas não imaginou que se moveriam como um flash repentino. A arrancou com um puxão, não podia pensar nisso agora, pois deixaram de vir só da frente. Agora, vinham de todos os lados. Tentáculos sutis com balas em cada ponta.
Rangeu os dentes, abandonando a ideia de alcançar o capitão. Começou sua dança.
Foi menos bela que o habitual, e com certeza menos elegante. Um amontoado de reflexos e sobrevivência. Cortava, defendia, rolava, se encolhia, girava. Um balé de alguém com febre e uma espada grande demais. Pedaços das linhas negras — visíveis apenas para ela, claro — caíam aos seus pés como vermes partidos. Mas os tiros… os tiros não cessavam.
— A Mãe me disse que eu era grande! — Jack berrava atrás dela. A voz cada vez mais embebida em um ódio sem ponto final. — Disse que eu era especial! Que nunca devia abrir mão do meu orgulho!
Largou os dois cadáveres no chão como se fossem sacos de batatas inúteis. Levantou os braços como um profeta doentio de algum evangelho inexistente.
— PEGUEM ELA VIVA, MARUJOS! IMPERIAIS NÃO MERECEM MORRER COM DIGNIDADE!
O cenário já caótico se intensificou.
Agora eram facões. Machetes. Cutelos. Armas sem braços por trás. Lâminas dançando por conta própria, girando no ar com precisão impessoal. Ana não ouviu mais. A mente desligou o áudio. Só restou o movimento. Desviar. Cortar. Saltar. Desviar de novo. Seus olhos começaram a escurecer nas bordas, como se a própria visão quisesse dormir. Os músculos pulsavam a cada giro, engrossando, quase rasgando a pele por dentro. Flores negras começaram a brotar por baixo das veias. A essa altura, ela já não estava mais lá.
Collectio, notando a situação, desceu.
Dessa vez, Jack não tentou desviar.
Ficou ali. De pé. Com os braços abertos como quem esperava um abraço que nunca veio. As linhas que o cercavam se enrolaram no navio negro em queda como uma carcaça, como se quisessem aprisioná-lo. Mas Niala, indiferente como uma deusa ocupada demais para ouvir preces, não reduziu velocidade.
O impacto chegou, e a frente do sloop se transformou em poeira úmida. Destroços voaram em todas as direções, como uma confusão de lembranças explodindo. E Ana foi lançada com eles, cortando o ar em queda livre, golpeando o nada mesmo enquanto despencava.
A ex rainha aranha seguiu a capitã com os olhos, e sem hesitar subiu pelo mastro agilmente, os membros longos, agarrando-se com firmeza até alcançar o corpo em descontrole. Agarrou Ana no meio do voo, num tipo de abraço funcional — não como se quisesse a consolar, mas não queria ser dilacerada pelos errôneos movimentos da grande espada.
Com um suspiro de alívio ao ver que aparentemente estava — com exceção de grandes feridas por todo seu corpo — bem, a depositou no chão. Estava se virando, pronta para voltar ao leme, quando sentiu algo atingir seu pescoço. Não teve tempo de gritar antes do corpo se dobrar para trás num espasmo.
— Anne? Mary? Então vocês ainda estavam vivas!
Uma dor aguda atravessou a vice capitã como se tivessem aberto suas vértebras com as unhas e despejado sal grosso direto na espinha. Os fios negros voltaram a se manifestar, menos gentis que antes — se é que algum dia foram. Infiltraram-se na carne, escavando espaço lentamente através dos ossos.
No canto da visão embaçada, Niala notou que Ana, caída ali perto com olhos ainda turvos de outra realidade, sofria o mesmo. Um processo desesperador. Lento. Invasivo. Indescritivelmente solitário.
Queria fugir. Fugir do convés, do navio, da própria forma. Fugir de si. Mas nem chorar ela conseguia. O corpo tremeu — não em resistência, mas em rendição.
— Vocês são tão engraçadas! — gritou a voz em meio a uma gargalhada tão fora de tom que o navio inteiro pareceu estremecer, enquanto, com delicadeza, acariciava os cabelos de Niala. — Quase me mataram do coração, sabiam? Mas é um alívio que ainda estejam vivas… um alívio!
Do canto do convés, surgindo com a graça de uma marionete não tão bem feita, Jack se mostrou, caminhando em passos curtos, até o leme do grande navio negro.
Quer apoiar o projeto e garantir uma cópia física exclusiva de A Eternidade de Ana? Acesse nosso Apoia.se! Com uma contribuição a partir de R$ 5,00, você não só ajuda a tornar este sonho realidade, como também libera capítulos extras e faz parte da jornada de um autor apaixonado e determinado. 🌟
Venha fazer parte dessa história! 💖
Apoia-se: https://apoia.se/eda
Discord oficial da obra: https://discord.com/invite/mquYDvZQ6p
Galeria: https://www.instagram.com/eternidade_de_ana
Ficaremos sem imagens por um tempo, mas logo volto a postar!
Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.