Índice de Capítulo

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    — Chegamos tarde… 

    — E teria adiantado algo se tivéssemos chegado mais cedo?

    Alex bufou. O companheiro estava certo, estar ou não ali era uma decisão movida pela esperança teimosa, não pela lógica.

    À distância, duas silhuetas conhecidas: uma bebendo sem pressa; a outra com o alaúde de Nyx nas costas e a arma negra girando na mão como quem espanta moscas.

    — Pelo menos a gente encontrou elas… — continuou Luiz, ajeitando o corpo para tentar parecer confortável durante o voo.

    A sela das araras não ajudava o humor. Catarina vendia aquilo como “o auge do transporte aéreo pessoal”, mas isso era generoso demais para a oferta real. O couro era grosso, áspero onde não precisava e liso demais onde a perna tinha de agarrar; as ferragens beliscavam a coxa a cada batida de asa. O cheiro era uma combinação insistente de fruta passada e um fundinho de estábulo marinho. 

    As aves em si — araras de carga cor de âmbar, bicos riscados de cicatrizes e olhos inteligentíssimos — exalavam uma dignidade ofendida. Tinham dois longos chifres, quatro pernas poderosas e penas polidas com óleo que chiavam ao vento como velas costuradas à pressa.

    Alex precisava constantemente vigiar o próprio calor. Qualquer oscilação de humor e o couro estalava, a ave soltava um assovio curto e virava o olho como quem avisa: “Outra dessas e te jogo lá embaixo”. O arnês era um colar de placas e argolas gravadas, batendo no peito da criatura como sinos discretos; a cauda comprida funcionava como timão, corrigindo as rajadas de vento com um movimento irritantemente elegante. As garras, presas em manilhas trançadas, cravavam e soltavam o ar como uma máquina de costura.

    Luiz vinha em uma menor, mais nervosa e com a pele um pouco azulada. Tinha as mesmas joias utilitárias no pescoço, só que em liga escurecida; quando o vento apertava, ela arqueava as asas num arco perfeito e mergulhava um palmo, quase o fazendo cair.  Eram bonitas de ver; péssima de montar.

    O pior: eram caras. Quando Catarina as ofereceu pela primeira vez, fez parecer que daria para cruzar meio Caribe com todos os seus piratas. A realidade? Alex só tinha ouro suficiente para uma, e a segunda foi conseguida na base do choro e de uma suposta amizade duradoura.

    Assim, sozinhos, os dois homens voaram a toda velocidade. Felizmente, meio dia bastou. Barbados tinha poucos cais úteis, então achar o lugar foi fácil. O problema foi o que encontraram quando chegaram.

    Mesmo do alto, a pilha de corpos no convés do Collectio era incontornável. Pelo menos cinquenta. Crianças e velhos misturados, o tipo de soma que não devia existir. Abaixo, a cena dava um respiro, mas não consolava: sobreviventes acorrentados, conduzidos por mascarados. Caixas passavam de mão em mão — primeiro ouro em punhados, pérolas enormes, tecidos de ótima qualidade; logo garrafas e mais garrafas de rum; enfim, um pouco de comida. Estranhamente pouco.

    — Mas que merda… — Alex manteve a voz baixa para não assustar a arara e a si mesmo.

    Observaram bem o convés antes de decidir realmente parar ali.

    Sem perigos óbvios, eles deram mais uma volta antes de descer. Testaram o vento, o humor das aves, a distância dos canhões e o alcance provável de qualquer loucura. As araras não gostaram do cheiro, mas eram bem treinadas. Obedeceram com um arrulho contrariado e asas em ângulo, reduzindo a altitude em círculos curtos.

    Na proa do Ranger, as duas mulheres franziram a testa ao notar os intrusos. Alex devolveu o gesto num aceno murcho e saltou da sela. O pouso abafado estalou nos joelhos.

    “Saiam daqui!”

    A voz cortou o ar, atingindo a mente de Luiz como uma agulha. Segurou o ombro de Alex por reflexo. A palma ardia, mas não prestava atenção nisso. Seus olhos se encontraram com os de Niala, que acabara de lhe mandar o aviso, e o choque foi imediato.

    “Rápido, ele tá subindo!” 

    Nunca a tinha visto assim, tão agitada, com tanto… medo.

    — Temos que sair — sussurrou para Alex, já começando a recuar de volta para a Arara.

    — Do que você tá falando? — Alex tirou a mão do mentalista de seu ombro com um sacudir brusco do corpo. 

    Luiz não parou de se mover para responder. Se ajeitou no animal, pronto para sair dali. Viver parecia mais atraente do que discutir. Não foi rápido o suficiente.

    — Mary, Anne… com quem estão falando? — A voz veio da cabine, e a porta foi aberta lentamente pela mão ossuda. — São os ingleses?

    Assim que saiu, sua visão torta encontrou os dois homens. Arregalou os olhos em espanto.

    — Agora eles podem voar! Marujos, não deixem que fujam! 

    Niala não teve tempo de pará-lo. Ana sequer tentou. Aço voou de todos os lados, cravando-se profundamente na carne das grandes Araras, que soltaram gritos vivos e dolorosos enquanto se debatiam no solo. Luiz caiu em um baque surdo na madeira, mas rolou e se levantou em um pulo. Alex recuou dois passos, apertando os dentes.

    — Pensam que podem subir em meu navio como se mandassem aqui? — Jack gritou, indo em sua direção com passos erráticos. — Eu sou o único que manda aqui. Amarrem-nos!

    Eles foram ao chão antes do corpo entender o comando. Joelhos batendo na madeira, ombros puxados por algo que não se via. Pressão por todos os lados, como se o ar tivesse criado dedos.

    Ana finalmente se mexeu, balançando a cabeça de forma cansada.

    — Vieram se entregar, Calico. — disse em uma voz suavemente zombeteira. — Manda esses ingleses covardes irem limpar os porões.

    — Ingleses trabalhando no meu navio? Nunca! 

    — Como pode culpar os rapazes por querer entrar na tripulação do incrível Jack Rackham? — Ela circulava o capitão sem encostar, aproximando-se dos dois no chão. A pistola apareceu na mão como se sempre estivesse ali. — Mas, se você insistir… eu resolvo agora.

    O cano repousou na testa de Alex que, sem conseguir falar, a olhou de canto de olho.

    Calico Jack pareceu ponderar, cessando seus passos. Logo, seu olhar ficou resoluto.

    — Mate um e jogue o outro do navio. Que avise aos demais que não aceito ingleses!

    Ana suspirou e se apoiou com o cotovelo no ombro instável de Jack. Não gostava de encostar diretamente no homem, seu coração sempre parecia que ia explodir quando suas energias reversas se encontravam, por mais que tentasse se acostumar com isso. Ainda assim, o fez.

    As runas da pistola acenderam devagar, anel a anel… olhou discretamente para Niala.

    A alcoólatra pareceu hesitar, mas ajeitou a postura. Bocejou alto o suficiente para que todo o barco ouvisse, esticou o corpo num espreguiçar de ressaca e, sem aviso, arremessou a garrafa.

    O vidro passou a um dedo da cabeça de Jack e se quebrou no ar no exato momento em que a última runa se acendeu na pistola. As linhas negras reagiram como bichos e, enfurecido, Calico atingiu a ex rainha, a lançando em direção ao mastro principal como uma bala. 

    Ana, no entanto, não estava prestando atenção nisso. O cano da arma havia se movido junto com as linhas.

    O tiro saiu curto, e o fedor veio primeiro que o sangue: podre e fresco, doce e errado. A cabeça torta do capitão explodiu de uma só vez, e o aperto em Alex e Luiz afrouxou na mesma hora.

    Ana largou a pistola destruída sem cerimônia e fechou os olhos por um instante. Quebrar a ligação doía; respirou fundo e deixou a dor passar, uma sensação que pareceu uma eternidade, mas durou apenas o tempo de uma respiração profunda.

    Tirou com o polegar o filete de sangue escuro que lhe riscava a bochecha, pegou o morto pelo tornozelo e o arrastou até Niala, jogando-a no ombro com certa naturalidade. Alex e Luiz olhavam, sem conseguir acompanhar o roteiro.

    — Cuzões. Estragaram meu momento de diversão. — Ela nem fingiu doçura. Virou-se para a borda. — Miguel! Termina de guardar os corpos e monta acampamento!

    A voz saiu firme — mais firme do que vinha sendo em meses. Então encarou os dois, já livres, mas sensatos o bastante para não testar a sorte.

    — Levantem. Me sigam.

    Atônitos, caminharam quietos para dentro dos corredores frios do, como sempre deveria ter sido, Collectio.
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