Índice de Capítulo

    div

    A manhã seguinte foi um inferno.

    Ana despertou com um humor miserável grudado em seu corpo como um cobertor úmido, denso e pegajoso. O despertador gritou como se tivesse uma rixa pessoal contra ela, irritante e cruel. 

    Por um segundo, considerou ignorá-lo. Só mais cinco minutos, só mais um pequeno adiamento da vida. 

    Mas o desgraçado continuava berrando, insistente, um lembrete implacável de que o mundo lá fora não se importava com sua falta de vontade.

    “Merda, merda! Precisa ser sempre assim? Cada dia vai ser uma cópia do anterior?”

    Se revirou na cama, o travesseiro abafando seu rosto por um instante enquanto praguejava contra a vida, o universo e tudo mais. Não sabia se alguma divindade era responsável por esse ciclo insuportável, mas, se sim, a odiava.

    A luz tímida do sol tentou penetrar as cortinas, uma força otimista, mas inútil diante da névoa de desânimo que pairava sobre seu corpo. Ela se arrastou para fora da cama, os pés descalços tocando o chão frio, um lembrete incômodo de que, sim, outro dia havia começado, e não havia nada que ela pudesse fazer a respeito.

    Na cozinha, a cena era a mesma de sempre: a geladeira emitia seu zumbido sutilmente hostil, os armários guardavam os mesmos itens sem graça, e o café… bem, pelo menos o café não a abandonava.

    Ou assim ela pensava, porque, quando o cheiro familiar da bebida preencheu o ambiente, algo não se encaixou.

    Uma mísera faísca de estranheza, um incômodo pequeno.

    Levou a xícara aos lábios, deu um gole profundo, e então, hesitou, franzindo a testa.

    Algo estava… errado.

    Sentiu a ausência antes mesmo de perceber o que faltava.

    Onde estava o sutil ressoar de seus pais dormindo? E a irmã pequena enrolada no sofá como um gato, com seus murmúrios infantis? Aquelas pequenas bagunças humanas que preenchiam o espaço, fazendo a casa parecer viva.

    Ouvia apenas silêncio.

    Era um silêncio esquisito. Profundo demais.

    — Mãe? Pai?

    A própria voz soou errada. Oca. Deslocada.

    Nenhuma resposta.

    O relógio da parede marcou os segundos de maneira irritante, como se estivesse curtindo a tensão.

    O olhar correu pelo ambiente, tentando encontrar provas de que era apenas paranoia. Mas tudo parecia… imóvel.

    O colchão? Bagunçado, com o cobertor jogado displicentemente. Certamente estiveram ali.

    Mas é muito cedo para terem saído.

    Sentiu um arrepio rastejar pela espinha.

    Seus passos a levaram até a janela. A hesitação pesava nos dedos quando puxou a cortina. 

    Parte dela não queria olhar. Não queria confirmar o que sua mente já intuía.

    Mas olhou.

    E, como esperado, a rua estava vazia.

    Nada de carros saindo de garagens com motoristas apressados, nada de vizinhos quebrando o silêncio com alguma conversa inconveniente. Nenhum cachorro farejando o chão.

    Não — espera. Havia um cachorro.

    Sozinho.

    O bicho cheirou o ar, ergueu a cabeça e encarou Ana como se a reconhecesse. A cauda abanou, feliz, indiferente à absurda solidão ao redor.

    E então, sem cerimônia, correu.

    Livre.

    Como se o mundo ainda estivesse lá.

    Ana piscou, tentando encaixar aquilo em alguma lógica aceitável. Falhou, é claro.

    A cortina deslizou de volta no lugar, seus dedos frios ao soltá-la. Seu coração martelava contra o peito, e sua garganta ficava cada vez mais seca.

    — Ah, eu devo tá sonhando…

    O café ainda esfumaçava sobre a mesa, esquecido. Por algum motivo, parecia completamente fora de lugar agora.

    Seus olhos percorreram o ambiente. A cadeira, a cama, a ausência de qualquer obrigação imediata.

    — Vou descansar mais um pouco.

    Um sonho ou um pesadelo?

    Não sabia.

    Mas ia aproveitar os poucos minutos antes de se desesperar.

    Afinal, todo bom CLT sabe aproveitar um descanso quando a oportunidade surge.

    Sonhou com a luz do dia anterior. Depois, que se afogava.

    Foi desesperador. Angustiante. Mas também… interessante.

    Tão real! Tão assustador! Tão diferente!

    Eu devia ir à praia.

    Pensava nisso enquanto engolia cada vez mais água, sentindo o desespero confundir-se com uma estranha admiração.

    Não lembrava da última vez que tinha feito uma viagem dessas. 

    Mas recordava, com nitidez quase cinematográfica, da infância — da época em que seus pais praticamente a arrastavam para o carro, determinados a fazê-la aproveitar as férias como uma criança normal.

    Sempre fora caseira.

    Lia. Jogava. Dormia.

    Sair era cansativo. Exaustivo.

    Ia a viagem toda reclamando, resmungando, rabugenta como todo bom pré-aborrecente. 

    Mas, no fundo… no fundo, se divertia.

    Antes que percebesse, já estava insistindo para que seu pai fosse com ela até a tão temida “parte funda” do mar. A qual, sejamos francos, mal devia passar de um metro e meio de profundidade. 

    Mas para suas pernas curtas e imaginação hiperativa, aquilo era o mesmo que abismo sem fundo.

    Ou dos buracos que cavava na areia, meticulosamente, planejando o momento em que algum pedestre distraído fosse cair em sua armadilha.

    É… eu realmente devia passear mais…

    Empolgada com a ideia, despertou.

    O choque veio como um soco no peito.

    — Mas que porra! Já são 15h?!

    O chefe ia matar ela.

    Literalmente? Talvez não. Mas figurativamente? Ele era um grande filho da puta, então era bem possível. 

    Seria uma sorte não ser demitida.

    Sua mente já começou a listar, automaticamente, cada tarefa acumulada, cada pendência, cada e-mail ignorado. O peso da responsabilidade bateu com tanta força que a dor de cabeça veio na mesma hora.

    Maravilha.

    Pegou um comprimido de dipirona e tomou seco, sem nem se dar ao trabalho de procurar um copo d’água.

    Sabia o que viria a seguir.

    A pontada no fundo da cabeça. A pressão nos olhos. A sensação de que o próprio cérebro estava sendo espremido contra o crânio.

    As enxaquecas.

    Os dias em que ela mal conseguia existir.

    Felizmente, não eram frequentes. Mas quando vinham, eram brutais.

    Sacudiu a cabeça. Não tinha tempo para isso agora.

    Pegou uma camisa amassada do chão, enfiou-a por cima do corpo, jogou uma blusa semi-social por cima para disfarçar o caos e correu para o banheiro.

    Mas assim que chegou à porta… travou.

    O silêncio ainda tá aqui…

    E realmente estava.

    Onde tá todo mundo?

    A pergunta pulsava na mente da jovem, cravando-se entre as batidas do coração como uma lâmina fria.

    Nem percebeu quando saiu de casa, mas lá estava. Pés descalços no asfalto quente, passos pesados, desajeitados, como se o próprio chão tentasse segurá-la.

    As ruas estavam vazias, paralisadas em um insuportável silêncio.

    Sua respiração saía irregular, entrecortada, como se pertencesse a outra pessoa. 

    Isso a assustava, tornava tudo pior.

    Ofegante, parou em meio a uma avenida. As luzes dos semáforos trocando inutilmente de cor  prenderam sua atenção por um curto segundo.

    O peito inflou, os músculos enrijeceram, a garganta fechou.

    E então, gritou.

    — SOCORRO!

    Socorro? Por quê? Não sabia.

    Era sem significado nesse tipo de situação,  mas foi tudo o que conseguiu pensar.

     A palavra explodiu no vazio, crua e violenta.

    E então… nada.

    Nenhum eco. Nenhuma resposta. Nenhuma interrupção.

    O silêncio a devorou como um buraco negro faminto, consumindo até a última partícula de esperança que restava dentro dela.

    O nó na garganta apertou tanto que sua visão ficou turva.

    O estômago revirou, e sem aviso, vomitou.

    Não foi um reflexo normal. Não havia enjoo ou sinal de algo estragado. Foi puro nervosismo, o corpo reagindo ao absurdo, tentando expulsar o que quer que estivesse corroendo sua sanidade. O gosto ácido tomou sua boca. 

    Mas foda-se.

    Não havia ninguém ali para se importar.

    Respirando pesado, Ana limpou a boca com as costas da mão e olhou ao redor.

    Os prédios permaneciam de pé, indiferentes. Os outdoors ainda brilhavam, anunciando coisas para ninguém. E uma vitrine…

    Uma vitrine refletia seu rosto.

    Pálido. Perdido.

    Seus olhos arregalados encontraram os próprios, como se estivesse olhando para uma estranha.

    Se aproximou, hesitante, e encostou a palma na vidraça, sobrepondo sua mão à mão do reflexo.

    Ali, ficou.

    Seu peito subia e descia de forma errática, como se respirar fosse algo novo.

    Não demorou para a primeira lágrima aparecer, e com ela, o colapso.

    Seus soluços começaram pequenos, como um tremor distante. Mas logo tomaram conta de tudo, sacudindo seu corpo como um terremoto.

    Engasgou com a própria respiração, a garganta queimando com cada som quebrado que escapava.

    O que restava era realmente apenas ela? Claro que não. 

    O nada a acompanhava.

    — Eu devo estar ficando louca… só pode ser isso…

    Riu baixinho, e o riso se misturou ao choro, se contorcendo em algo estranho, algo que não fazia sentido, algo que não deveria estar ali.

    Mas não conseguia parar.

    A cabeça girava, e a dor de cabeça que sabia que ia aparecer escolheu, como a boa desgraçada que era, o melhor momento. Esperou naquela mesma posição por minutos. Por horas. Tempo suficiente para que os cantos de seus olhos ardessem, a pele ficasse pegajosa, o céu começasse a se apagar, engolido pela noite.

    Até que, sem saber o que fazer, se levantou e correu.

    O ar queimava os pulmões pelo esforço incomum. Mas não parou, pois não havia destino. 

    Passou por lojas fechadas, tentou abrir carros trancados, chutou uma lata de lixo caída.

    O metal ricocheteou no chão, um som áspero e oco.

    E então… morreu.

    Ana engoliu em seco, e por impulso, se jogou contra uma porta de vidro.

    — ALGUÉM?! QUALQUER PESSOA?!

    Gritava isso, mas… queria isso? Não conseguia decidir.

    De qualquer forma, aguardou, esperando algum sinal de vida. Ninguém apareceu, então ela suspirou.

    Aliviada.

    Triste.

    Feliz.

    Irritada.

    Cada emoção esmagando a outra até não sobrar nada além do cansaço. Abraçou os próprios braços, tentando conter o tremor.

    Vamos, Ana. Pense.

    O suor frio escorria pela nuca. Aquilo era real, mas como?

    A cidade não parecia abandonada. Nenhum carro batido. Nenhuma porta escancarada. Nenhum sinal de fuga apressada.

    Era como se…

    O mundo tivesse seguido sem ela.

    Como se fosse um espetáculo que chegou ao seu fim.

    E Ana ali ficou, a única espectadora deste grande vazio.
    div


    Quer apoiar o projeto e garantir uma cópia física exclusiva de A Eternidade de Ana? Acesse nosso Apoia.se! Com uma contribuição a partir de R$ 5,00, você não só ajuda a tornar este sonho realidade, como também libera capítulos extras e faz parte da jornada de um autor apaixonado e determinado. 🌟

    Venha fazer parte dessa história! 💖

    Apoia-se: https://apoia.se/eda

    Discord oficial da obra: https://discord.com/invite/mquYDvZQ6p

    Galeria: https://www.instagram.com/eternidade_de_ana

    Curtiu a leitura? 📚 Ajude a transformar Eternidade de Ana em um livro físico no APOIA.se! Link abaixo!

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 97.14% (7 votos)

    Nota