Capítulo 233 - Uma bala. Dois giros. Uma tentativa.

Tal como em todos os saques que fez ao longo do caminho, cada depósito da cidade já havia sido esvaziado. Collectio, agora muito mais cheio, estava ancorado — de sua própria maneira — logo atrás. Os que não eram da casa cambaleavam, enjoados pela cada vez mais escassa mana.
— O Antonio vai ficar na cidade, rainha.
— É o da máscara de cobra?
— Ele mesmo.
— Não dá pra confiar muito nesse cara — resmungou Ana, apoiando o cotovelo no ombro de Miguel. Apontou com o queixo para a fileira dos corrompidos de Punta Cana, alinhados e fervendo de ódio. — E esses aí, o que acha?
— Bons músculos. Vão ser perfeitos para a tripulação permanente. Isso se obedecerem.
— Pensei o mesmo. — Ela estalou a língua. — Deixa um mascarado extra pra organizar as coisas por aqui, e pelo menos um quarto dos prisioneiros das outras cidades.
Miguel demorou um segundo antes de responder, olhando com olhos semicerrados para o convés.
— Os mascarados estão acabando.
— Não tem o que fazer, só um não vai dar conta de tudo isso aqui.
— Talvez a gente deva abandonar algumas das cidades…
A palavra “abandonar” bateu torta. Ana encarou os olhos neutros por trás da máscara, depois a cidade — a maior que tinham tomado durante o retorno — e tamborilou os dedos no próprio braço.
A destruição real, se ignorasse o mar vermelho nas ruas, era só uma fração do todo. Havia ali muito trabalho investido, livros mofados que ainda ensinavam alguma coisa, artesanato útil, pequenos rituais que sobrevivem ao apocalipse. Foi uma sorte ter capturado sua governante, não sabia se seria suficiente para bater de frente com o esforço inteiro de um povo, a ascensão de toda uma nova cultura.
De qualquer forma, respeitava essas pessoas.
Era por isso que, desde Jack, repetia o mesmo método: deixava um punhado de cativos para reconstruir — cuidadosas misturas das invasões anteriores. Um pouco de gente forte do norte, um pouco de gente fraca do leste. Os conhecidos nunca ficavam na mesma cidade. Famílias? Separadas sem qualquer dó. Por fim, um de seus fiéis súditos de pedra para dar a estrutura e a ameaça.
Já os nativos, esses iam embora. A acompanhavam em um intenso treino no percurso até a próxima cidade a ser derrubada.
Muitos podiam achar uma atitude injusta — e Ana sabia que era —, mas a pirata não os deixava de mãos abanando, oferecia algo grande em troca da desistência de suas antigas vidas: esperança.
Podiam recomeçar. Crescer sem medo de novos ataques. Viver.
A felicidade não entrava no contrato. Facilidade também não. Mas a proteção era o ponto forte, afinal, jurou que não deixaria pessoas como ela própria foderem com tudo novamente. Algumas letras miúdas no discurso deixavam claro que traições tinham juros altos, e Ana não precisou dar detalhes para que a maioria do povo voluntariamente evitasse pensar sobre isso.
— Você costumava ser mais esperto, Miguel — disse, sem olhar. — Já devia saber que não vou deixar nenhuma pra trás.
Cortou o pensamento com um sopro curto e virou-se para a centena reunida na praça. Deu alguns passos à frente; voz firme, sem grito nem pressa. A matemática da autoridade geralmente é simples: quem anda, manda.
— Hoje vocês têm uma escolha — anunciou, e começou a contar nos dedos. Achava o gesto convincente. — A primeira é bem direta, mato vocês. É rápido, resolve o problema e poupa tempo. Se seus filhos forem espertos, os poupo, mas não vou permitir um velório. Não recomendo, mas é uma opção.
O murmúrio veio meio escondido. Alguém praguejou “desgraçada” baixo o bastante para não virar mártir. Ana não reagiu, preferia insultos sinceros a aplausos falsos.
— Segunda: saiam. — Prosseguiu. — Peguem um bote, ração e um salvo-conduto meu. Enquanto estiverem no mar, estamos em paz. Se pisarem de novo numa cidade minha, teremos um problema.
Os olhos percorreram a multidão como quem marca pontos num mapa.
— Terceira: embarquem. Água, cama, pagamento e bebida. Vida simples, mas que recompensa. E, quem sabe, ganham a própria cidade no futuro. — Fez um gesto curto com o queixo na direção do convés, onde uma mulher de olhar abatido, mas confiante, baixava do navio junto com seu grupo designado. — Lá em cima, fracos não têm vez. Força, no entanto, não está só em seus braços. Se não luta, estuda. Se não consegue, costura, cozinha, limpa. Se sabe ensinar, vale mais que meu melhor pirata. Devem só ter em conta que não sou a mais paciente das pessoas. Ou são úteis rapidamente, ou os jogo pra fora.
Se abaixou perto do governante local, o qual lutou com unhas e dentes na véspera. Levantou seu queixo, o obrigando a encará-la.
— Claro — sorriu, deixando um humor seco escorregar —, há um porém.
Da bolsa tirou uma moeda dourada. Lançou ao ar, acompanhou o giro, deixou cair na palma. Pesou entre os dedos como quem avalia uma mentira. Jogou no chão.
— Esqueci que os dois lados dessa porcaria são iguais — riu, pegou o revólver que miguel já havia preparado. — Com essa aqui vai dar mais certo.
Avaliou o tambor devagar — uma única bala piscou como estrela impaciente —, fechou o cilindro e deu dois giros rápidos. Encostou a arma na própria têmpora e apertou o gatilho. O “clack” seco riscou o ar. Ana deu de ombros.
— Uma bala. Dois giros. Uma tentativa. — Estendeu o revólver e, junto, um saquinho de munição. Manteve a mão esticada até o guerreiro tubarão finalmente pegar. — Força não se importa quando se é um fodido. Só quero sortudos ao meu lado.
Ele não moveu um músculo por tempo demais. Ana suspirou, puxou a pistola do cinto com a outra mão, a voz sem paciência:
— Quer que eu faça por você? Aviso que essa aqui não tem espaços vazios.
O corpo do tubarão tremeu uma única vez, como madeira cedendo. Levou o revólver à própria cabeça. Apertou.
O estampido cortou a praça em dois. Metade de gente prendeu a respiração; a outra metade esqueceu como se fazia. O corpo tombou, a poeira aceitou em silêncio.
— Azarado — murmurou Ana, e um pontapé leve mandou o revólver escorregar até parar nos pés da próxima pessoa da fila. — Próximo.
Miguel anotou algo que não precisava ser anotado, apenas para não olhar o chão. A capitã, já desinteressada, virou metade do corpo, procurando Niala pelo canto do olho, e a encontrou a poucos passos, meio na sombra, meio no sol.
— Vai beber alguma coisa, mulher — disse, já andando até ela. — Já, já vamos à velocidade máxima pra quele maldito pedaço de ferro.
A ex-rainha não respondeu de imediato — e nem teve a chance. Ana aproximou-se mais do que o protocolo aconselharia e, sem cerimônia, tocou a pele negra marcada. O coração dela vibrou no ato, um martelo surdo batendo de dentro para fora. Assentiu, satisfeitamente discreta.
Niala sustentou o olhar, e um sorriso miúdo apareceu no canto da boca. Em seguida, com a naturalidade de quem já se conhece, puxou de dentro da manga uma garrafa curta, achatada, que provavelmente estava ali desde antes do ataque.
Ana soltou uma gargalhada limpa e deu um tapinha leve no ombro da outra. Pegou a garrafa, deu alguns goles e subiu para a amurada. Lá de cima, viu a cidade caótica começando a respirar de novo.
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Ficaremos sem imagens por um tempo, mas logo volto a postar!
Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…

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