Capítulo 24 - Herborista
*Essa é uma prévia da reescrita! Ainda está crua, sem o polimento final, mas logo ganha forma. Se notar algo fora do lugar, toda ajuda é bem-vinda!
Sim, interessante…
Ao mesmo tempo, sufocante.
Não era uma multidão, não realmente, mas mesmo assim Ana sentia como se fosse uma massa esmagadora de corpos, passos e vozes. Um fluxo irregular de pessoas que se cruzavam sem se olhar, algumas animadas, outras tensas, muitas cabisbaixas, deslocando-se com pressa como se um segundo parado fosse um risco.
Ana franziu a testa, observando a cena com um misto de fascínio e desgosto.
— Parecem baratas… — murmurou.
— Quê? — Marina piscou, surpresa.
— As pessoas. Se amontoando assim.
A manipuladora hesitou por um momento, antes de soltar um suspiro, sem saber exatamente como responder.
— Vai ser meio apertado por um tempo. Os mais velhos não se dão tão bem com monstros. É até meio cômico… Ficam paralisados de medo quando um aparece. Então tem pouca mão de obra pra expansão.
Dez anos podem parecer muito, mas para um mundo onde o perigo estava em cada esquina, não era tempo suficiente. A humanidade claramente teve que se adaptar, mas não sem cicatrizes.
— Pode ser uma pergunta idiota, mas por que não “absorvem”? — questionou Ana, testando a palavra.
Marina lhe lançou um olhar desconcertado, como se fosse óbvio.
— Ah… Eles podem, mas ninguém quer arriscar a vida lá fora enquanto ainda é fraco. E contratar alguém pra ajudar um civil a virar caçador sai caro.
Colocou uma mão no queixo, pensativa, antes de continuar.
— Os que realmente querem crescer acabam indo pras fazendas. Pode demorar, mas algum dia chegam no rank F conforme matam o gado.
Ana piscou, surpresa com a simplicidade do sistema.
— Bom. É uma forma inteligente de crescer.
Já tinha suas suposições com os acontecimentos anteriores, mas a confirmação era útil. Seja lá qual fosse a lógica desse novo mundo, a morte parecia gerar energia. E energia, pelo visto, significava poder.
— Qual a proporção atual de manipuladores em relação ao resto da população? — perguntou, fingindo desinteresse.
— Você tá misturando um pouco as coisas… um terço dos sobreviventes do velho mundo são caçadores. — Marina soltava cada palavra devagar, como se explicasse a uma criança. — Dentro desses, um décimo são manipuladores. O resto é igual a você, os fortalecedores. Tem também as variantes, mas são poucas, bem poucas. Nem sei como mensurar. Eu mesma só vi uma na vida.
Ana assentiu, se alimentando da informação. Manipuladores, fortalecedores, variantes. Os nomes eram diretos, o que a agradava.
Manipuladores manipulavam… algo. Provavelmente a tal mana. Fortalecedores, como o nome indicava, supôs que se fortaleciam. Variantes… bem, esse era um termo amplo. Mas gostava do conceito.
No entanto, seu fluxo de pensamento foi interrompido por um cheiro.
Doce, levemente ácido. Familiar.
“Maçã.”
Seus olhos automaticamente seguiram o aroma até um pequeno balcão à beira da rua. Um monte de frutas se amontoava em cestos rústicos, mas uma única maçã, grande e vermelha, refletia a luz de maneira quase hipnótica.
Sem pensar, sua mão se estendeu.
O toque da casca suave sob os dedos. O peso sutil. O som crocante da mordida. O suco escorrendo pelo canto dos lábios. Amava maçãs.
Continuou andando, e o sabor preencheu sua boca antes mesmo que sua mente registrasse o erro.
— LADRA! GUARDAS! — o grito rasgou o ar como uma faca, afiado e impiedoso.
Ana piscou, surpresa. Havia vindo da mulher que parecia tomar conta da pequena barraca, os olhos brilhando de indignação.
— Merda… — murmurou. — Esqueci que não estou sozinha.
— De que droga você tá falando?! Me dá meu dinheiro, ladra!!
A vendedora gesticulava furiosamente, seu rosto ruborizado de raiva.
Ana passou a língua pelos dentes, tragando o gosto da maçã junto com o constrangimento. Ela, que por tantos anos foi a dona do mundo, tinha que voltar a se acostumar a viver em sociedade. Se virou, sem saber exatamente como se desculpar. Mas antes que pudesse abrir a boca, Marina deu um passo à frente.
— Me desculpa, moça! — falou rapidamente, enfiando a mão no bolso e puxando algumas moedas. — Acabamos de voltar lá de fora, ela tá só meio grogue.
A comerciante pegou as moedas com uma bufada irritada, mas aceitou a transação sem maiores discussões.
— Obrigada, Marina.
A pequena manipuladora apenas sorriu com um sutil abano. Parecia estranhamente feliz enquanto voltava a seguir seu caminho. Ana suspirou novamente pelo ar inocente e fofo da garota.
Falar sozinha, agir no piloto automático, esquecer regras sociais básicas… Quantos hábitos teria que corrigir para se encaixar nesse mundo outra vez?
A resposta era nenhum, claro.
“Eu sou mais velha, fodam-se esse bando de crianças que roubaram minha casa!”
Riu para si mesma. Quem dera pudesse realmente agir assim.
Primeiro precisaria aprender como ficar mais forte.
— Sim, aí vou poder fazer o que quiser com o poder desses velhos punhos! hahahahaha!
— Oi? Falou comigo?
“Talvez a parte de falar sozinha eu deva resolver…”
Ana não respondeu. Vermelha como um pôr-do-sol, apressou o passo, deixando a manipuladora para trás. Confusa, Marina começou a correr atrás dela.
Então, menos de duas dúzias de passos depois, Ana parou.
Era quase como se tivesse atingido uma parede invisível, mas feita de puro aroma. Um aroma tão forte que quase podia sentir o gosto. Tão nostálgico que, inconscientemente, a fez caminhar em direção a sua origem.
Café.
Não qualquer café. Café feito da forma exata que ela mais gostava.
Ana inspirou novamente, deixando o aroma envolver seus sentidos como um abraço morno em uma manhã fria. Era engraçado como o cheiro podia carregar lembranças tão vívidas — tantas xícaras, tantas madrugadas viradas, tantos momentos solitários preenchidos apenas pelo sabor amargo e reconfortante.
Uma pequena placa de madeira, recém-pregada, balançava levemente com a brisa. O desenho era simples: uma coroa dourada repousava entre um punhado de flores. Logo abaixo, em letras elegantes e bem desenhadas, lia-se Coroa de Ouro.
O lugar era discreto. Tinha dois andares, uma casa de cantos retos e sóbrios, sem ostentação, mas acolhedora. A porta de madeira continha pequenos quadrados de vidro, revelando prateleiras abarrotadas de plantas de folhas largas, galhos retorcidos e flores de cores intensas.
— Ué, já sabia pra onde a gente tava indo?
Marina chegou com passos apressados pouco depois de Ana. Não perguntou o motivo dela ter corrido. Assim que viu a vermelhidão no rosto da nova companheira, sentiu que, de alguma forma, entendia.
— Não… só parei pelo cheiro.
— Do café? — Marina torceu a boca, claramente desgostosa.
— Isso aí. Faz tempo desde a última vez que tomei uma xícara. Não gosta?
— Não, é amargo demais! Mas você tem sorte, provavelmente ela vai te oferecer um pouco. — Marina deu de ombros e empurrou a porta sem cerimônia.
O sino pendurado no topo do batente tilintou suavemente, delicado, anunciando sua entrada.
A loja era compacta, mas cheia de vida. Prateleiras abarrotadas de vasos e potes de vidro se espalhavam por todo o espaço, algumas plantas escorrendo de cestos suspensos no teto, criando uma espécie de teto verde vivo. Pequenas lanternas de papel pendiam em meio à folhagem, lançando uma iluminação suave que deixava tudo com uma aura quase mística.
No fundo, sobre um balcão de madeira escura, repousava uma cafeteira de ferro trabalhado, soltando uma fumaça densa e aromática. Próximo a ela, de costas para as clientes, uma mulher de meia-idade mexia lentamente um líquido âmbar, os dedos firmes conduzindo a colher com precisão. O avental que usava estava manchado com tons variados — verdes profundos, amarelos terrosos, alguns respingos de vermelho vibrante, como se o próprio tecido tivesse absorvido anos de trabalho e experiência.
Sem interromper sua tarefa, a mulher ergueu levemente o rosto, lançando um rápido olhar por cima do ombro. Foi um instante breve, mas o suficiente para Ana notar o brilho peculiar em seus olhos castanhos claros — um leve resquício de azul que dançava na íris como uma centelha oculta sob a superfície. Seu sorriso, embora gentil, carregava um peso que Ana reconheceu imediatamente: a combinação sutil de severidade e selvageria que só aqueles que já enfrentaram o mundo de frente carregavam nos lábios.
Assim que identificou quem havia chegado a sua loja, voltou a se concentrar no líquido denso que preparava.
— Pequena Marina, bem-vinda!
— O-oi!
— Estou meio ocupada, mas fiquem à vontade. Acabei de preparar um café.
— Eu disse! — Marina sussurrou para Ana com um sorriso travesso, cutucando seu braço levemente com o cotovelo. Em seguida, voltou ao tom normal. — Muito obrigada!
Ana apenas riu, aceitando seu destino. O cheiro já havia conquistado seu corpo antes mesmo de ela perceber, então não fazia sentido recusar.
Enquanto Marina se voluntariava para pegar as xícaras, Ana aproveitou para explorar um pouco mais. Deslizou entre as prateleiras, os dedos passando distraidamente pelas folhas de algumas plantas que não reconhecia. Algumas tinham um cheiro pungente, outras doces, e algumas exalavam um aroma que não conseguia definir — algo terroso, mas, ao mesmo tempo, fresco. Lembrava chuva recém-caída.
Foi então que algo familiar chamou sua atenção.
No canto de uma prateleira, escondida entre vasos maiores, repousava uma pequena porção de cardamomo. Pequenas vagens de cor esverdeada, algumas já secas, exalando um perfume especiado que contrastava perfeitamente com o amargor do café.
Ana sorriu, pegando um punhado com delicadeza.
— Ei, quanto custa o cardamomo? — perguntou, ainda analisando a textura da especiaria entre os dedos.
A mulher por trás do balcão não hesitou. Sem se virar, respondeu com uma naturalidade que fez Ana erguer as sobrancelhas.
— Se for apenas para o café, pode pegar, minha jovem. Você tem um ótimo gosto.
Ana piscou, surpresa pela resposta direta, mas não hesitou em aceitar a oferta.
— Agradeço.
Sem perder tempo, esmagou levemente algumas vagens entre os dedos, liberando o aroma escondido dentro das pequenas cápsulas. O cheiro se intensificou instantaneamente, dançando no ar e se misturando ao perfume da bebida recém-passada.
Marina voltou exatamente nesse momento, equilibrando duas xícaras de cerâmica fumegantes nas mãos.
— Toma. Mas não me olha torto se eu botar três colheres de açúcar no meu, tá?
Ana riu.
— Três?
— Cala a boca e bebe seu veneno.
Ana balançou a cabeça, e, com cuidado, jogou as sementes trituradas dentro da bebida ainda quente, mexendo suavemente para que a infusão ocorresse de maneira uniforme.
A fumaça subia em espirais lentas entre seus dedos. Quando tomou o primeiro gole queimou a ponta da língua, mas o sabor…
O sabor era perfeito.
O amargor robusto do café, equilibrado pelo toque cítrico e picante do cardamomo, criando um contraste que aquecia por dentro de maneira quase reconfortante.
Ana fechou os olhos por um segundo, saboreando o momento.
Por um instante, não estava mais em uma cidade desconhecida, rodeada por estranhos. Por um instante, era apenas uma manhã qualquer em sua antiga vida, onde o café era seu único companheiro constante.
Sim.
Isso era bom.
Quando abriu os olhos novamente, Marina a observava com um sorriso satisfeito, os cotovelos apoiados na mesa, a expressão de alguém que acabara de provar estar certa.
— Parece que valeu a pena parar aqui, hein?
Ana soltou uma risada curta, inclinando a cabeça levemente para trás enquanto segurava a xícara com ambas as mãos, aproveitando o calor que irradiava por sua pele.
— Não posso reclamar.
— Ah, tá vendo a herborista? É uma das variantes que eu te falei. Uma leitora — sussurrou Marina, inclinando-se para mais perto, como se estivesse revelando um segredo importante. Apontou discretamente para os próprios olhos. — É por isso que é tão boa com as ervas. Temos sorte dela ter aparecido nessa cidade.
Ana arqueou uma sobrancelha, girando o líquido escuro dentro da xícara antes de dar outro gole.
— E o que ela lê?
Marina sorriu.
— Mana, é claro.
Ana sentiu a resposta se instalar em sua mente como uma peça se encaixando em um quebra-cabeça incompleto. Fazia sentido. Se energia podia ser absorvida, se combatentes podiam fortalecer seus corpos e manipuladores podiam torcer o mundo ao seu redor, alguém que visse isso seria uma ferramenta valiosa, não?
Na verdade, não tinha certeza, mas a ideia de ‘ler’ algo não lhe era estranha.
Se esforçou para se conectar com as existências ao seu redor em seus anos de aprendizado e, por vezes, sentia um tipo de ‘vibração’ única para cada uma delas. Se fosse como pensava, podia imaginar um par de usos para tal habilidade.
Ainda mais importante que isso, percebeu mais uma vez que amava a pessoa que decidiu esses nomes.
Ia perguntar mais, quando repentinamente um frasco de vidro se quebrou. O som foi seco, cortante, e ambas as mulheres giraram os rostos na mesma direção instintivamente, seus sentidos já em alerta.
A herborista, que antes mexia tranquilamente em seu bule, agora estava imóvel. Encarava fixamente Ana, seus olhos arregalados como se tivesse acabado de ver algo impossível.
Os olhos de Ana também se arregalaram.
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REESCRITA – TEMPORARIAMENTE SEM IMAGEM
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