Capítulo 58 - Espera
*Essa é uma prévia da reescrita! Ainda está crua, sem o polimento final, mas logo ganha forma. Se notar algo fora do lugar, toda ajuda é bem-vinda!
— Eu já achava que a gente era meio desequilibrado, mas quem em sã consciência traz um monte de livros pra uma viagem?
A voz de Alex soou entrecortada pelo esforço, enquanto lançava um olhar de julgamento nada sutil em direção à mochila do bibliotecário.
— Se eu deixasse lá, iam ser saqueados. Tive que trazer… — respondeu Brayner, com a calma exausta de quem já havia ensaiado essa justificativa diversas vezes consigo mesmo.
Não era como se estivesse feliz com a decisão. Seus ombros já começavam a protestar, e a alça da mochila insistia em escorregar do mesmo lado desde que saíram. Mas havia um certo estoicismo em seu rosto, o tipo de convicção que não se baseava em lógica, mas em afeto mal disfarçado.
Ana havia avisado. Não com proibições ou ordens — ela não era esse tipo de líder —, mas com aquele tom de voz que substitui muito bem qualquer “faça o que quiser, mas vai se arrepender”.
Ainda assim, ele trouxera.
Livros demais, peso demais, senso prático de menos. Mas era aquilo ou abandoná-los, e Brayner não era do tipo que abandonava papel com palavras. Não enquanto pudesse carregá-los nas costas. Ouro não substituía histórias. E alguns volumes, para ele, valiam mais do que qualquer pagamento.
Claro, havia também o detalhe — não tão pequeno — de que estavam indo para Leviathan.
Qualquer criança que tivesse crescido em Aurórea carregava, em algum canto da mente, a ideia de Leviathan como algo próximo de uma lenda. Uma lenda vaga, mas ainda uma lenda. Alguns diziam ser um colosso errante que abrigava mercados flutuantes, torres que se ajustavam às estações e, segundo os mais otimistas, até cafés com cadeiras confortáveis. Outros que era apenas uma grande rocha que vagava sem rumo por aí, um tipo de mini continente.
O que importava é que era um prato cheio para sonhadores e, para Brayner, isso era o suficiente para justificar um pouco de sofrimento nas costas.
O bibliotecário não queria apenas ver Leviathan. Ele queria deixar um pedaço de si lá. E o pedaço mais valioso que tinha, sua pequena coleção — que, sejamos honestos, já não era mais tão pequena. Ela merecia um lar digno, um canto silencioso onde pudesse crescer, ser lida, estudada, amada. Quem sabe um dia até compartilhada, embora essa parte ele raramente admitisse em voz alta.
— Só espero que também tenham uma biblioteca — murmurou, mais para si do que para o grupo.
Os cinco seguiam montados em suas capivaras, que lembravam cavalos pequenos, se cavalos pequenos tivessem decidido largar a dieta e viver sem culpa. As criaturas eram gordas, pesadas e absolutamente sem pressa — mas, para a surpresa do grupo, não eram de todo inúteis.
Visualmente, ainda se pareciam com capivaras comuns, só um pouco mais… inquietantes. A corrupção pela mana não as tornara mais rápidas, nem mais inteligentes, mas sim resistentes. E obedientes o suficiente, desde que bem alimentadas. Nada de heroico, mas em tempos de escassez, ter uma montaria que não morria de teimosia já era vitória.
Não eram uma escolha permanente. Isso era óbvio. O plano era abandoná-las assim que chegassem ao ponto de encontro, e torcer para que encontrassem um lago e tivessem bons instintos de sobrevivência. O investimento havia sido mínimo, e, naquele contexto, quase ético.
A pressa, como sempre, era uma constante. Tinham poucas horas até a hora estimada para a chegada da cidade. Madame havia passado coordenadas com aquela elegância casual de quem acredita que todos nasceram sabendo usar um sextante. Felizmente, Ana sabia. E, por alguma razão que escapava da lógica, a taverneira também havia disponibilizado um cronômetro marítimo — o que, diga-se de passagem, facilitava ainda mais as coisas.
Ainda assim, por garantia, seguiram paralelos ao rio Tietê. Agora, bem diferente do filete sofrido que fora um dia: cinco ou seis vezes mais largo, e dez vezes mais útil. O fluxo caudaloso servia como ótimo guia natural para a área norte.
E então, para a surpresa geral do Ironia Divina, a viagem não foi marcada apenas pelo silêncio e pelo tédio. Encontraram… humanidade.
A primeira parada foi em um vilarejo sem nome — ou talvez com um nome que ninguém achou importante perguntar. Parecia um oásis verde costurado à beira da devastação. Menor que Barueri, menos casas, menos gente, mas infinitamente mais verde. As ruas haviam sido devoradas por plantações suspensas, os prédios entrelaçados com ervas e flores. Telhados de hortelã, janelas de manjericão. Jardins verticais brotavam dos escombros, como se as plantas tivessem decidido tomar conta depois que a arquitetura desistiu.
As pessoas ali usavam roupas simples, de cores naturais, e se moviam com a eficiência serena de quem sabia que o mundo podia desabar, mas ainda assim valia a pena colher mais uma vez.
— Olha só isso… nunca imaginei que veria uma farmácia crescer direto do chão — comentou Júlia, tocando uma folha com uma expressão que misturava curiosidade e espanto. O rosto iluminado por um raio de sol filtrado pelas trepadeiras completava o momento com uma estranha ternura.
— É um bom uso do espaço — respondeu Ana, mais pragmática, observando a maneira como o verde se entrelaçava ao concreto e apagava o tempo.
A conversa entre os locais era baixa, mas havia nela um orgulho contido. Um tipo de certeza serena de que, apesar de tudo, ainda era possível resistir. Cultivar. Curar.
Por um momento, imaginaram ficar. Não muito — só um ou dois dias sem correr, sem matar. Apenas existir. Mas a ideia durou o tempo exato entre um olhar e o outro.
Eles não podiam. Então, seguiram.
O segundo encontro da viagem foi Santana de Parnaíba, e, como se quisesse fazer questão de contrastar com a parada anterior, o lugar parecia ter sido esculpido a marteladas. Literalmente.
Marteladas. Constantes, ritmadas, quase irritantes. O tipo de som que não te deixava esquecer onde estava. Forjas ocupavam cada canto possível, e o calor era denso o bastante para grudar na pele. Mesmo com infraestrutura modesta — pequenos muros, guardas com cara de quem dorme mal e um traço de organização —, a cidade tinha algo que o vilarejo anterior não tinha: uma economia.
Ali, tudo girava em torno da produção. Armaduras, armas, ferramentas. Metal trabalhado com zelo quase religioso. Mas o que surpreendia era o contraste: apesar da atmosfera industrial, o lugar era coberto de cor.
Murais gigantescos preenchiam as fachadas das casas e das oficinas. Não havia parede sem história, não havia história sem tinta. As pinturas mesclavam lendas antigas com novos mitos, criando uma linha tênue entre o que veio antes e o que agora existia — como se tentassem, a todo custo, provar que a memória podia ser bela.
Os artistas, que pareciam tão marcados pelo trabalho quanto os próprios ferreiros, pintavam com mãos ásperas e olhos atentos. Nenhuma pincelada era casual.
— Os murais… são intensos. Quase livros — murmurou Brayner, parando diante de uma batalha retratada com exagero épico.
— Meio poético, né? — disse Felipe, tocando uma lâmina pintada que se estendia até o alto da parede, como se realmente partisse o céu. — Eles forjam as armas, depois eternizam elas aqui.
Ana observava em silêncio, o olhar vagando entre detalhes que talvez os outros nem tivessem notado. Um mural em especial fisgou sua atenção. Havia algo estranho naquela arte — abstrata, leve, deslocada do resto —, algo familiar. A sensação incômoda de déjà vu lhe cutucava a nuca, mas a lembrança exata escapava como um pensamento dito meio segundo atrasado.
— Ei, você — chamou um homem que passava por perto, sem muito rumo. — Desculpe a pergunta, mas quem pintou isso?
— Ah, um visitante! Que rareza — disse o sujeito, animado com a abordagem. — Esse mural aí é um dos nossos “originais”. Existem vários desses por aqui. A gente chama assim porque eles já estavam aí quando a cidade voltou. Ninguém sabe quem pintou. O mais estranho? Estilo bem moderno, mas dizem que têm séculos de idade.
Ana manteve o sorriso por educação, mas seu olhar ficou estático. Uma leve onda de frio subiu pela espinha.
“Quem diria que ainda estariam tão bem conservados… Me pergunto se minhas anotações também estão perdidas por aí.”
Com um aceno e palavras rápidas, ela agradeceu o homem, o qual seguiu seu caminho no mesmo ritmo vagaroso, feliz pelo interesse de um forasteiro.
Lá atrás, os outros ainda conversavam, sem qualquer pista do que passava na mente da líder.
— A gente podia tacar um pouco de tinta naquele barraco quando voltarmos — sugeriu Alex, com entusiasmo suspeito. — Ia dar um charme pra a base do Ironia Divina, né?
— Tá louco? Não viu o preço da tinta, mané? — Júlia resmungou.
Alex riu, olhou para as unhas recém-pintadas da garota. Não retrucou, apenas bateu de leve em sua capivara, voltando a seguir a viagem.
Ana, ainda nostálgica, os observava à distância. Era estranho viajar em grupo. Não estranho no mau sentido, apenas… incomum. Quando imaginara isso? Nunca, para ser sincera. Séculos se passaram desde que sequer cogitara algo assim.
Mas ali estavam. Avançando juntos. Dando nomes a um grupo. Discutindo tinta. Fazendo piadas ruins. Estranhamente vivos.
E, apesar das adversidades — porque sempre haveria uma nova desgraça ao virar a curva —, era evidente que a humanidade encontrava maneiras de florescer. Não com perfeição. Não com beleza. Mas com uma insistência teimosa.
Em um piscar de olhos — e algumas dezenas de quilômetros mal contados — chegaram ao destino. O calmo acampamento improvisado foi um local de merecido descanso. A alerta ainda era constante, já que ocasionalmente um grande lobo aparecia para atacá-los. Com os outros ainda em recuperação, cabia a Ana lidar com eles. E ela lidava. Depois do terceiro, virou quase rotina. Eles vinham sozinhos, sem matilhas — e, mais importante, sem criatividade. Repetiam padrões, erros e investidas.
Os riscos na faca de lâmina escura já haviam se tornado nove, e beirava os 33 centímetros. Os outros dormiram com a facilidade que só a exaustão fornece, e Ana ficou ali, acordada, acompanhada pelo sussurro persistente do vento e o canto ocasional de algum pássaro desorientado. Era uma paz rara desde que o novo mundo surgiu — e, talvez por isso, desconcertante.
Olhando para o céu, Ana percebeu que gostava demais dessa vida. Mais do que admitia.
Inquieta, levantou e caminhou até um penhasco que, solitário, adornava o ambiente, se sentiu atraída por uma vontade irracional de olhar para o nada. E o nada era impressionante. Um tapete de nuvens e névoa cobria o horizonte, como se o mundo ali embaixo tivesse desistido de aparecer.
A vista era absurda, irreal, como se encomendada por um autor de fantasia em crise de criatividade. Ana sentou-se por um instante, respirou fundo, e cantarolou algo sem nome. Era uma canção velha, que morava em algum canto da memória — provavelmente criada em um momento de tédio e guardada por falta de coisa melhor. Mas naquele instante, soou certa. Carregada de nostalgia, esperança, e uma pitada de melancolia que ela se recusava a nomear.
Sem cerimônia, o canto virou movimento.
Cada estrofe se transformava em golpe, cada pausa, em um giro. Os músculos, adormecidos por dias de correria e prioridades mais urgentes, despertavam aos poucos, como gatos irritados sendo puxados da cama. Precisava se policiar, estava treinando menos do que deveria, seus músculos reclamavam pela inanição. Talvez fosse o momento certo de retomar a rotina.
Começou sua autoproclamada dança, embora soubesse que quem visse de fora talvez não usasse o mesmo termo. Relembrou a graça dos cortes, dos recuos, das passadas leves que terminavam com estocadas precisas.
Não imitava ninguém. Só ela.
Ao final, golpeou o ar à sua frente com um movimento limpo. Guardou a faca, colocou as mãos na cintura e respirou fundo. Estava satisfeita, no nível de satisfação que só se sente ao fim de um exercício bem executado. Preparava-se para voltar e, enfim, descansar.
Foi então que parou.
No instante em que relaxou, o céu respondeu. Ou, ao menos, algo nele.
Entre as nuvens, um olho se abriu.
Quer apoiar o projeto e garantir uma cópia física exclusiva de A Eternidade de Ana? Acesse nosso Apoia.se! Com uma contribuição a partir de R$ 5,00, você não só ajuda a tornar este sonho realidade, como também libera capítulos extras e faz parte da jornada de um autor apaixonado e determinado. 🌟
Venha fazer parte dessa história! 💖
Apoia-se: https://apoia.se/eda
Discord oficial da obra: https://discord.com/invite/mquYDvZQ6p
Galeria: https://www.instagram.com/eternidade_de_ana
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.