Índice de Capítulo

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    Protótipo de capa Volume 1 – Ironia Divina

    Capa Volume 1

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    Um fino filete carmesim escorreu pela pele, quase tímido em sua aparição, como se soubesse que estava invadindo a cena errada.

    A garota caiu para trás com um baque mal coordenado, derrubando um dos quatro caixotes de livros que a cercavam como uma fortaleza improvisada. Levou a mão ao pescoço e tocou, incrédula, o ponto exato onde a lâmina a beijara. A expressão de susto deu lugar a uma faísca de raiva, mas, ao fim, ela apenas suspirou. Um suspiro cheio de vida. E resignação.

    — Tá doida, é?! — exclamou, já se abaixando no automático pra recolher os livros, como se evitar sujeira fosse mais urgente do que um corte no pescoço. — Só falei pra cê vomitar longe daqui, mulher! Vai estragar minha mercadoria!

    Cada livro era erguido com uma batida firme na capa, liberando pequenas nuvens de poeira que pareciam protestar contra o abandono. Em seguida, ele era cuidadosamente reposicionado no caixote, como se houvesse uma ordem oculta ali. Talvez houvesse. Talvez fosse pura teimosia.

    Ana apenas observava, ainda sem reação. Estava ofegante. Suando. Mas… quando aquilo começara? O corpo respondera por conta própria — luta, fuga ou vergonha? — e agora ela apenas encarava a cena como quem tenta processar um sonho esquisito com lógica de vigília.

    Foi o vermelho pingando da lâmina que a trouxe de volta à realidade. Arregalou os olhos. Baixou a arma de imediato. Sentiu o constrangimento crescer como uma chama mal contida, e tentou se concentrar na voz que ressoava com um tom de irritação contida — o tipo de irritação de quem já lidou com problemas demais para o dia.

    A jovem diante dela parecia ter, no máximo, dezessete anos. Seu sorriso era afiado como vidro polido e seus olhos atentos, como se registrassem cada falha de Ana em tempo real. Havia uma ousadia sutil em cada gesto — o jeito como se movia, como recolocava os livros, como erguia uma sobrancelha sem esforço — tudo nela parecia feito para provocar e fascinar ao mesmo tempo.

    Roupas simples, um pouco gastas, um chapéu largo com pretensões de personagem principal, e um cabelo castanho ondulado que descia até a cintura como se tivesse vontade própria.

    Por um momento, houve silêncio. Ana percebeu que a garota ainda olhava para a faca. A mesma que, minutos antes, quase cortara o pescoço dela. O momento parecia pedir desculpas mais elaboradas, talvez até uma cesta de frutas.

    — Foi um acidente — murmurou por fim, de forma simples, mas sincera, enquanto se abaixava para ajudar a recolher os livros.

    — Tá, tá. Só sai logo, vai.

    Poderia ter terminado ali. Mas, por algum motivo — culpa, curiosidade, ou apenas o desejo de se redimir — Ana não foi embora.

    — Está vendendo livros?

    A garota parou por um segundo, a expressão endurecendo. A boca se abriu, claramente prontos para soltar uma resposta que envolveria alguma variação rude de “óbvio”, mas ela pareceu reconsiderar. O lábio se curvou num sorriso quase performático. A comerciante se endireitou como se tivesse lembrado do motivo de estar ali.

    — Claro, querida cliente!

    — E aceita trocas?

    A pergunta veio acompanhada pelo som sutil de um nó sendo desfeito. Ana puxava algo de sua mochila, e o brilho nos olhos da garota aumentou, revelando um interesse imediato — ainda que bem pouco discreto.

    — Depende, o que cê tem aí, moça?

    Mas o entusiasmo desinflou assim que viu os ossos. Seu olhar demorou um pouco mais, indecisa se aceitava ou não desdém que subia por sua garganta. Ainda assim, aproximou-se com um suspiro. 

    Bom, já que cheguei até aqui…

    Estendeu uma mão ágil e precisa, tocando o osso com os dedos. No mesmo instante, um estranho círculo azul, quase uma mancha sobre sua íris, se formou sobre seu olho esquerdo, girando devagar conforme seu foco aumentava.

    — Hm… — murmurou. Seu semblante mudou, primeiro com surpresa, depois com algo que se aproximava do respeito. — A concentração de mana nesse osso é muito boa… criatura rank E? Não. Pera… rank D!

    O tom de exclamação escapou, involuntário, como quem é surpreendido pela própria empolgação. Mas logo a garota recuperou a compostura. O brilho nos olhos se acalmou. O rosto voltou à sua expressão padrão de desdém divertido.

    Claro, ela tinha reputação a manter.

    — Não sou uma vendedora de tralha qualquer, tá? — disse a garota, com o nariz erguido e um ar que mesclava orgulho e mágoa existencial — Mas vou ser boazinha o suficiente pra aceitar um livro por cada osso!

    Ana cruzou os braços, devagar, sem pressa. Não disse nada. Nem um suspiro, nem um resmungo. Apenas olhou.

    A comerciante não resistiu ao vazio sonoro.

    — É o preço do conhecimento, ué! Cê acha que sabedoria cai do céu? — disse, com um sorriso forçado, interpretando o silêncio como uma forma de protesto passivo-agressivo.

    Um leve sorriso escapou do rosto de Ana. Conhecimento não era uma moeda leviana para alguém como ela. Mas barganhar por ele? Isso ainda era terreno novo.

    Seus dedos tamborilaram suavemente no antebraço, num compasso paciente, mas calculado — ou pelo menos era isso que ela queria acreditar. Nunca negociara na vida. Nunca fora necessário. Mas lembrava de algo que lera certa vez — em um livro sobre sequestros ou talvez sobre administração, vai saber —: “A negociação mais perigosa é aquela que você nem percebe que está acontecendo.”

    Aquilo grudou na cabeça.

    Talvez fosse esse o caso agora. Ou talvez estivesse apenas fingindo entender o jogo, como quem aposta sem saber as regras. Ainda assim, manteve o olhar firme e os dedos em ritmo constante, esperando que a pose fosse suficiente.

    Felizmente, o tamborilar funcionou.

    A jovem comerciante resmungou algo inaudível, revirou os olhos e, como quem entrega uma joia para um ladrão simpático, apontou com o queixo para uma das caixas.

    — Tá. Troco por uma dessas caixas. Mas sem escolher os livros, ouviu?

    Ana riu, mais satisfeita com o processo do que com o resultado.

    — Uma caixa e algumas moedas. — disse, sem deixar espaço para debate. O estômago roncando fez coro à exigência. Mais do que um som, foi uma ameaça diplomática.

    A comerciante estalou a língua.

    — Fia, eu tô vendendo o almoço pra comprar a janta ultimamente! É o livro e mais nada.

    Seus olhos pousaram novamente na faca de Ana, ainda pendurada no cinto. Ela não parecia grande coisa. Nenhum brilho especial, sem entalhes mágicos ou runas misteriosas. Mas havia algo nela — algo irritantemente difícil de ignorar.

    Tinha bons olhos pra essas coisas. Sentia-se orgulhosa disso. E se os olhos dela estavam dizendo “isso vale”, ela escutava.

    — Me dá essa faca esquisita aí, e eu deixo cê levar mais duas caixas… negócio fechado, hein?

    Ana abriu a boca para responder, mas não teve tempo.

    — Maria? De novo você tá aqui? — uma nova voz, com o tom afiado de quem já está no limite da paciência, atravessou o espaço.

    Tanto Ana quanto a comerciante — agora nomeada Maria — viraram o rosto ao mesmo tempo, como dois personagens flagrados no meio de uma cena clandestina.

    A nova figura se aproximava com a elegância de alguém que andava por hábito, mas ameaçava por vocação. Cabelos castanhos presos num rabo de cavalo, rosto firme, confiante, e uma armadura de couro semi-desmontada que deixava visíveis seus braços fortes — braços de quem sabia usar as espadas que balançavam em sua cintura.

    Um brasão bordado em seu ombro exibia um cavaleiro montado em uma criatura de aparência pouco amigável. Provavelmente simbólico. Ou um retrato fiel. Difícil dizer.

    — Ah, não… chegou a insuportável! — reclamou Maria, com uma expressão de quem já repetiu essa frase mais vezes do que gostaria. — Quem tem dinheiro nessa cidade fica tudo aqui, cê quer que eu vá me esconder no mato?

    — Então paga a droga da taxa. — A jovem guerreira estava mais próxima agora, e suas mãos pairavam sobre os pomos das espadas com um sutil prazer. — Não tô brincando. Vai dar problema se não sair.

    — Essa aí se acha só porque virou caçadora — sussurrou a comerciante, fazendo concha com a mão para o lado de Ana, mas claramente com volume suficiente para ser ouvida a três metros. — Cê ainda é só uma Rank F, fia. Se manca.

    A tal caçadora apenas cruzou os braços, bufou e começou a bater o pé como quem tem toda a razão do mundo, mas nenhuma paciência para negociar.

    Resignada, Maria começou a arrumar suas coisas. Ana observava a cena com divertimento. Era como assistir uma peça mal ensaiada onde todos os atores acreditavam ser os protagonistas. Com um suspiro, começou a guardar parte dos ossos de volta na mochila.

    — O que acha de metade deles por uma caixa?

    — Trato feito. — disse Maria, com uma voz que escorria descontentamento. E, como se tivesse lembrado de algo importante, enfiou a mão no bolso e puxou um pedaço amassado de papel, entregando para Ana. — Aparece nesse lugar aqui, vou ficar lá o dia todo. Se ainda tiver com eles, compro todo resto dos materiais, dou minha palavra.

    Ana pegou o papel com uma curiosidade silenciosa, virando-o entre os dedos como quem espera encontrar um segredo escondido sob a superfície. Mas não era nada disso. Na verdade, era um cartão de visitas. Ou melhor, uma tentativa corajosa de ser um cartão de visitas, escrito com letras tortas e um entusiasmo desproporcional ao acabamento.

    Na frente da tragédia gráfica, lia-se:

    Maria, a Curadora Literária dos Perdidos.

    Sim. Aquilo era real. Não havia nada no mundo que a preparasse para aquele título, que parecia flutuar entre o exagero proposital e uma crença genuína no próprio marketing pessoal. Ana arqueou uma sobrancelha, já tentando calcular se isso era só charme ou uma forma camuflada de alerta.

    Na parte de trás, um bilhete sucinto e direto, como se tentasse compensar a poesia da frente:
    “Todos os dias nas mesas de trás do Madame Eclipse. Se não me encontrar, espera. Se eu tiver dormindo, me acorda.”

    — Madame Eclipse?

    — Sim, sim! É um bar lá no norte da cidade. Uma das poucas coisas que brotou por aqueles lados, não tem erro, não. Cê vai ver logo de cara.

    — É um lugar sujo — interrompeu a jovem caçadora, ainda em sua cínica posição, em uma entonação que transforma qualquer afirmação em julgamento. — Se não quer problemas, moça, recomendo que não se envolva com esses mercenários.

    Maria revirou os olhos com o vigor de quem treinou o movimento por anos, mostrou a língua com teatralidade ensaiada e, sem mais delongas, se agachou para agarrar duas cordas improvisadas que prendiam as caixas em forma de mochila às suas costas. Feito isso, pôs-se a caminhar com a firmeza de alguém que, mesmo odiando ser contrariada, sabia a hora de recuar.

    Ao passar por Ana, lançou-lhe um sorriso de canto e um movimento de lábios sem som, algo próximo a um “Até mais, e obrigada pelos ossos!”.

    Ana, com um sorriso torto, acenou de volta — mais por educação reflexa do que por qualquer outra coisa. A caçadora também se afastou, ainda bufando, agora mais ocupada em encarar os próprios pés do que em proteger a cidade de qualquer crime literário.

    Mas Ana já não estava exatamente ali.

    A palavra mercenários ecoava em sua mente com um brilho sutil de oportunidade. Era uma daquelas palavras que vinham carregadas de perigo, sim, mas também tinha gosto de promessa — principalmente daquelas financeiras.

    Os cifrões já dançavam em sua cabeça com mais empolgação do que deveria admitir.

    Mas isso era para depois.

    Antes de vender o futuro, precisava decifrar o presente. Os livros recém-adquiridos pesavam nas costas, e o chamado silencioso da biblioteca soava quase tão alto quanto seu estômago. Com um pouco de habilidade e simpatia forçada, talvez conseguisse trocar parte daquele conhecimento impresso por um prato de comida — ou dois, se o solitário bibliotecário estivesse de bom humor ou particularmente carente.

    Com passos lentos, mas certeiros, virou na direção de onde viera, os dedos ainda girando o cartão como se ele pudesse, de alguma forma, indicar o caminho certo. E talvez indicasse.

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    Em meio a ruas menos agitadas — daquelas que pareciam sempre à espera de algo que nunca acontecia — Maria caminhava com expressão severa. Os passos eram lentos, mas constantes, e cada um parecia medir mais as possibilidades do que a distância. 

    Seus pensamentos saltavam entre dois tópicos recorrentes: precisava começar a treinar. Urgente. Carregar caixas nas costas como uma mula culta não era um plano de vida, e se não fortalecesse o corpo, logo estaria com dores ainda mais fortes nas costas. A outra metade de sua mente, menos prática e mais intrigada, ainda remoía a negociação que acabara de fazer.

    — Uma mulher com segredos… aquela faca dá medo… — murmurou para si mesma, quase como se estivesse narrando a própria vida em voz baixa. Ninguém respondeu, o que era o ideal.

    Finalmente, chegou ao seu destino. O lugar, coberto por uma atmosfera escura que não parecia produto de decoração, mas sim da falta de verba e da presença de gente estranha, estava relativamente vazio naquele horário. Isso era bom. Menos olhos, menos perguntas.

    Se aproximou de sua mesa habitual, jogando-se sobre o banco com a leveza de quem já aceitara o desgaste nas articulações como parte do ofício. Do bolso interno puxou o celular — ou pelo menos o que passava por um. Era um bloco retangular, pesado, algo entre uma relíquia e uma arma de impacto. O corpo do aparelho era grosso, revestido com pequenas inscrições rúnicas ao redor das bordas. A tela reagia bem aos toques, com uma leve tremedeira esquisita, típica dos dispositivos de mana barata.

    Existiam modelos mais modernos, claro. Telas finas, interfaces por comando de voz, conexão direta com runas de leitura mental — mas essas belezinhas moravam nas vitrines famosas, nas mãos de gente rica o suficiente para não precisar correr atrás de livro nenhum.

    Em meio a um suspiro, discou o número com dedos ágeis, com uma agilidade que vem da prática e da necessidade de ser sempre dois passos mais rápida que os outros.

    — Natalya? Como vai, querida cliente? Ainda tá na cidade? — O sotaque fingido, carregado de charme e informalidade, já não estava lá. Durou apenas até a linha ser atendida.

    Sua expressão mudou rápido. Rosto sério, olhos atentos, sobrancelhas alinhadas como se preparassem para alguma decisão tensa. A voz do outro lado era seca, rápida. Impaciente, como sempre.

    — Pode vir pro Madame Eclipse amanhã? Acho que encontrei uma nova arma para sua coleção…

    Fez-se um breve silêncio. Não pela falta de assunto, mas pela presença da imagem que lhe viera à mente: a mulher maltrapilha, com olhos cansados, cheia de ossos na mochila.

    Maria suspirou uma vez mais. Um daqueles suspiros pesados, quase um pedido de desculpas lançado ao futuro. Ela já sabia que essa ligação daria problema. E ainda assim, a fez.
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