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    Tal como a ida, a volta foi preenchida apenas pelo tédio e os sons da floresta, apesar de mais lenta pelos membros doloridos e sem a cantoria alegre providenciada pela bebida.

    Sem surpresa, a primeira parada foi no hospital da cidade — uma grande tenda aberta erguida para os moribundos. Atendimento médico não era o mais barato dos serviços, e geralmente era evitado ao máximo, mas com a principal fornecedora de medicamentos da cidade também em estado crítico, não tinha muita opção.

    Ana não se demorou com despedidas, e seus companheiros muito menos. Assim que uma cama foi atribuída, adormeceram como pedra. A rainha mercenária, não tão mal quanto os jovens, os deixou, indo resolver seus próprios assuntos.

    Voltaria — afinal, alguém precisava pagar por aquilo, mesmo com o estabelecimento sendo composto de destroços e tendas. — mas antes precisava, é claro, de algumas moedas para poder fazer isso.

    Contando os paralelepípedos para dispersar o pensamento, chegou ao Madame Eclipse. Se dirigiu com passos rápidos para o escritório, e, erguendo o broche de bronze por um instante, não foi impedida pelos guardas. 

    Madame aguardava com a típica expressão severa, seus lábios perfeitamente delineados em um vermelho quase agressivo.

    — Então, querida, o que é que cê tem pra me contar?

    Ana respirou fundo. Tinha pensado em ligar mais cedo, talvez adiantar alguma coisa para facilitar, mas notícias ruins mereciam um pouco mais de cerimônia — e dizer pessoalmente parecia ser o mínimo aceitável.

    — Nós falhamos. No fim das contas, a Sombra não demorou muito para nos achar.

    — Tu fez o que deu com as cartas que lhe jogaram. Tu é jovem, tua turma também. Já foi sorte saírem vivos, viu? Desde o começo era uma aposta arriscada mesmo…

    — Nem todos tiveram essa sorte… — Ana deixou a frase cair na sala como um peso morto, deixando que o silêncio se instalasse entre elas. Apenas o crepitar sutil da lareira ousava preencher aquele vazio desconfortável. — Mas já que estamos nisso, posso saber pelo menos pelo que arriscamos as nossas vidas?

    — Ah, a tal da Coroa Negra… — Madame pronunciou o nome com uma naturalidade irritante, como se fosse algo que todos discutissem em conversas casuais sobre o tempo. — Já deve ter ouvido falar, né? Um dos poucos artefatos de Aurórea que realmente prestam. Pros manipuladores comuns acelera a mana, quase dobra o fluxo nas veias… mas pras sombras? Aí o bicho pega de vez. A mana reversa delas desperta, ficam mais fortes, mais espertas. Uma pena… Vai complicar o mundo de um tanto que nem lhe conto.

    — Ah, mas não ficaram. Quem pegou a bolsa foi a tal Colecionadora.

    Madame encarou Ana, confusa. Ao finalmente assimilar o que foi dito, soltou uma risada daquelas que balançam os ombros. 

    — A Natalya? Tu tá dizendo que a coroa tá com aquela megera? Ave Maria, que notícia boa!

    — Boa? Seu objetivo não era ficar com ela?

    — Olhe, minha flor: desde que descobriram onde a bendita coroa tava escondida, o que a gente mais queria era não deixar a praga da igreja meter a mão. Claro que seria lindo se tivesse vindo pra cá… mas com Natalya, pelo menos, tá em boas mãos. Aquela mulher é egoísta, cuida melhor das coisas dela do que qualquer outra pessoa.

    Mais tranquila agora, Madame se virou teatralmente, retirando um pequeno cofre de madeira da prateleira. O objeto aterrissou sobre o balcão com um baque dramático, mas ela não o abriu imediatamente.

    — Certo, certo… e nossa outra rainha? Encontrou alguma pista dela?

    — Minha mãe tá viva. Não muito bem, mas viva.

    — Sua mãe? — Madame soltou uma risada alta e inesperada, tão espontânea que parecia que ia derrubar a cadeira. — Pelo visto, o destino já tinha tudo nu jeito, menina! Filho de peixe, peixinho é.

    Com um sorriso ainda estampado nos lábios, Madame fez um gesto exageradamente casual, arremessando o cofre em direção à garota, que mal teve tempo de erguer as mãos e agarrá-lo no ar. Ana encarou a caixa com uma expressão perplexa e uma leve irritação pela ação repentina.

    O objeto era cuidadosamente esculpido à mão, seus entalhes complexos revelavam uma atenção aos detalhes que sugeria alguém com bastante tempo livre, paciência ou ambas as coisas. Um aroma suave de cedro escapava discretamente da madeira, e embora o cofre parecesse ter sido forjado em algum século esquecido, o cheiro indicava uma juventude suspeita que não combinava com sua aparência austera.

    Ana observou-o com atenção e uma pontada de expectativa, abrindo-o finalmente com um movimento decidido. Lá dentro, repousava uma pequena coroa prateada, enfeitada por pequenas inserções negras que absorviam timidamente a luz do escritório. A palavra “Patrono” estava gravada em letras elegantes e desnecessariamente chamativas, como se implorasse para ser admirada pelo mundo — ou pelo menos pelas pessoas mais próximas e facilmente impressionáveis.

    “Ah, mas que porra. Claro que não seria nada de valor real,” pensou a rainha mercenária, sem conseguir esconder um leve desapontamento.

    — Ô menina gananciosa — comentou Madame, pegando imediatamente a reação da mercenária com uma satisfação quase sádica. Num gesto exageradamente dramático, arremessou um saco de moedas sobre a mesa, ao lado da caixinha de madeira. — Pronto. Pega logo essa merreca aí e para com essa cara de quem acabou de comer merda. Ainda temos muito que conversar.

    Ana abriu um sorriso instantâneo, sua decepção substituída por uma felicidade pragmática, balançando o saco de moedas suavemente antes de guardá-lo cuidadosamente dentro do casaco.

    — Sou toda ouvidos.

    A taverneira suspirou de maneira teatral, assumindo um tom mais sério ao encará-la diretamente nos olhos.

    — Primeiro, quero lhe dar os parabéns. Virar patrona de prata não é pra qualquer um. Normalmente, leva três, quatro missões especiais. Mas cê aceitou uma encrenca muito maior do que podia mastigar… e ainda tá aqui, respirando. — Deu de ombros. — Então, pra mim, já vale.

    Fez uma pausa significativa, seu olhar ganhando uma intensidade incomum, como se escolhesse cuidadosamente suas próximas palavras.

    — Veja, menina, mercenário de verdade é aquele que escolhe o caminho fora do comum. Não falo daquela carne de segunda que tá lá embaixo, não. Aqueles coitados são só ferramentas descartáveis, peças de reposição. — Ela sorriu, amargo e verdadeiro. — Rei e rainha, como você… vocês são os guardiões dessa bagunça que a gente chama de sociedade. E por mais que pareça papo furado, é isso mesmo: a gente segura as pontas do mundo — mesmo que o mundo não mereça muito.

    — Curioso. Não vi essa preocupação toda com proteção no mural das missões — rebateu Ana, um sorriso de zombaria no rosto. — Sinceramente, parece mais que vocês só pioram tudo por trás dos panos.

    — Num vá pensando besteira. Eu nunca disse que somos heróis. Nem um pouquinho — corrigiu Madame com um sorriso divertido, mas sem negar o sarcasmo. — A gente trabalha por dinheiro, por cama quente, por luxo se puder. Protegemos o mundo do jeito mais prático que existe: impedindo que ele afunde ainda mais na lama. Mesmo nas missões que parecem bobagens… pode apostar, menina, elas resolvem problemas de verdade. Só estão embrulhadas de forma mais palatável.

    Respirou profundamente, suavizando um pouco o tom conforme via Ana absorver suas palavras com atenção genuína.

    — Fazemos o que as guildas deveriam estar fazendo, mas elas se afogam lentamente em sua própria burocracia inútil. Enquanto discutem filosoficamente sobre a natureza das ameaças dentro de escritórios aconchegantes, a gente vai lá e resolve.

    Madame inclinou-se para frente, seu olhar duro transformado numa expressão quase fervorosa, um brilho intenso nos olhos que Ana raramente tinha testemunhado antes. Aquilo não era apenas um discurso ensaiado, mas algo que Madame acreditava profundamente — uma paixão quase perturbadora por algo tão cinicamente prático quanto a vida de um mercenário.

    — Tudo é sobre garantir um mundo onde cada um tenha a liberdade de decidir seu próprio destino, mesmo que pra isso a gente precise torcer o braço da sorte de vez em quando.

    Ana absorveu cada palavra cuidadosamente. Estranhamente, aquela explicação fazia sentido demais para ela, o que a preocupava um pouco. Em sua experiência, quando algo começava a parecer razoável, significava que provavelmente estava se complicando mais do que gostaria. Era uma quantidade inconveniente de responsabilidade, daquelas que chegavam sorrateiras e se instalavam no sofá sem ter sido convidadas, sempre pedindo algo mais: tempo, atenção, comprometimento — três coisas que Ana sabia que devia gastar com moderação.

    Após alguns segundos de silêncio introspectivo, ela deslizou lentamente a pequena coroa de volta para a leitora, em um gesto que claramente comunicava um educado “agradeço a oferta, mas não, obrigada”.

    — Estou bem tranquila sendo uma mercenária comum.

    Madame não conseguiu segurar a gargalhada, alta e genuinamente divertida. Como uma velha conhecida da ironia universal, já devia esperar algo assim vindo daquela garota.

    — Ah, Ana! Tu acha mesmo que alguém vai te pedir algo mais complicado do que já fez até aqui? — Madame recostou-se na cadeira, confortável em sua própria confiança. —  Tu ainda é só a base da pirâmide, menina. Aproveita teu salário gordo de Patrona de Prata, faz tuas missões e vive bem. E agora que a gente sabe que tua mãe é a Margareth… podemos dar uns jeitinhos pra não deixar acontecer de novo o que aconteceu. Ninguém aqui vai jogar o peso do mundo nas tuas costas sem motivo.

    Ana encarou o emblema sobre a mesa por alguns segundos, ainda hesitante. Ela realmente não tinha intenção de se envolver mais profundamente, mas o peso reconfortante das moedas contra o peito parecia um argumento difícil demais de ignorar.

    — Merda de capitalismo… — resmungou com um leve suspiro resignado, puxando de volta a coroa para perto de si, como se cedesse à tentação de um doce proibido, porém delicioso.

    Madame abriu um largo sorriso de satisfação, claramente orgulhosa por ter convencido a garota com o mais antigo e eficiente argumento já inventado pela humanidade: ouro. Antes que pudesse prosseguir com suas brilhantes e dramáticas explicações, algo pesado e extremamente inconveniente se chocou contra a janela do escritório, transformando o vidro numa coleção fragmentada de pedaços pontiagudos.


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