Capítulo 225 - Não Se Mata o Último

Havia um cheiro persistente no ar.

Não era só pela carne — embora a carne, por si só, fosse um bom motivo. Parte dele parecia vir dos talheres, que enferrujavam aos poucos. Aquele odor forte, temperado com maresia e algo mais… orgânico.

Jack cortava a carne com a precisão de um açougueiro aposentado, mas o entusiasmo de um gourmet enlouquecido. Era um dos poucos momentos em que se movia de forma minimamente funcional, sem aquele balançar arrastado. Anne estava reclinada na cadeira, botas em cima da mesa, dedos tamborilando no cabo de uma faca. Seu olhar, antes afiado como a lâmina que carregava, agora parecia desfocado, como se metade dela estivesse em outro lugar.

Com uma lambida final no prato, Jack bateu palmas. 

— Miguel, meu querido!

O subordinado, parado atrás da mulher com uma postura rígida, se virou para o capitão. Sua expressão era a de sempre, endurecida como deveria ser, mas qualquer um que olhasse juraria que olheiras estavam nascendo naquela carranca de pedra.

— Os restos não vão ser o suficiente. Traga mais um, por favor.

— Mais um? — repetiu Miguel, olhando de relance para a mulher que balançava na cadeira, que lançou um olhar indiferente de volta.

— Sim, meu caro! — disse Jack, erguendo um copo com algo que definitivamente não era vinho. — Que entre o convidado!

Não questionou mais, e poucos minutos depois, o mascarado já arrastava um homem quase sem forças, porém de alguma forma, ainda com o pescoço erguido pela dignidade, mesmo que o resto do corpo estivesse fazendo hora extra.

— Esse era o último, capitão — disse, soltando o homem no chão. — Não sobrou mais ninguém.

Jack parou de mastigar. Ficou olhando para o prisioneiro como quem examina um espécime raro.

— O último, marujo?

Miguel confirmou com um aceno mudo.

— Ora, então teremos que pular o café da manhã! — anunciou Jack, teatral. — Os mares não permitem que matemos o último. A superstição é clara!

Anne revirou os olhos.

— Tem certeza, Calico? — disse ela, mexendo nos dentes com a unha antes de cuspir um pedaço no chão. — Eu tô com fome.

— É claro que sim, minha querida! Afinal, um pirata sem uma lenda não passa de um grande vagabundo do mar! Precisamos que ele espalhe as notícias.

— Mas ele não é um civil. É um capitão. Ninguém acredita na palavra de um derrotado.

Jack pousou os talheres e olhou para ela com olhos que não piscavam há tempo demais.

— Anne, Anne…

— Então não tem jeito. — A mulher mastigou mais um pouco da unha, revirou os olhos em protesto, mas não insistiu. — Seu nome é Ignácio, certo?

— Sim. — O homem ergueu ainda mais o queixo. A encarou, com os olhos fundos e injetados, a respiração pesada, a mandíbula travada de tanto conter raiva. Raiva estéril, mas ainda assim, digna. — Capitão Ignácio, da Aurora Mercante.

— Ótimo, é bom que ainda consiga falar… — murmurou Anne, antes de ser interrompida bruscamente.

— Espero que esteja animado, homem! Vai poder contar com orgulho a todos o que viu aqui. Vai dizer que Jack Rackham ainda vive. Que Anne Bonny ainda corta gargantas. E que o Ranger ainda corta os mares! — bateu as mãos na mesa, fazendo os pratos pularem. 

Ignácio engoliu em seco. Havia algo naquele tom, naquele sorriso desequilibrado, que fazia até um homem endurecido pelo sal hesitar.

— E se eu me recusar?

Anne parou de tamborilar na faca e girou-a entre os dedos, rápida como uma serpente.

— Aí a gente corta a sua língua e te joga em mar aberto. Aí você não precisa contar história nenhuma.

Silêncio.

Ignácio respirou fundo. A expressão séria da mulher à sua frente era quebrada por olhos estranhamente divertidos. Olhou ao redor, com a visão passeando pelo convés, e quando viu os pequenos ossos espalhados pelo chão, todos mais semelhantes do que deveriam com sua própria mão mal nutrida, respondeu.

— Está bem.

Anne sorriu.

— Excelente! Homem da máscara idiota, dê umas tábuas pra ele assim que passarmos perto da próxima ilha. — pegou um pedaço de carne do prato e atirou aos pés de Ignácio. — Leve isso como lembrança, não temos mais ração.

Do lado, Miguel só suspirou e se afastou. Jack, por outro lado, se inclinou para frente.

— Você está tão direta ultimamente, minha linda Anne! — exclamou o capitão de pescoço torto, num tom entre o elogio sincero e a provocação passivo-agressiva. — Você também está ótima, Mary! Quem diria que sabia conduzir um barco tão bem. Devia ter me dito isso há anos!

No leme, Niala continuava imóvel. Seus olhos vidrados miravam o horizonte como uma estátua. Os ombros angulosos demais, os braços finos como os de um adolescente doente, e as bochechas… afundadas, secas, como se a fome houvesse se alojado profundamente ali. A antiga rainha agora parecia mais um amontoado de galhos secos do que a digna aracnídea.

— “Sim, Jack, eu me esqueci…” — murmurou o próprio Calico, imitando a voz feminina com a leveza grotesca de um ventríloquo emocionalmente comprometido.

Ana o encarou, depois olhou para a mulher à frente. E por um segundo, só um segundo, algo quase humano surgiu em seus olhos.

— Você precisa comer, “Mary” — disse com a voz mais baixa. — Não tá com um aspecto muito bom. Nunca ouviu dizer que quem não come… não “cresce”?

Deu ênfase na última palavra, e Niala, apesar do rosto ainda paralisado, virou os olhos trêmulos. A boca abriu um pouco, mas não disse nada. Acenou e, hesitante, levou um pouco da carne que já repousava ao seu lado até a boca, a qual mastigou de forma anormalmente lenta.

Anne assentiu, satisfeita. Em seguida, jogou os pratos da mesa com um só movimento. A porcelana estalou no chão com um barulho alto, mas incrivelmente não se quebrou. Fez um sinal para outro mascarado que não esperava muito longe, o qual trouxe um grande mapa amarelado para a mesa.

— Se seguirmos essa corrente aqui — disse, apontando para uma fraca marcação próxima a Venezuela. —, vamos quase sair da região dos mares caribenhos. Isso nos daria uma vantagem de espaço. Menos rotas comerciais, menos patrulhas. Mais margens.

Jack olhou o mapa como quem vê um quebra-cabeça faltando peças. Franziu o cenho.

— Não sei, Anne… Há algo de muito… seco pra esses lados. Sabe o que acontece quando o mar fica seco demais? Começa a feder. E a gente sabe onde isso termina.

Anne soltou um grunhido leve, entre uma risada e uma crítica, mas não respondeu de imediato. Trocou um olhar discreto com Mary, então suavizou o tom.

— Não combinamos de recuperar nossas forças longe dos ingleses que estão te caçando? — disse, agora com um sorriso que quase parecia sincero. — Precisamos de uma frota, Calico. Mais piratas, mais armas, mais comida. Você sabe disso.

O capitão a encarou por longos segundos. Os olhos se moveram entre o rosto de Anne e os traços tremidos do mapa. Balançou a cabeça, como se discutisse com alguém que só ele ouvia. Talvez estivesse. Depois, finalmente, murmurou com ares de epifania.

— Então que seja. Vamos para o sul. Barbados deve ter rum suficiente pra durar até o próximo saque. Aposto minha tripulação que está mal defendida.

Ergueu a mão, como um rei embriagado dando uma bênção, e gargalhou — um som seco, que poucos achariam realmente engraçado.

Anne também gargalhou, mas havia algo mais em seu olhar. Mary não disse nada. Apenas mastigou mais uma vez.

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Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…