Índice de Capítulo

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    Não dá pra fazer a ronda sem deixar a mão na coronha. Quem vem do chão sabe que é maluquice. Duque — que de nobre só tem o apelido e a mania de alisar o cabelo quando acha que ninguém tá olhando — discorda. Mas ele nasceu aqui em cima. Acha que Leviathan é firme só porque nunca caiu.

    — Tu tá ouvindo os sinos ou sou eu que tô inventando?

    — Tô. Dois longos, uma pausa. — Ele conta no dedo, sem graça. — Deve ser casamento…

    — Aham. Vamos ter que evitar a parte oeste essa semana.

    — Não quer participar da festa, não? — Ele ri baixo. —  Dizem que não ligam se entrarem forasteiros.

    Mostro os dentes, sem humor. Tenho certeza que ele já deve ter participado algumas vezes, mas sinto ânsia só de imaginar aqueles bacanais. Felizmente, a conversa morre quando viramos a curva e damos de cara com o cartaz pintado à mão: “Sopa comunitária”. Nem explicam de quê. Não que eu queira saber.

    — Esses desgraçados tão por aqui de novo… — falo, mais pro vento que pra ele.

    Duque suspira e toma a frente. Chega seco, mão aberta na nuca do sujeito da concha. O homem gira meio passo, segura a panela com as duas mãos. O metal quente deixa bolhas nos braços, mas ele não larga.

    — Que porra você tá fazendo aqui? —  Duque sabe trabalhar, aqueles olhos arregalados não enganam ninguém.

    — Alimentando gente — ele responde, de sorriso torto. — Vai pro relatório?

    Olho a fila. Rostos miúdos, ombros ossudos. Tem cheiro de caldo, tem cheiro de vela gasta, tem aquele outro cheiro que ninguém nomeia. No cavalete ao lado, o mesmo desenho de giz de sempre: círculos, setas, um olho. Eu já esfreguei três desses hoje.

    — Cadê o selo da cantina? — pergunto, sem levantar a voz.

    — Selo é pra loja. Aqui é dádiva.

    — Dádiva de quem?

    — Do povo.

    A concha mergulha. O Duque segura o pulso dele no ar, não com força demais, só o suficiente pra lembrar quem tá armado. Um murmúrio anda pela fila. A cidade é ótima em murmurar.

    — Fecha essa porcaria — digo. — Ou pelo menos volta pro seu lado da cidade. O centro não é lugar pra essas merdas.

    Ele encara, mede, decide. Baixa a concha devagar, tampa o caldeirão com um pano úmido, assobia pra dispersar a fila. Ninguém reclama alto, só meia dúzia de xingamentos não tão educados. O Duque solta o punho, limpa a mão na calça, volta a passar a palma no cabelo, automático.

    — Tão mais ousados ultimamente — comenta, de lado. — Ouvi de uma tal parceria com o padre.

    — É. Fiquei sabendo que o desgraçado tá querendo mais visibilidade.

    — E vai conseguir. Aquele papo de “salvação por degrau” junto com uma tigela de “comida”… vai pegar metade da cidade. Tem cheiro de preparação. A “família” do oeste vai pro ralo.

    Eu só assinto, não é bom ficar comentando esse tipo de coisa. A gente segue de volta pro norte. Não vale a pena verificar o sul, e ir pro leste é pedir pra morrer. O norte é “menos pior”, e “menos pior” é o luxo que a gente tem.

    Seguimos por passarelas cheias de honestidade e mofo. À esquerda, uma varanda com cortinas roxas e risadas que não combinam com o horário. À direita, no corrimão, fitas coloridas batendo no vento. Um cachorro de três patas — e não duvidaria que a quarta tenha ido parar numa panela dessas — dorme encostado numa caixa de ferramentas; abre um olho quando a gente passa, decide que não é problema comparado a todo o resto e volta ao descanso. Um homem cruza do nosso lado com um saco nas costas. Pode ser carvão. Pode ser qualquer coisa. A cidade aprendeu a não perguntar quando tem fome.

    — Relaxa a mão — o Duque fala, sem me olhar. — Vai furar a coronha com tanto apertar.

    — Quando botarem guardas nas esquinas certas, eu relaxo.

    Ele ri pelo nariz e a gente desce pros hangares. Não é nossa rota de sempre, mas é aquela maldita época do ano… e, entre pirata e o “caos pacífico” aqui de cima, às vezes dá empate. Os hangares ficam na parte que a baleia lembra de respirar: corredores largos, cheiro de óleo queimado e sal, luz de lamparina oscilando como se estivesse com sono. As portas metálicas são pintadas com nomes pomposos que ninguém respeita.

    Tiro o binóculo do pano e passo a tira no pescoço. Contar avião por tédio acalma a mão. Um, dois, três… o quarto tá sem hélice de novo.

    — Aquilo é um avião?

    O Duque viu primeiro. Despertei num salto, miro na direção. Uma mancha escura contra o claro. Não tem asa, tem cordame. Também não é zepelim — esses ainda aparecem de vez em quando, inchados e vaidosos.

    — Estranho, hein. Nunca vi avião com proa.

    — E tá vindo pra cá. — O Duque aperta o binóculo no rosto até marcar a pele. 

    — Tão inovando bem esse ano. Quem diria que eu teria a chance de ver um navio aqui em cima — bufo e disparo pro alto. Uma vez é o suficiente, o vento espalha bem o som.

    As cabeças surgem nas passarelas. Mecânicos com a mão preta de graxa, curiosos com caras que curiosos fazem, dois ou três padres de seita com os braços erguidos. Os guardas oficiais não aparecem, claro que não. Um aprendiz larga a asa de metal no chão e corre pra casa.

    É uma pena que não existam mais os alto-falantes. Os anúncios de ataque traziam certo conforto.

    — Porcaria de festival… — O comentário escapa. Tinha que ser logo no meu turno?
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