Índice de Capítulo

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    *Este capítulo faz parte da novel reescrita!

    — Eu daria tudo por um ibuprofeno… — resmungou Ana, apertando as têmporas com força, como se pudesse esmagar a dor para fora de seu crânio.

    — Nunca te vi doente — comentou Gabriel, sem emoção alguma, passos vagarosos ao lado dela. Seu caminhar tratava o assunto como se fosse de uma irrelevância absurda.

    — Já faz muito tempo desde a última vez. Mas dessa vez… é diferente.

    Diferente. Sim.

    A sensação era familiar, mas não sabia dizer de onde. Um incômodo estranho, como um déjà vu que se recusava a se formar por completo. Algo afiado, inquietante, que raspava contra os ossos e fazia sua pele se arrepiar sem motivo aparente. Trazia lembranças estranhas. Lembranças ruins.

    — Bom… deve ser só uma enxaqueca.

    Mas não era só uma enxaqueca.

    No início, Ana tentou ignorá-la. Apenas um incômodo. Apenas cansaço.

    Dormiu mais. Comeu melhor. Bebeu água, fez alongamentos, caçou como sempre. Mas o tempo, esse desgraçado, era como um carrasco. O incômodo não passou. Cresceu como um tambor incessante.

    E então, desabou.

    No começo, foram pequenas falhas. Momentos em que tudo girava rápido ou devagar demais. Pequenos apagões onde piscava e percebia que não sabia o que estava fazendo segundos antes. A realidade parecia um tecido fino, desgastado, prestes a rasgar.

    Aos poucos, os sonhos chegaram. 

    Sonhos escuros. Sonhos sufocantes. Sonhos onde não havia nada.

    Neles, sentia-se comprimida, esmagada por algo invisível. Seu coração pulsava tão rápido que parecia prestes a explodir, até que uma dor brutal o atingia, como se atravessado por algo.

    Ali, o grito ficava preso, e quando voltava… tudo parecia igual, mas diferente.

    No fundo da mente, algo murmurava:

    É assim que a morte se sente.

    Não como um conceito abstrato, distante, mas como algo real. Algo presente. Algo que a tocava a borda de sua existência. 

    Neste dia foi mais violento, mais abrupto. Um verdadeiro colapso.

    — Parece que nosso tempo juntos está se esgotando, Gabriel.

    As palavras saíram leves demais, um fiapo de som, como se o próprio ato de dizê-las drenasse as poucas forças que restavam. O anjo não respondeu de imediato, mas a ausência de sarcasmo, desinteresse ou frieza de sua parte já era um evento digno de nota. 

    No lugar de seu costumeiro olhar impassível, havia algo que Ana quase não reconheceu — uma preocupação crua, ligeiramente vacilante, algo que, se não soubesse melhor, diria ser um resquício de humanidade.

    Isso foi tão estranho, tão ridículo, que riu. Um som seco, entre os dentes apertados, o tipo de riso que se solta quando tudo já foi longe demais para ser levado a sério.

    Que morte ridícula. Aquilo a incomodava.

    Queria um fim grandioso, um desfecho digno da imortalidade que arrastou consigo por séculos. Queria, ao menos, conseguir entender o que estava acontecendo.

    Mas em vez disso, ali estava, dobrada sobre si mesma, sentindo-se mais frágil do que jamais se sentiu, e ainda assim, a porra do anjo parecia mais abalado do que ela.

    Isso não estava certo.

    Com o pouco de força que lhe restava, tocou os próprios lábios. Queria dizer algo, talvez bonito, talvez uma piada idiota, mas a escuridão rastejou pelos cantos de sua visão, devorando aos poucos sua percepção do mundo, um traço de cada vez. 

    A luz se dissolveu. O som se dissipou. O corpo deixou de existir.

    E quando já estava prestes a se deixar levar… uma voz surgiu.

    Ríspida e forte, mas, ao mesmo tempo, carregava uma beleza anômala, como uma lâmina afiada sendo desembainhada.

    — Sua grande filha da puta, depois de tanto tempo te seguindo, já falei que não vou te deixar morrer tão fácil.

    Ana não conseguiu entender. O sentido da frase se perdeu entre o torpor da inconsciência e a dor que já começava a parecer distante. 

    O que importava, afinal? Tudo estava se apagando, seu corpo estava se desligando. Era isso.

    Adeus, mundo

    Pensou, pois seus lábios já não tinham força para transformar tal despedida em som.

    Dessa vez, não havia sonho. Tudo sumiu. 

    Mas não por muito tempo, pois o nada foi substituído por algo pior.

    E não foi uma fisgada, nem um aperto sufocante, nem uma pontada ardida. Mas sim uma dor feita de crueldade, uma dor que não deveria ser possível. Algo tão visceral que a ideia de qualquer sofrimento anterior parecia uma piada de mau gosto.

    Não conseguia respirar. 

    Cada parte de sua existência foi arrancada de dentro para fora. Despedaçada em camadas que nunca deveriam ser tocadas. Era como se estivesse sendo desmontada peça por peça, apenas para ser remontada sob uma nova ordem imposta por algo desconhecido.

    A realidade se distorceu ao seu redor, se dissolveu, e no lugar do que deveria ser o mundo, restava apenas o peso esmagador do sofrimento. 

    Sua carne, que sempre lhe obedeceu, se recusava a se dobrar sem lutar. Mas não havia luta possível, não havia escapatória. 

    O rasgo começou de dentro.

    Cada célula, cada partícula sendo triturada, esticada, reduzida ao seu estado mais puro. E a dor… ah, a dor tinha som, tinha gosto. Zunidos distorcidos, estalos secos. Era salgada como suor, ácido como sangue, quente como metal derretido descendo para o seu estômago. 

    Uma orquestra para um processo que não tinha misericórdia.

    E no meio disso, flashes surgiam sem parar, como se algum gatilho para um retroprojetor quebrado fosse ativado. 

    O barulho de uma cidade viva.

    O calor do sol queimando sua pele em um dia de verão.

    A risada de sua irmã ecoando de um cômodo distante.

    O cheiro do café queimado, porque sempre esquecia o fogão ligado.

    Não sabia a quanto tempo tudo isso tinha sido soterrado em sua mente. Muito, provavelmente. Mas tudo foi arrastado para longe por um soco da realidade que parecia dizer que agora deveria focar no presente.

    O corpo forte, moldado pela brutalidade e pela disciplina, se tornava ainda mais resistente, firme como aço. No entanto, estranhamente, seu volume diminuía. 

    Sentia a pele apertando a carne, esticando-se sobre uma nova estrutura. Grandes músculos pulsando, encolhendo, compactando-se sobre si mesmos. Ossos se realinharam, órgãos se otimizaram silenciosamente. 

    Mas para quê? Estavam preparando-se para um inimigo invisível, para uma ameaça que sequer existia.

    Não era apenas uma “compressão muscular”. Era mutação. Evolução. Milênios de desenvolvimento de uma espécie passando diante de seus olhos em meros instantes.

    Os membros afinados trouxeram de volta a aparência jovem-adulta que um dia teve. Mas por trás dessa ilusão de fragilidade, havia algo letal. Cada fibra adquiriu um potencial explosivo que ultrapassou qualquer lógica. Ela havia se tornado menor, mais veloz, mais forte, sem perder uma única gota de poder.

    Era um paradoxo, uma contradição viva.

    E então, finalmente gritou — ou talvez tenha apenas pensado que gritou, pois quando se deu conta, já estava se contorcendo no chão. Cada segundo arrastava-se como uma eternidade. Cada minuto se desdobrava como uma era inteira. 

    Queria resistir ao que quer que estivesse invadindo seu ser, mas como se vence algo que se tornou parte de você?

    Ironicamente, naquele momento, a morte que a pouco tempo queria tanto evitar, parecia um destino doce. Se pudesse escolher, a aceitaria sem hesitar.

    Felizmente, tão repentinamente quanto veio, a tempestade de desespero se dissipou. A dor recuou como uma maré, deixando para trás apenas um cansaço profundo, um corpo reconfigurado, e um cérebro tentando processar o impossível.

    Ela puxou o ar como se respirasse pela primeira vez. Seus pulmões se expandiram além do que era possível, e o oxigênio arranhou sua garganta como vidro moído.

    Era… estranho. Mas assustadoramente natural.

    Deveria estar quebrada, reduzida a um amontoado de ossos fragmentados, uma pilha de carne retorcida e inútil. Mas, em vez disso… sentia-se apenas… encolhida.

    Como um predador no momento antes do bote.

    Deus… aquilo era errado.

    Tão errado que sua mente tentou recuar, tentou impor um bloqueio, tentou negar o que seu corpo dizia com cada fibra recém-reformada.

    Mas a verdade rastejava dentro dela. Ela gostava daquilo.

    Gostava do sangue pulsando quente e forte, do controle absoluto sobre cada músculo, cada respiração. Gostava da clareza brutal que inundava seus sentidos. Gostava do novo poder que latejava sob sua pele, prestes a explodir.

    E gostava do que estava escondido em um canto obscuro da sua mente, onde a racionalidade não tinha domínio. Não sabia o que era, mas havia algo lá, tinha certeza.

    Um riso escapou, quase sem que percebesse. Baixo, rouco, carregado de algo novo. Seus olhos finalmente se abriram, e de imediato encontraram os de Gabriel.

    O que viu ali a fez querer vomitar. Não era aquele olhar blasé, carregado de uma indiferença angelical que ela aprendeu a tolerar.

    Não, era algo bruto. Dessa vez tinha certeza, aquilo era quase humano. O olhar de um homem que havia testemunhado algo além do que qualquer um poderia imaginar.

    Era aterrorizante.

    Seu peito apertou. Algo estranho se instalou ali, como um tumor, crescendo rápido demais para ser compreendido. Ana odiou isso. Odiou tanto que quis rasgar aquilo de dentro dela, arrancá-lo com as próprias mãos antes que tivesse tempo de dar nome ao que sentia.

    — Que porra de olhar é esse? — perguntou por fim, perplexa.

    Não conseguia entender a razão, mas queria cuspir as palavras, carregá-las com deboche e veneno. Mas soou fraca. Soou despreparada.

    E então, Gabriel desviou o olhar, sem dar uma resposta.

    Mas aquilo não importava, pois o peso do que quer que tivesse acabado de acontecer se abateu sobre a jovem. Sobrecarregada, desmaiou.

    No mesmo instante, outro som ecoou na noite. Um baque seco.

    De joelhos, Gabriel ofegava pesadamente.

    Cada inspiração era um fardo, cada expiração, um suspiro dolorido. Gotas de suor escorriam de sua testa, deslizando por sua pele pálida até atingirem o chão de terra, traçando pequenos sulcos na poeira como oferendas inúteis.

    Trêmulo, apertou a própria garganta. Foi forte o suficiente para deixar marcas, como se pudesse conter algo que se agitava dentro dele.

    — Nunca precisei usar tanto… 

    Os pensamentos se embaralhavam. O corpo queimava. O peito ardia como se algo estivesse sendo corroído.

    — Não resta muito… 

    Quantas vezes já tinha feito isso? Quantas vezes já tinha profanado sua própria essência para manter essa garota viva? Nem mesmo ele se lembrava.

    A resposta deveria estar em algum lugar dentro dele. Mas não estava. Só havia um buraco vazio.

    Só podia rir. Um riso seco, amargo, um deboche voltado para si.

    — Você está assistindo a tudo isso, desgraçado?

    Seu olhar subiu para os céus. Mas não com súplica. Não com fé.

    Ele desafiava.

    Havia raiva naqueles olhos — um ressentimento que fervia, fervia além do que qualquer ser celestial deveria ser capaz de sentir. No entanto, a acusação se dissolveu na vastidão, carregada pelo vento que não trouxe resposta. Talvez nunca trouxesse. 

    Cansado, fez o fio negro se retrair. Foi um movimento sutil, delicado, como o puxar de uma linha invisível. Mas a carnificina que causava estava longe de ser delicada.

    A fina linha escura que serpenteava de Gabriel se infiltrava fundo na carne inerte de Ana. Entrava pela base do crânio, deslizava sob a pele, fundo na carne, como raízes de uma árvore faminta, quase belo em sua perversidade.

    Mas o som era grotesco.

    O tipo de som que a realidade rejeitava, que o próprio ar parecia querer sufocar.

    Aquele fio… aquela coisa que fluía de Gabriel, não deveria existir.

    E ainda assim, existia, contrastando violentamente com o branco imaculado de suas asas.

    Uma sombra, infiltrando-se na luz divina que ele carregava.

    Podia ser chamado de pecador? Talvez, mas ele não parou.

    Cambaleando, se aproximou do corpo de Ana. Seus movimentos eram mecânicos, precisos, sem hesitação — um ritual que notavelmente já tinha repetido antes.

    Uma mecha de cabelo deslizou sobre o rosto sereno da jovem, e com um gesto quase gentil, Gabriel a afastou. Seus dedos roçaram sua pele fria.

    — Pobre criança… — murmurou, a voz carregava algo estranho.

    Não era só compaixão ou só desprezo, mas sim uma mistura intrincada de ambos.

    — Me pergunto como Ele reagirá ao saber que um ser tão imundo está caminhando por suas terras…

    Balançou a cabeça, afastando os pensamentos desnecessários. 

    À sua frente, Ana respirava. Isso era óbvio. O peito subia e descia lentamente. Mas… seu coração não batia.

    Não até que Gabriel cravou brutalmente os dedos em seu peito.

    Atravessaram a carne sem resistência, chegando a seu órgão vital, e os olhos de Ana se abriram com um engasgo violento.

    — Bem-vinda de volta, Ana.
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