Índice de Capítulo

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    Quando finalmente sentiu-se capaz de caminhar sem que suas pernas se rebelassem, Ana saiu da caverna carregando Margareth, ainda desacordada, firmemente às costas. Do lado de fora, o cenário que a esperava era tão sombrio quanto previsível. O grupo parecia desperto, embora não exatamente feliz por isso, reunido em silêncio ao redor do corpo de Marina. Coberta por um manto simples, as marcas recentes da batalha ainda estavam evidentes na pele pálida da garota.

    Uma fogueira pequena crepitava com uma animação inadequada para o momento, lançando sombras que tremulavam em rostos cansados e expressões sombrias. O aroma do pinho queimado preenchia o ambiente com uma nostalgia deslocada, misturando conforto com a lembrança desagradável do frio que insistia em mordiscar dedos e narizes.

    — Como ela está? — perguntou Alex, observando Ana se aproximar com a agente inconsciente nas costas.

    — Estável — respondeu Ana brevemente, ajeitando Margareth ao lado da fogueira com cuidado. — Mas ela precisa de cuidados que não podemos dar aqui.

    O grupo voltou sua atenção à mulher desacordada, e a surpresa foi quase imediata.

    — Espera… Essa aí é a herborista? — Júlia ergueu a cabeça com um leve gemido de dor, seguido por uma risada que tentou disfarçar o desconforto. — Isso é doideira!

    — Mais doido ainda — comentou Felipe, com um meio sorriso cansado — é que ela é a mãe da Ana.

    Por um instante, o silêncio dominou o acampamento improvisado, sendo finalmente quebrado por um riso curto de Alex, ainda que meio rouco.

    — Ah, ótimo — ele disse, tentando sorrir — Então é daí que vem a simpatia natural da nossa chefe.

    Ana lançou-lhe um olhar que, apesar da irritação teatral, trazia uma faísca de humor.

    — Muito engraçado. Não se esqueçam de quem é a única pessoa capaz de preparar o jantar hoje.

    Um breve momento de risadas suaves espalhou-se entre eles, amenizando a tensão sufocante que pairava ali. Porém, bastou um olhar distraído em direção ao corpo de Marina para que o riso morresse imediatamente. O silêncio retornou, ainda mais pesado do que antes.

    Alex, com ambos os braços enfaixados, baixou os olhos, com lágrimas se acumulando perigosamente nos cantos.

    — Eu só não entendo por que ela mentiu… — murmurou ele, mais para si do que para o grupo.

    — Foi o melhor que ela podia fazer — respondeu a líder do grupo com suavidade incomum, embora seus olhos denunciassem uma tristeza profunda que raramente deixava transparecer. — Saber antes não mudaria nada. Vocês não teriam descansado direito e ela teria sofrido em dobro. Não se sobrevive a um ferimento como aquele.

    Júlia apertou as mãos, com uma voz trêmula e hesitante, antes de falar o que ninguém queria admitir.

    — Vamos ter que deixá-la aqui, não é?

    Ana concordou lentamente, mesmo sem dizer nada, sabendo que todos entendiam a resposta antes que fosse verbalizada.

    — Não podemos levá-la, não nas nossas condições. O cheiro de sangue só atrairia mais problemas. Mas pelo menos vamos fazer isso direito — acrescentou, encarando o grupo com um olhar firme e resoluto, apesar de profundamente cansado.

    Cada um deles ajudou, em silêncio reverente, a reunir pedras e galhos secos para criar um funeral improvisado, desses que não aparecem nos livros de história, mas que sempre acabam inevitáveis em jornadas perigosas. Ana colocou Marina com cuidado no topo daquela estrutura simples, cada gesto carregado com uma delicadeza que não combinava com suas mãos calejadas. 

    Nenhuma despedida parecia adequada. Nenhum discurso, nenhuma oração. 

    Ainda assim, Ana o fez.

    — Marina foi muito mais que uma parceira em combate. Ela foi nossa amiga. Lutou conosco, sofreu conosco, e talvez, o mais importante, riu ao nosso lado. Todas as noites, com a sua voz, ela conseguia nos fazer esquecer por um instante que o mundo é cheio de monstros e problemas. Não vamos deixar que a morte defina a lembrança que temos dela. Vamos guardá-la pelo que foi em vida: leve, gentil e absolutamente necessária.

    Um silêncio profundo pairou sobre o grupo, mais alto que qualquer som. Os demais assentiram, ainda cabisbaixos, mas com uma determinação renovada, e cada um deu um passo à frente.

    Foi Alex quem iniciou. Ana, confusa, apenas observou enquanto ele se ajoelhava diante do corpo. Retirou uma pequena faca do cinto —  mesmo apertando os dentes de dor pelos braços destruídos — e cortou bruscamente a ponta do dedo indicador, pressionando a gota de sangue que surgia contra a testa da garota, desenhando uma linha simples e vertical. 

    Não parou aí. Num movimento lento, mas sem hesitação, encostou novamente a lâmina na testa pálida de Marina, fazendo um corte leve, o suficiente para que seu sangue se misturasse ao dela. Ana arqueou levemente uma sobrancelha, intrigada pelo significado daquele detalhe adicional profundo e sutilmente perturbador. Por fim, pegou um pequeno punhado de terra, o espalhando sobre a pira.

    Júlia veio logo em seguida, repetindo o mesmo ritual com o dedo e o sangue. Não cortou Marina novamente, mas pressionou firmemente sua gota vermelha contra a testa já marcada, fazendo um gesto claro de união. Em seguida, puxou do bolso um pequeno frasco de esmalte colorido e desgastado — talvez algo significativo para as duas garotas, ou uma lembrança perdida entre risos passados. Deixou-o repousando sobre o peito imóvel de Marina, um contraste melancólico contra o tecido simples que cobria o corpo.

    Quando chegou a vez de Felipe, Ana notou que ele estava mais pensativo do que o normal. Após repetir o ritual, em vez de um objeto pessoal, o jovem retirou uma pequena pedra negra de aparência ordinária e a colocou cuidadosamente na palma aberta de Marina. Um gesto sutilmente diferente, que Ana não entendeu, mas aceitou como um detalhe a mais numa tradição já suficientemente peculiar.

    Enfim, a rainha mercenária respirou fundo e deu um passo à frente. Nunca fora exatamente familiarizada com tradições culturais — e quem dirá de uma que provavelmente havia vindo de Aurórea. Ainda assim, por precaução e respeito — duas coisas que ela raramente demonstrava — seguiu exatamente o mesmo processo. Cortou o dedo com sua própria faca, traçando a linha na testa da garota, mantendo sua expressão cuidadosamente neutra, como se aquele gesto fosse natural e habitual.

    Em seguida, agachou-se lentamente e depositou a própria faca por alguns instantes ao lado de Marina — só o suficiente para que ficasse claro que a manipuladora havia conquistado seu respeito, mesmo que a garota jamais pudesse vê-lo agora. Tocou os bolsos, procurando qualquer coisa aleatória que pudesse deixar ali, mas se deparou apenas com um punhado de sementes de uma maçã que havia comido dias atrás. Suspirou.

    Finja até entender, Ana.

    De forma mais elegante do que o necessário, e talvez um pouco exagerado, colocou as sementes diretamente no abdômen aberto da garota e se afastou. Por dentro, agradeceu silenciosamente por ninguém ter questionado sua familiaridade fingida.

    Alex, vendo que havia terminado, levantou a cabeça devagar, falando com uma voz que não deixava espaço para dúvidas.

    — Agora ela faz parte de nós.

    Uma frase simples, mas repleta de algo que ia além do simbolismo. Algo que Ana percebeu imediatamente, com uma clareza incômoda. A morte neste novo mundo não era exatamente um ponto final; estava mais para uma vírgula macabra.

    Morte era um ciclo, morte era partilha.

    Essa absorção involuntária da mana de Marina era algo que Ana, infelizmente, não experimentaria pessoalmente. Ela não se iludia — não seria uma quantidade exorbitante, claro. Marina era uma manipuladora rank F, longe de ser um reservatório ambulante de energia mística. Ainda assim, acreditava firmemente que os jovens haviam recebido mais do que simples tristeza. 

    Claro, diante daquelas expressões sombrias e cabisbaixas, Ana não teve coragem de perguntar diretamente se estavam se sentindo mais fortes — havia limites até mesmo para seu pragmatismo. Mas, numa realidade hipotética em que ela tivesse ainda menos filtros sociais, estava convicta de que eles responderiam afirmativamente. Um limite invisível e delicado havia sido rompido naquela noite; três novos fortalecedores de rank E emergiram, inadvertidamente forjados pela tragédia.

    Era exatamente o tipo de ironia existencial que a vida adorava esfregar na cara de todos. Crescimento mediante perda. Sucesso conquistado em meio à mais profunda derrota emocional. Não parecia justo, mas justiça era um conceito muito vago para se aplicar a esse novo mundo.

    Não que eles enxergassem isso como vitória pessoal, claro. Mas Ana sentia-se perfeitamente capaz de ver o copo meio cheio. 

    Foi então que, como se tivesse aguardado respeitosamente o fim do ritual, um cheiro estranho alcançou suas narinas. O odor chegou como um convidado atrasado e indesejado, infiltrando-se lentamente e misturando-se ao aroma já pungente da fumaça. Era um fedor sutil de carne apodrecida.

    Cheiro de fera.

    Originalmente, tinham planejado pernoitar ali, talvez compartilhar histórias do grupo — momentos heroicos, pequenos erros divertidos, atos secretos de bondade. Provavelmente chorariam um pouco e ririam um pouco mais, embalados por canções que fariam os mortos parecerem menos distantes. Era uma ideia bonita, talvez um pouco melosa demais para o gosto de Ana, mas não deixava de ser tocante.

    Porém, a noite de lágrimas e risos valia consideravelmente menos do que suas próprias vidas, especialmente quando algo grande e faminto estava por perto de um bando de moribundos.

    Trocaram olhares cansados, todos entendendo silenciosamente o que era necessário. Sem dizer uma palavra, começaram a recolher suas coisas, ignorando o peso nos corações e o frio insistente que a noite trazia.

    Partiram daquele lugar.
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