Índice de Capítulo

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    “Recupere a Coleção.”

    Bufando como quem escuta pela milésima vez uma piada ruim que insiste em se repetir, Jasmim continuou abrindo caminho pela mata fechada, cortando folhas grossas e ramos insistentes com um facão improvisado. A selva não tinha pressa de ceder, mas a jovem também não tinha pressa de vencer. 

    Atrás dela, a construção onde estivera até pouco tempo começava a sumir na vegetação alta, apesar de que, de alguma forma, ainda pesava em seus pensamentos. Era um lugar… distinto, parecia um erro na paisagem. Aquelas linhas de concreto geometrizadas, placas cheias de direções desbotadas e a palavra enormemente transcrita na parede que insistia em gritar: REPÚBLICA. Um nome grande demais para um prédio vazio, num mundo onde os conceitos também haviam se despovoado.

    República de quê?

    Talvez tivesse importância, talvez não. Ficou parada por alguns segundos encarando a palavra, como se a resposta pudesse se formar sozinha a partir das letras. Nada aconteceu. Nenhuma revelação, nenhuma memória redentora. Só um incômodo sutil, como se já tivesse passado por ali — ou sonhado que passava. Não era o tipo de mistério que valia esforço. Deu de ombros e voltou à tarefa menos metafísica de continuar andando.

    Andar era simples. Mas decidir para onde… nem tanto.

    Estava sem destino, e sabia. Cada passo servia apenas para não parar. Não fazia ideia do que queria. Assim, após poucas centenas de metros debaixo do Sol, encostou a lâmina no ombro, enxugou a testa com o braço e respirou fundo. As opções se apresentavam cada vez mais com uma clareza desagradável.

    Deveria viver ali mesmo, como uma selvagem, entre as ruínas e os insetos? Francamente, já tinha visto escolhas piores. Construir uma fogueira, comer algum bicho minimamente não venenoso, conversar com pedras. Tinha certa poesia nisso.

    Pensou também em procurar alguma vila, mas a ideia de sociabilidade a fez revirar os olhos. Não estava com disposição para “novas amizades”. Nunca foi exatamente um ímã de carisma, e a perspectiva de sorrisos falsos e perguntas sobre o passado parecia um pequeno inferno personalizado.

    Vagar sem rumo também tinha seu apelo. Só que, por mais tentador que fosse, vagar exigia força. Não força de vontade — disso ela estava cheia — mas força física mesmo. Força para matar, fugir, dormir mal e ainda acordar viva. Felizmente, estava mais forte do que nunca. Dava até orgulho de admitir.

    Meses naquele maldito subsolo não tinham sido à toa. O controle de mana estava afiado, os reflexos mais rápidos, e pela primeira vez em muito tempo, ela sentia o próprio corpo responder exatamente como queria. Não era mais só alguém com talento e birra. Era… eficiente.

    Lembrou-se com certo embaraço de como costumava desdenhar das artes marciais. “Para que técnica quando se pode ter poder bruto?”, perguntava a si mesma enquanto observava lutadores treinando movimentos que pareciam coreografias inúteis. No mundo real, atual, quem tinha mais mana, mais músculo e batia primeiro, geralmente vencia.

    Agora, com a ajuda daqueles malditos óculos, finalmente entendia a piada — ela era a piada. Descobrira que um corte no ângulo certo podia partir couro, carne e osso como papel molhado. Que um soco bem alinhado, vindo não apenas do braço mas de todo o corpo torcido naquele instante perfeito, fazia paredes de concreto estremecerem como sob um terremoto pessoal.

    Enquanto girava no mesmo lugar, indecisa, Barueri voltou a surgir em seus pensamentos. Roupas que não cheiravam a suor e terra, A guilda, seus cantos barulhentos, discussões idiotas sobre missões e recompensas. Era mais do que nostálgico.

    Mas… deveria? E se não tivessem vencido a guerra? Valia o risco?

    Bom, decidiu decidir depois de chegar lá.

    Não que o mundo concordasse com ela. A voz em sua cabeça soou mais alto dessa vez, como um grito contido. Ia além das palavras, trazia sensações: pressão atrás dos olhos, gosto metálico na língua, como se seu próprio corpo se revoltasse contra a decisão.

    “Recupere a Coleção.”

    No mapa, o ponto, antes opaco, tímido, piscava agora em um vermelho agressivo, tão insistente quanto uma dor de dente. A garota grunhiu alto, como se a reclamação tivesse alguma utilidade prática. Não era como se não quisesse obedecer. As ordens até agora, por mais aleatórias que parecessem, acabaram a salvando mais vezes do que gostaria de admitir. Mas essa? Essa tinha um problema técnico evidente: o marcador estava no meio do maldito oceano.

    Literalmente no meio. Sem ilhas por perto, sem estrutura flutuante, sem explicação lógica. Apenas lentamente se movendo sob a água. Infinita, escura, e absurdamente úmida. Ela tocou a própria camisa já úmida — desnecessariamente úmida. Suava. Não gostava do oceano.

    Vendo que a voz não ia parar, Jasmim cuspiu no chão, o gesto carregado de um ódio que não sabia bem a quem dirigir. “Porcaria de liberdade limitada”, pensou, girando o facão nos dedos antes de devolvê-lo ao ombro

    — Você pode pelo menos dar uma ordem clara ao invés de palavras soltas? — perguntou, já ciente da resposta. — O que que eu tô buscando? Como vou chegar lá?

    Houve um segundo de silêncio. Talvez dois. E então, como uma resposta incompleta repleta de um senso de humor torto, a voz veio.

    “Use um barco.”

    Jasmim arqueou uma sobrancelha. Se sentiu idiota por ter perguntado, mas antes de conseguir reclamar, sem aviso, o ponto no mapa, que antes apontava firmemente para o meio do nada, subitamente se moveu para a borda do mapa. Era longe, muito longe.

    — Vai levar semanas pra chegar até a praia…

    “Estimativa de percurso: vinte e sete dias, seis horas e onze minutos. Sugestão de trajeto: via florestal leste. Rota mais curta, 84% de chance de sobrevivência se evitar as áreas marcadas em vermelho.”

    — Tá… — O suspiro saiu mais como um rosnado. 

    Bem, pelo menos não podia dizer que sua vida era monótona.

    O facão, solidário à sua frustração, voltou a se mover em um corte, o qual, por azar ou descuido, enroscou por um instante num galho particularmente rebelde. Ela puxou, forçou, e quando a madeira finalmente cedeu, desequilibrou-se levemente — quase caiu, mas riu sozinha.

    Se tivesse caído, provavelmente teria rido mais.
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