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    Uma grande atleta, erudita e filósofa. E agora, viajante.

    Com o passar dos anos – que rapidamente tornaram-se séculos – Ana se metamorfoseou em algo além do humano, além do ordinário. 

    Sua imortalidade a moldou em algo mais. Seu corpo, refinado pelo treinamento incessante, tornou-se uma máquina de precisão e eficiência. Sua mente, alimentada por incontáveis livros e experiências, absorveu conhecimento o suficiente para preencher bibliotecas inteiras. Sua alma, se é que ainda possuía uma, encontrou refúgio na busca infinita pelo novo.

    Sem pressa e sem destino, embarcou em uma jornada através do mundo. Com nada além de uma faca militar roubada de um shopping abandonado, um caderno tão gasto quanto suas certezas sobre a vida e um punhado de lápis, começou a devorar o planeta.

    Começou pelo Brasil, óbvio. Era sua terra natal, e parecia o lugar certo para o início de sua peregrinação. Queria ver cada canto como nunca vira antes. Redesenhou mapas que já começavam a se esmigalhar e traçou uma rota por cada canto do país. Algumas ruínas estavam tão degradadas que mal reconhecia o que um dia foram, mas ainda assim se sentiu ridiculamente satisfeita ao ver o Cristo Redentor pela primeira vez.

    O que antes era um ponto turístico saturado de flashes e turistas se transformou em uma estátua solitária, contemplando um mundo sem fiéis. E isso, de algum jeito, era bonito.

    Depois, seguiu para o resto da América Latina. Era o caminho mais fácil, afinal. Cada cidade que atravessava tornava-se um novo museu abandonado, uma nova biblioteca a ser vasculhada. Uma biblioteca, sim, pois não se permitia ignorar um único livro que estivesse minimamente legível. Passava semanas transcrevendo-os, preservando o que podia em novas páginas tratadas com o máximo de cuidado. 

    Se a humanidade voltasse um dia, talvez encontrassem sua história espalhada em cadernos, tábuas e, vez ou outra, até em paredes de grandes cavernas.

    Mas se não voltassem?

    Bem. O mundo ainda merecia alguém que lembrasse dele.

    Claro que as páginas não demoraram a se esgotar, e em algum momento, sua memória se tornou o único real arquivo restante do conhecimento humano. Era uma situação um pouco triste, mas não a preocupava. Na verdade, era um grande prazer. Ria sempre que via gaveteiros enferrujados em suas viagens, sentia que estava se tornando um.

    O medo do desconhecido, o medo de deixar seu lar, não existia mais. Viajava sem olhar para trás, e seus pés pertenciam ao chão de qualquer lugar. Grande parte disso, sabia, devia-se a Gabriel. 

    Não estar sozinha mudava muito as coisas. 

    O anjo não era um amigo, tampouco um verdadeiro guia ou um guardião. Ele era algo entre um professor impassível e um espelho brutal. Já não o considerava apenas um delírio da solidão. As marcas roxas que cobriam seu corpo após os treinos não eram ilusões. Os hematomas. A dor que não mentia, ele batia forte demais para ser falso.

    Ainda assim, nunca entendeu. Por que diabos um anjo sabia lutar? O céu não deveria ser um lugar de paz? Isso a irritava. Ou melhor, a intrigava. Então, um dia, olhou bem nos olhos dele e disse, com toda a confiança do mundo:

    — Tenho certeza de que, na verdade, você é um demônio!

    Ele a ignorou, mas a teoria a divertia. Fez sentido na hora. Ainda fazia, na verdade.

    Pensava naqueles que vira nos filmes. Nunca acreditou em mitologias, mas agora? Bem, o que mais explicaria sua existência?

    Não saber era o mais fascinante. 

    Aquele ser era a única coisa no mundo com a qual se contentava em aproveitar o mistério. Sentia que, se finalmente descobrisse, perderia um pouco da magia de tudo.

    Eventualmente, Ana começou a se arriscar mais. Mas havia uma barreira que ainda se recusava a cruzar.

    O oceano.

    A vastidão infinita das águas parecia uma intensificação do Grande Vazio. Era um cemitério sem túmulos, um espaço sem bordas, uma coisa que engolia tudo sem deixar rastros. O oceano a incomodava mais do que qualquer deserto árido, qualquer selva sufocante ou qualquer ruína esquecida pela qual já havia passado. E, para piorar, havia um problema adicional.

    As malditas baleias.

    Se algum dia pensou que poderia se acostumar com essas aberrações, logo descobriu o quanto estava errada.

    Baleias eram aterrorizantes. Simplesmente grandes demais. E o pior eram os olhos. Não tinha qualquer base para esse pensamento, mas sentia que a encaravam com desprezo. 

    Eu sei de coisas que você nunca saberá, e você vai morrer sem saber.

    De alguma forma, podia jurar que estavam dizendo isso. Ana já havia tentado velejar, mas quando nadavam por baixo de seus barcos, ela travava. Será que o faziam apenas para assustar? Não havia necessidade para isso! Se queriam existir, que existissem debaixo da água, sem surgir do nada para arruinar um dia perfeitamente bom! 

    E o canto delas? Aquele som profundo que ecoava pelas águas, como um chamado de algo que existe desde antes do tempo?

    — Totalmente desnecessário. Detesto baleias.

    Sim, ela detestava baleias. Mas precisava viajar, então não tinha escolha.

    — Não, o mar fica pra depois.

    Depois?

    — Mas é claro, agora vou aprender a voar! 

    E essa foi sua decisão mais arriscada desde que decidiu enfrentar onças — as quais antes matava graciosamente com múltiplos tiros — diretamente com uma faca.. 

    As primeiras lutas foram um caos de instinto contra técnica, força bruta contra estratégia. Cada uma deixava sua pele marcada com cortes profundos e hematomas de cores impressionantes, mas, no final, sempre permanecia de pé, de alguma forma viva.

    Ainda assim, de algum lugar desconhecido dentro de si, sentia pena dos animais que morriam em tais combates. Ela amava lutar. Não sabia quando tal paixão despertou, mas isso era inegável. Logo, nunca recusaria um desafio, mesmo que vindo de uma fera selvagem que não sabia o que estava fazendo.

    Mas cada dia que passava, o mundo parecia… mais vazio. Herbívoros estavam relativamente bem, desde que se mantivessem atentos e tomassem cuidado onde pisavam, permaneciam eternamente vivos. Mas carnívoros? Esses estavam em ruínas.

    A roda da vida não perdoava essas criaturas imortais, predadores viviam uma tragédia invisível. 

    Sem envelhecer, os animais não podiam mais se reproduzir. Fetos não se desenvolviam independente do quanto tentassem. 

    Sem reprodução, os mais fracos lentamente morriam de fome.

    Sem presas suficientes, os fortes caçavam uns aos outros.

    A cada luta, havia menos deles. A cadeia alimentar se tornava mais frágil. Cada morte pesava.

    Mas isso não era algo que Ana pudesse resolver. Não foi ela quem fodeu o mundo. Então, seguiu em frente.

    Focou no fato de que não fazia ideia de como pilotar um avião. Ou melhor, tinha ideia, mas conseguiria realmente? Os livros diziam que era possível, mas teoria e prática eram coisas completamente diferentes, e erros custavam caro.

    No final, tentou de qualquer forma. E com muito sucesso, diga-se de passagem.

    A primeira decolagem foi uma explosão de adrenalina. Os motores roncando, o peso do avião se afastando do solo, a absurda liberdade de olhar para baixo e ver o mundo se afastar.

    Assim que tomou confiança, fez algo absolutamente estúpido: girou louca e violentamente no ar. Quase perdeu o controle, é claro, era um poço de burrice. Mas foi só quase, e, naquele momento, percebeu que amava os céus.

    Ao lado dessa nova paixão, continuou suas viagens.

    Sua vida era feliz.

    — Não só feliz, é uma vida perfeita.

    Perfeita… você diz?

    — Claro que sim!

    Era convicção pura. Não havia hesitação, nem dúvida. 

    Mas o mundo…  bem, ele não quis dar uma folga pra ela.

    Porque, mesmo em sua imortalidade, não estava isenta das fraquezas inerentes ao corpo humano.

    E foi nessa agradável época que as dores apareceram pela primeira vez.
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