Índice de Capítulo

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    Fede.

    Esse foi o primeiro pensamento de Ana ao receber o golpe sensorial. Para alguém que havia passado tanto tempo isolada, aquele misto de suor, fumaça e terra revirada era avassalador. Não era exatamente desagradável, mas definitivamente não era bem-vindo. O aroma azedo da civilização contra um nariz acostumado ao frescor do nada.

    Os muros à frente se erguiam com um ar de permanência forçada, altos o suficiente para afastar amadores, mas longe de inspirar verdadeira segurança. Não eram grandes o bastante para um cerco prolongado, e duvidava que suportassem um ataque direto de algo realmente perigoso. Talvez ainda estivessem em construção, ou talvez o intuito fosse apenas enganar, dar uma falsa sensação de segurança para quem se amontoasse lá dentro. De qualquer forma, eram curiosos.

    — Pessoal, vamos ter que baixar. — Alex soltou os arreios da carroça com cuidado. Girou os ombros, um gesto pequeno, mas que denunciava o peso do cansaço acumulado. Tentava disfarçar, mas estava exausto. — Eu vou falar o que rolou pros guardas… Não deve demorar, é a mesma papelada de sempre.

    — Tá. Eu vou levar o Fê pro hospital antes que dê alguma merda na ferida. — Júlia, sem cerimônia, prendeu o cabelo com um pedaço de pano e se apressou em ajudar o jovem sem braço a descer.

    Felipe ainda oscilava entre a consciência e o torpor. Milagrosamente vivo, mas longe de estar bem. Sua pele estava tão pálida que parecia feita de cera, e o suor escorria por sua testa em trilhas trêmulas. Seus olhos abriam e fechavam como se o esforço fosse insuportável.

    — A gente ainda tem pomada pra infecção em casa?

    — Pior que não… foi tudo usado na última missão — respondeu a arqueira, segurando o peso do companheiro com um pouco mais de impaciência do que carinho.

    — Droga… — Alex passou a mão pelos cabelos, tentando arrumar a juba escura grudada em sua testa. Parecia frustrado com a realidade.

    — Eu posso ir lá comprar.

    A surpresa foi quase palpável quando Marina, a maga loira, se manifestou. Suas mãos estavam inquietas, mexendo no próprio cajado como se precisasse de algo para se agarrar. Todos a encararam com carinho, mas, até agora, mal havia aberto a boca.

    — Pô, vai ajudar demais. Acha que aquela herborista da última vez faz uma promoção de novo? — Alex perguntou, aceitando rapidamente a oferta.

    — Acho que sim. Ela disse que gosta da gente…

    — Isso é bom. — O jovem pegou algumas moedas de bronze da pequena bolsa que trazia dentro da armadura de couro e as passou para Marina.

    Júlia resmungou, cruzando os braços.

    — Pra ela você vai dar o dinheiro agora? Pois trate de me pagar também!

    — Te pago assim que vendermos as carcaças, prometo.

    — Eu tô falando sério! Vou ficar muito puta se ficar me enrolando. — A arqueira ruiva entortou a boca e franziu as sobrancelhas, mas parou de reclamar. — Eu vou indo, a gente se encontra na pousada?

    — Pode ser. Obrigado, Júlia.

    — Tá, tá.

    Enquanto a ruiva se virava para partir, Felipe, ainda lutando para manter os olhos abertos, se esforçou para falar.

    — A gente ainda vai se ver, Ana?

    Ana observava a cena com um meio sorriso, absorvendo tudo como se fosse uma peça de teatro montada exclusivamente para seu entretenimento. Humanos eram fascinantes. Máquinas vivas de drama, pequenas engrenagens caóticas girando dentro de um sistema que, de alguma forma, ainda funcionava.

    Seus diálogos, suas pequenas frustrações, as cobranças, as promessas vazias, os gestos de cansaço… tudo parecia incrível.

    — Ana? — Júlia a chamou, notando seu devaneio.

    Ela piscou, sacudindo a cabeça, sentindo-se pega no flagra.

    — Ah, foi mal. Estava distraída. — Riu, coçando o braço. — Não tenho muito pra onde ir, então… bem, talvez.

    Seu tom foi mais hesitante do que pretendia. Porque, no fundo, não sabia se queria seguir com eles. Não sabia se queria se misturar novamente à humanidade. A ideia de simplesmente ir embora e nunca mais ver aqueles rostos… parecia tentadora, mas estranhamente incômoda.

    — Talvez? — Felipe franziu a testa, claramente insatisfeito com a resposta vaga.

    — Nada na vida é uma certeza. — Ana deu de ombros, oferecendo um sorriso enviesado, carregado de uma leve provocação.

    Júlia bufou, acenando de forma displicente para ela antes de partir. O espadachim ferido, por outro lado, sorriu, um pouco hesitante, como se ainda tentasse compreender aquela estranha nova peça em seu tabuleiro.

    — Bom, talvez até mais tarde então. — murmurou enquanto se afastavam.

    Alex tinha um grande sorriso no rosto. Lançou um aceno para os dois que partiam e, em seguida, um para Ana, antes de se dirigir ao guarda que o esperava ao lado da carroça, o rosto endurecido pela impaciência.

    — V-vamos? — gaguejou Marina, a voz tão baixa que quase se perdeu no burburinho ao redor.

    Ana arqueou uma sobrancelha, divertida.

    — Não precisa ficar tão nervosa sempre que conversarmos — brincou, inclinando ligeiramente a cabeça. — Eu não mordo!

    Seu sorriso, no entanto, dizia o contrário. A maneira como seus olhos se estreitavam, como seus lábios se curvavam em um gesto afiado, carregava algo predatório, inconsciente, mas presente. Marina deu um passo involuntário para trás, e Ana percebeu, sentindo um leve desgosto ao ver a reação. Deixou o sorriso morrer no rosto, emburrada.

    — Só fale normal comigo.

    A tímida loira se remexeu, envergonhada, e assentiu, ainda sem a encarar diretamente.

    — Eu vou tentar…

    — Combinado. Então, para onde agora, jovem maga?

    — Manipuladora.

    Ana piscou, virando-se para ela.

    — Oi?

    — Não é maga. O certo é manipuladora.

    — Ah. Nome interessante. — Encolheu os ombros, deixando o assunto morrer ali.

    Passaram pelos portões em silêncio. Os soldados lançaram apenas um olhar rápido para as duas, mas não disseram nada. Não era exatamente incomum que habitantes saíssem, mas tampouco era algo cotidiano. Mesmo nos poucos minutos que ficou ali, Ana notou pequenos grupos de caçadores indo e vindo da cidade, jovens e velhos, cada um carregando sua própria versão de uma vida ocupada.

    Eram um amontoado caótico de estilos e eras. Blusas de moletom contrastavam com ombreiras de metal e couro curtido. Calças jeans eram adornadas com cintos repletos de lâminas presas com tiras improvisadas. Algumas figuras pareciam saídas de uma época medieval, enquanto outras traziam resquícios do mundo que Ana conhecia — ou pelo menos, do mundo que um dia conheceu.

    Mais intrigante, porém, eram os equipamentos que pareciam ter sido retirados diretamente das carcaças de monstros. Ossos moldados como capacetes, escudos que lembravam carapaças, armas feitas de presas ou garras afiadas.

    Ana olhou para o saco de ossos que carregava nos ombros e riu consigo mesma.

    — Acho que minha ideia não foi tão exclusiva assim…

    Fazia sentido serem vendidos por um bom preço. Em um mundo onde a sobrevivência dependia do que se podia aproveitar, até os restos dos mortos se tornavam uma mercadoria valiosa. Era uma lógica fria, mas inegável.

    Respirou fundo e ergueu o olhar, permitindo-se absorver a visão das ruas desconhecidas da cidade que agora a acolhia. O cheiro de madeira, ferro e suor misturava-se com algo mais etéreo, uma energia quase palpável que permeava cada canto. 

    O cenário era um paradoxo vivo de uma exuberante beleza. Casas de pedra medievais dividiam espaço com velhos edifícios de tijolos e metal. O tempo havia se dobrado sobre si mesmo, misturando passado e presente em um emaranhado de história e adaptação.

    Pessoas riam e conversavam, um burburinho constante de vozes e passos. Jovens guerreiros apressados corriam pelas ruas, armas penduradas na cintura, figuras ameaçadoras observavam das vielas tortas que se formavam aos poucos, e os mais velhos observavam de longe com a cautela adquirida pela experiência.

    Dispositivos desconhecidos eram vistos em cada canto, sendo o mais comum deles as luzes bruxuleantes que saíam de lampiões rústicos, emitindo um brilho instável, nada parecido com a eletricidade um dia tomada como garantida.

    Para Ana, não parecia eficiente, mas era suficiente. Parecia que o mundo tinha sido reconstruído com as peças erradas, mas de alguma forma, ainda funcionasse. Mal conseguia se conter frente a gama de possibilidades abertas para sua criatividade.

    Pelas ruas, notou que o comércio também começava a se restabelecer. Pequenas barracas improvisadas forravam as calçadas, seus vendedores oferecendo frutas, tecidos, armas rudimentares e pergaminhos com símbolos que Ana não reconhecia. Algumas lojas já haviam se instalado dentro dos prédios brotados do chão, sinal de que as coisas estavam avançando mais rápido do que esperava.

    Diferente de todo o resto, o dinheiro trocado não parecia complexo. Quando não havia escambo, reparou em três tipos de moedas: uma de bronze, uma de prata e outra de ouro. 

    Eram finas, quase como papel, e menores que uma antiga moeda de cinco centavos, mas seu conceito de valor parecia óbvio à primeira vista. Suspeitava que a conversão entre elas não fosse tão simples quanto parecia. Haveria algo além do material? Um sistema de valor próprio como o dinheiro antigo? Deixaria para descobrir depois.

    Soltou uma pequena gargalhada ao pensar na ironia daquilo tudo. Estava pisando em uma nova civilização, explorando um mundo remodelado diante de seus olhos… mas, naquele momento, provavelmente era a pessoa mais pobre de todo o continente.

    Que recomeço interessante.
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