Índice de Capítulo

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    — Socorro! Caralho, alguém me ajuda, por favor!

    As palavras ecoaram num lugar onde o som não fazia questão de existir. Evaporaram no ar como vapor em azulejo frio — inúteis, como ele se sentia. Luiz correu, ou achou que corria. A noção de movimento ali era algo negociável.

    O mundo à sua volta era branco. Branco de doer os olhos. Branco de abafar qualquer ideia de horizonte. Só havia ele — e a companhia pouco reconfortante de uma quantidade absurda de gaveteiros de escritório, todos meticulosamente alinhados, todos trancados por cadeados negros que pareciam rir dele em silêncio.

    — Como isso é possível…?

    Desde que adotara com orgulho o título de mentalista — uma escolha autodeclarada, diga-se, sem qualquer validação oficial além do próprio ego — Luiz tinha se convencido de que sua “habilidade incrível” o colocava em um patamar especial.

    É verdade que já havia vasculhado muita mente por aí. E não era bonito. A cabeça das pessoas era um lixo bagunçado e fedido, cheio de coisas que deveriam ter sido esquecidas e outras que nunca deveriam ter existido. Passar tempo demais lá dentro parecia perigoso. Então, Luiz usava sua habilidade de forma moderada, quase discreta. Um empurrãozinho aqui, um sussurro ali.

    Às vezes, quando o dinheiro apertava — o que era quase sempre — ele manipulava atendentes de padaria para garantir um pãozinho ou dois. Ou melhor, para que achassem uma excelente ideia oferecer um “cortesia da casa”. O mesmo valia para entrevistas de trabalho, de preferência vagas que envolvessem pouco esforço físico e algum grau de sombra.

    Infelizmente, não era exatamente a estrela do mundo dos caçadores. Não era forte como os fortalecedores, não criava ilusões tangíveis como manifestadores, e não tinha empatia nenhuma com feras — os monstros pensavam diferente, algo que, por enquanto, ele não conseguia compreender. Com humanos, no entanto, Luiz era outro homem. Brilhava.

    Claro, nunca disse abertamente que manipulava mentes. Era esperto o suficiente para perceber que ninguém gosta de ser lembrado de quão facilmente pode ser dobrado. Por isso, dizia que seu poder era “causar leve confusão”. A ambiguidade fazia parecer inofensivo. E com algumas espadas penduradas nas costas, uma pose cínica e um sorriso seguro demais para o rosto que tinha, convenceu o suficiente de gente para subir até o rank C. Em Barueri, isso era quase uma lenda.

    Mas ali, naquela… coisa, tudo desmoronava.

    Aquilo não era um mergulho comum. Era uma prisão de silêncio e forma. Um castigo arquitetado com o capricho de um contador infeliz: repetição, simetria, inutilidade.

    As mãos tremiam — não de frio, mas de algo mais ancestral. Desespero, talvez. Tentou abrir um dos gaveteiros. Trancado. Tentou outro. Trancado. E mais outro, como se algum deles, por caridade, fosse se abrir e mostrar que tudo não passava de um sonho ruim com estética corporativa.

    Mas não havia caridade ali.

    — Isso não pode estar acontecendo… eu só queria ser ouvido, só queria provar meu valor… só isso!

    As palavras saíam cada vez mais rápidas, atropelando-se como se, ao ganharem velocidade, pudessem virar verdade ou romper alguma barreira invisível. Não viraram. Nem romperam nada.

    Luiz correu de um lado para o outro, tocando os cadeados que, embora fossem simples em aparência, tinham a elegância cruel daquilo que foi feito para não abrir. Eram frios, firmes e perfeitamente indiferentes à aflição de quem os tocava. A cada tentativa frustrada, ele se afundava um pouco mais na sensação de inutilidade. E não era só uma sensação.

    Bateu nos gaveteiros. Primeiro com força, depois com desespero, e por fim com o tipo de fúria que sabe que não serve para nada, mas insiste mesmo assim. Não havia reação. Nenhum barulho de tranca cedendo. Nenhuma mágica libertadora. Nenhum “clique” cinematográfico. Só os sons ocos de punhos contra móveis que não tinham a menor intenção de colaborar.

    — O que eu fiz pra merecer isso? — a pergunta caiu no chão junto com ele, mais pela fraqueza dos joelhos do que por decisão consciente. — Merda, merda, merda…

    A resposta veio em forma líquida, escorrendo pelo rosto em silêncio. Lágrimas, que até ali se mantinham sob controle, decidiram que já era hora de assumir o comando. A cada soluço, Luiz sentia um fio de lucidez escorrer junto. Um processo lento e quase elegante, se não fosse trágico.

    O tempo — se é que ainda podia ser chamado assim naquele lugar — passou como um borrão. Um borrão branco, sem bordas, sem pontuação. E, ironicamente, foi só quando Luiz parou de lutar que começou a entender. Os gaveteiros, percebeu aos poucos, não eram aleatórios. Representavam algo. Fragmentos. Recortes de memória, talvez. Mas não dele.

    Era ela. A mulher que ele havia tentado enfrentar com a arrogância de quem nunca soube onde estava pisando. Cada tranca era um pedaço do que ela era — ou, talvez, do que ela escondia. E o mais assustador não era a complexidade. Era o fato de que aquilo tudo… era só a superfície.

    — Eu não quero ficar louco… — sussurrou, sem muita convicção. — Não aqui. Não sozinho.

    Mas era tarde demais para esse tipo de negociação.

    A solidão ali não era simples ausência de companhia. Era uma presença ativa, opressora. Um tipo de vazio que parecia observar.

    Luiz se encolheu no canto do nada, abraçando a si os joelhos em uma vã tentativa de encontrar algum conforto. E ali, quando finalmente parou de resistir, de pedir, de tentar compreender — quando o cansaço venceu até mesmo o medo — ele o viu.

    Na branquidão interminável, como se estivesse lá desde o começo, alguém o observava.


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