Capítulo 231 - Transplante

— Será que nascem de novo se eu cortar?
A pergunta ficou no ar, e Ana não esperou resposta. O incômodo não era filosófico, era logístico: a falta de uma mesa decente para alguém com braços nas costas.
Resolveu do jeito que resolve quase tudo — com uma gambiarra competente. Empurrou duas mesas, encaixou duas tábuas, abriu um vão no meio e deitou Niala ali, os quatro braços pendendo pelo buraco. Feio, mas funcional. Ao lado, em outra mesa, o corpo de Calico Jack insistia em existir pelo olfato; um cheiro doce e nauseante que obrigou Alex e Luiz a apertarem o nariz.
— Se era tão fácil assim matar ele, você devia ter feito antes… — Alex falou sem emoção, já estendendo o bisturi quando Ana levantou o queixo num pedido mudo.
— Não queria. Digo, não ainda. — Ela girou o instrumento entre os dedos, testando o peso. — Eu ia voltar mês que vem, bem a tempo do festival. É que o poder desse cara era perfeito pra dar um pontapé nos meus planos.
— Planos? — Luiz manteve os olhos nos movimentos dela. Não confiava na sanidade da capitã dentro daquele navio. — Na verdade, fodam-se os planos. Ela tá só desmaiada. Por que você tá abrindo o peito dela?
Ana interrompeu o corte por meio segundo, abriu e fechou as mãos no ar como quem procura uma palavra e encontra outra, menos honesta. Deu de ombros, voltou ao serviço. Voltou também para a pergunta original.
— Eu já deixei claro: o mundo é meu. — A voz saiu mais alta do que devia, e a força na mão também, fazendo um jato curto de sangue salpicar a tábua. — Tenho que começar minha reconquista de algum lugar.
Os dois se entreolharam. Não era esse o discurso que queriam ouvir, nem o tom. Alex bufou.
— A gente já não tinha falado sobre isso? Se ia fazer dessa forma, pra que eu tô há meses esperando aquela porcaria de Leviathan?
— A “porcaria de Leviathan” é o que vai me permitir manter o controle. Pensa, por favor. — Com Niala já com ossos separados, Ana fez um talho firme no peito de Jack, depois mais dois menores, como quem abre uma caixa difícil. Mergulhou as mãos naquela carne escura que já tinha desistido de ser vermelha e puxou o coração com uma naturalidade que não se ensina em escola.
Luiz, que vinha tentando manter a neutralidade, percebeu a mão pousada na própria faca. Alex cruzou os braços; a temperatura do ambiente começou a subir.
— Aquelas mortes… você prometeu não fazer mais esse tipo de coisa.
— A ocasião cria o ladrão. — Ana não se deu ao trabalho de soar culpada. — E, pra ser justa, geralmente ofereço um acordo antes.
— Os relatórios dos seus massacres dizem o contrário.
— Então foram escritos por alguém burro. Devia ter uma linha em destaque: “poucas mortes caso se rendam”. Se ninguém aceitou, a culpa não é minha.
— Tem uma pilha de inocentes mortos, porra! — O grande guerreiro socou a mesa, fazendo os instrumentos da cirurgia saltarem. O metal, quente, vibrava.
Ana ergueu o polegar, sincera.
— Esterilização dupla não é um mau negócio. Já pensou em virar médico?
A mesa voou num empurrão e Alex saiu da sala com um olhar que poucos gostariam de encarar. Ana acompanhou o vulto até a porta, segurou o impulso de chamá-lo e engoliu junto um comentário que, na melhor das hipóteses, pioraria tudo. Virou de volta para Niala.
— Ei! Ajuda aqui. Segura os braços dela.
Luiz levantou num salto e se posicionou atrás da cabeça da aracnídea, os antebraços travando por cima dos ombros ossudos.
— Vê se fica firme. Não temos anestesia e não quero alguém acordando e se debatendo com uma faca dentro do peito.
— Você ainda não explicou pra que tudo isso…
— Ela é uma mulher forte. — Ana ajustou o ângulo do bisturi, medindo a distância com os olhos mais do que com a régua da mesa.
— Sei disso, mas —
— Não tem “mas”. — A frase veio seca, porém sem grito. — Vou deixá-la mais forte ainda.
Respirou. Não um suspiro dramático; apenas ar entrando e saindo para assentar a mão. E então trabalhou. Rápido demais para conversas, preciso o bastante para parecer ofensa ao improviso da sala. Tecidos se abriram com um som úmido e curto; vasos foram pinçados e amarrados com a frieza de quem já fez coisa pior em condições piores. O metal vibrou na tábua. O cheiro mudou de ranço para ferro. Em dois movimentos que teriam dado inveja a um mestre cirurgião, a troca estava feita.
Luiz prendeu a respiração sem perceber. Parte por nojo, parte porque era mais fácil não opinar quando o corpo está ocupado em sobreviver.
— Ela não vai mais passar pelo que passou. — Ana falou baixo sem perceber. — Cansaço, falha, fome… chega.
Encostou a ponta do dedo no novo coração, sentindo o pulso responder sob a pele, firme e estranho, porém inegável.
— Além disso, isto aqui é perfeito pra esse corpo. — Tamborilou uma última vez no órgão enegrecido antes de finalmente começar a sutura. — Sei que vai aguentar o tranco. Bom, não sei, sei, mas acho que vai…
Luiz soltou os ombros de Niala devagar, como quem devolve algo frágil ao lugar de origem. As articulações dele estalaram num protesto discreto. Balançou a cabeça, puxou uma cadeira e afundou nela. Polegares nas têmporas, cotovelos nos joelhos, respirou pelo nariz até achar um ritmo que não competisse com o que batia no peito da aracnídea.
— O Alex não vai voltar tão cedo — murmurou, sem levantar os olhos.
— Ele precisava esfriar a cabeça. — Ana brincou e mordeu um pedaço do fio encerado para travar o ponto. — Eu também.
— Não é só calor. — Luiz largou as têmporas, encarou o teto, encarou o chão, decidiu pelo meio-termo que era olhar para a mesa. — Ele fica assim quando você atravessa a linha que ele finge que não existe. Principalmente a dos “inocentes”. A dos que não escolheram estar no seu caminho.
— Eu já disse que ofereci um acordo. — O tom veio sem defesa, só constatação. A agulha entrou, saiu, puxou a pele num desenho que começava a parecer organizado. — E, sinceramente, o Jack ia fazer merda com ou sem minha ajuda.
— Contabilidade de tragédia não consola ninguém. — Luiz deu de ombros, cansado. — Ele confiou em você. Confiou que você não ia matar sem necessidade. Não podia ter tomado essa decisão sozinha.
Ana parou um segundo, só o suficiente para checar a coloração ao redor do corte. Voltou a trabalhar, mais devagar.
— É isso que uma capitã faz.
— É isso que um ditador faz. — O mentalista soltou um riso curto, sem humor, e passou a palma na cara. — Você quer que eu vá atrás dele? — perguntou, enfim. — Não prometo convencer. Posso pelo menos impedir que ele exploda.
— Não se preocupa. Só me traz água limpa e um pano novo.
Luiz levantou, a cadeira reclamou. Na porta do depósito, parou um instante.
— Você sabe que ele só briga porque fica. Quando parar de brigar, é porque foi embora.
— Eu sei.
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Ficaremos sem imagens por um tempo, mas logo volto a postar!
Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…

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