Capítulo 3 - Vazio
*Essa é uma prévia da reescrita! Ainda está crua, sem o polimento final, mas logo ganha forma. Se notar algo fora do lugar, toda ajuda é bem-vinda!
Grande Vazio.
Foi assim que nomeou o fenômeno vindo logo após a Grande Luz.
Nomes simples, diretos. Não havia ninguém, logo estava vazio.
Já a parte do “grande” foi só para dar um toque de dramaticidade. Porque, sejamos honestos, tudo fica mais respeitável quando tem um “grande” na frente.
Pensou em Enorme Vazio, Vazio Vazio, Chato Vazio. Mas ficou com a primeira ideia. Porque tanto faz.
Ana nunca foi boa com nomes. Sabia disso.
Quando criança, teve um cachorro chamado Cachorro. Um peixe chamado Peixe. No nascimento de sua irmã, fez bico por dias quando seus pais rejeitaram sua brilhante sugestão de chamá-la apenas de Irmã.
Por que complicar?
Era tão mais fácil quando um nome dizia exatamente o que algo era. Sem rodeios, sem abstrações.
— É por isso que te amo, Gato. Você é o que você é. Um gato.
O pequeno animal miou em resposta, sem dar a mínima para sua filosofia de nomenclatura. Como todo gato deveria ser.
Gato apareceu e ficou. Simples assim.
A jovem pulou de alegria quando conseguiu reorganizar os pensamentos, e finalmente recordar que, ao menos, os animais ainda estavam por aí.
Tentou encontrar o cachorro que viu pela janela no primeiro dia, mas ele tinha um espírito livre. Brincava um pouco com ela e depois desaparecia pelo mundo, como se fosse só mais um reflexo do que ela nunca conseguiria alcançar.
— Bom, você é mais que o suficiente, Gato.
Pelo menos por enquanto.
Nos primeiros dias, ela buscou. Estava cheia do tipo de obsessão que vem do desespero.
Uma voz. Um rastro. Uma sombra.
Mas a cidade devolvia apenas seu próprio eco, cada tentativa se transformando em mais uma camada de frustração. E a tristeza vinha como ondas.
Às vezes forte. Às vezes disfarçada de apatia. Mas sempre ali.
Seus choros eram intensos, sufocantes, o tipo de lamento que não precisava ser reprimido porque não havia ninguém para ouvir.
Houve pensamentos sombrios. Muitos.
Os cortes nos braços e pernas refletiam isso.
No começo, tentativas fúteis de acordar, de sentir alguma dor que a arrancasse dessa realidade estática. Mas se mostraram só isso — tentativas fúteis.
E mesmo assim, continuavam se acumulando.
Tinha noção de que não era saudável.
Mas havia algo de viciante em descascar as casquinhas conforme se curavam, em sentir a ardência em meio à sua marcha solitária pela cidade sem alma.
Pequenos lembretes de que seu corpo ainda funcionava.
Que, ao contrário do mundo, ela ainda estava ali.
As noites eram seus piores momentos.
O silêncio se tornava absoluto, sufocante. O Grande Vazio parecia ganhar uma presença. Algo invisível e imenso, que a vigiava enquanto ela tentava dormir.
E mesmo sabendo que não havia ninguém ali, mesmo sabendo que era só sua mente projetando medo no nada, às vezes… ela sussurrava.
Sussurros que ecoavam pelas praças, pelas ruas, pelas paredes.
Só para testar. Só para ouvir alguma coisa que não fosse o próprio pensamento.
Um de seus hábito mais estranhos, de fato.
— Me deixa em paz!
Alucinava, gritava com as paredes.
— Não tô alucinando!
Mas no fim, estava sozinha.
— Haha, eu disse que você estava errado! Não tô sozinha, não é mesmo, senhora árvore?
… Certo.
Não estava sozinha, tinha… bem, as coisas.
Sim. Coisas.
O tipo de coisa que não deveria ser uma companhia, mas que preenchia o papel perfeitamente bem.
A senhora árvore era uma boa ouvinte. Paciente, sábia, até.
Mas sejamos francos: ela era uma árvore. Isso não impedia Ana de confiar nela, afinal, era sua única confidente.
De vez em quando questionava as estrelas, que pareciam observá-la com um desdém frio e indiferente.
— Vocês são as piores fofoqueiras do universo.
Agradecia às geladeiras, por gentilmente lhe entregarem boas refeições.
— Eu sabia que podia contar com você, Cinzenta.
(Havia batizado a geladeira perfeitamente branca de Cinzenta. Não questionemos isso.)
Resmungava para uma torradeira, contando como não achou graça em uma série qualquer ou como morreu uma infinidade de vezes em um jogo que escolheu apenas para matar o tempo.
E o pior de tudo?
Essa rotina bizarra começava a fazer sentido.
Assim, um mês se passou.
Logo, um ano.
Dois. Três.
Dez.
O tempo escorria, sem resistência, aviso ou consequências.
— Sem drama, Gato. Já te disse que não tem mais ração. Ou você come isso, ou passa fome!
A resposta veio em um olhar de absoluto desprezo felino.
E então, como se finalmente cedesse ao destino, mordiscou a pequena ave morta.
Ana suspirou, rabiscando no caderno aberto à sua frente.
Cada contorno do fofo e gordo animal era traçado com uma precisão absurda.
Pelos, bigodes, olhos semicerrados de desdém… A textura do papel parecia capturar mais do que apenas a forma — prendia a alma de Gato ali, encarando-a com o mesmo tédio existencial que a consumia.
Não era o primeiro desses. Nem o décimo.
A casa já estava entulhada de desenhos.
Meses atrás, quando a energia finalmente acabou, sua vida sedentária foi junto.
No começo, tentou entender o problema.
Mas já sabia a resposta antes mesmo de encostar nas velhas torres de transmissão, agora transformadas em condomínios de pássaros.
Falta de manutenção. Óbvio.
Afinal, nunca teve coragem de subir lá.
A ideia de virar um cadáver carbonizado no asfalto nunca lhe pareceu tentadora.
Então deu no que deu.
Um dia, sua rotina no Grande Vazio era feita de videogames até o nascer do sol. No outro, uma escuridão monstruosa, impenetrável, devorando tudo.
Os geradores que encontrou por aí, velhos e mal configurados, carregavam energia em um ritmo exasperante. Alguma merda ela devia ter feito nas placas solares que tentou instalar.
Assim, prioridades foram redefinidas.
Os refrigeradores passaram a consumir quase tudo que era produzido, tinham que ficar ligados o dia todo. Carcaças de animais haviam substituído suas amadas refeições industrializadas, mas a carne estragava rápido demais.
E ficar indo atrás de bichos todo santo dia? Nem ferrando. Cansava mais do que queria admitir.
Vez ou outra trazia vegetais e frutas para casa, mas demoravam tanto para nascer que eram ocasiões que comemorava com grandes banquetes para si mesma.
O resto da energia ia para os poucos banhos quentes que ainda se permitia.
Um pequeno prazer!
No fim, o maior problema da falta de energia não foi o frio ou o pouco uso de tecnologia.
Foi o tédio.
O maldito, absoluto, insuportável tédio.
Qualquer coisa — absolutamente qualquer coisa era considerada uma dádiva dos céus.
Foi por isso que os cadernos começaram a se multiplicar.
Primeiro, uma grande compilação de receitas favoritas — porque mesmo que nunca as cozinhasse, o simples ato de escrevê-las preenchia o tempo.
Depois, diários. Relatos de uma rotina repetitiva e sem propósito.
Dicas para caçar pequenos animais com pedras.
Registros caóticos sobre onde ainda poderia encontrar comida nas redondezas, apesar de todas estarem vencidas.
E claro, desenhos. Milhares de desenhos.
O vazio ao redor se transformava em rabiscos, contornos, sombras no papel.
Mas o tédio sempre vencia. Então, voltou a ler.
Evitou isso por anos.
Livros exigiam mais dela do que qualquer outra distração. Um jogo, uma música, um vídeo qualquer — tudo isso apenas anestesiava.
Mas literatura? Literatura fazia sonhar.
E sonhar doía.
Sonhar a fazia lembrar do que nunca viveria. Aventuras que nunca teria. Romances que nunca experimentaria. Mistérios que jamais resolveria.
Mas oh, o tédio. O tédio doía mais.
Então sim, voltou a ler.
Começou com livros técnicos.
“Como configurar um controle remoto?“
“Como trocar um pneu?“
“E aquela fritadeira, como diabos conserto ela?“
Sabe… coisas essenciais para uma pessoa sozinha no fim do mundo.
Claro, não que fosse exatamente útil.
Mas cada exploração pela cidade a fazia retornar com mais manuais. Mais guias. Mais perguntas.
E perguntas, ah… essas eram sempre bem-vindas.
Sua obsessão começou a consumir as horas.
Estudava cada página de cabo a rabo, transcrevendo tudo em seus próprios resumos como se fossem escrituras sagradas.
Memorizava detalhes insignificantes só para provar que podia.
Depois, tentava aplicar o conhecimento.
Não havia necessidade alguma de consertar um ar-condicionado — bastava ficar nua para se refrescar. Mas se o Gato pedisse para ela arrumar um, ah, ela saberia exatamente como!
E isso era o que importava.
Aos poucos, o conhecimento básico foi se tornando chato.
— Escasso.
Quê?
— Não estava chato, só não tinha nada novo.
Que seja. Estava se tornando escasso.
Ana queria desafios, queria algo que não fosse tão fácil de domar.
Foi assim que começou a estudar pessoas.
Artistas, engenheiros, guerreiros, filósofos.
Os insuportáveis e brilhantes. Os obsessivos e quebrados.
Gente que esculpiu seu nome na história com genialidade ou pura teimosia.
Da Vinci e sua mente inquieta.
Hypatia e sua luta contra a ignorância.
Musashi e sua filosofia de lâmina e disciplina.
Tesla e sua genialidade caótica.
Ada Lovelace e seu pensamento além do tempo.
Frida Kahlo e sua dor transformada em arte.
Mary Shelley e sua criação monstruosa que ecoou pelo tempo.
Suas vidas eram um caos lindo, cheias de falhas, de vitórias, de loucura.
Isso trouxe uma pergunta inevitável:
“Será que eu, uma pessoa tão comum, poderia fazer algo assim?“
A resposta? Não importava.
Porque, sem perceber, começou a tentar.
Escolheu pintura. E foi um fracasso nisso.
Os grandes mestres se revirariam no túmulo se vissem aquelas abominações que chamava de arte.
Linhas tortas, sombras desajeitadas, cores que pareciam uma piada ruim.
Mas Ana não desistiu.
Testou estilos. Testou técnicas. Testou tudo que encontrou até que, um dia, um pequeno rascunho decente apareceu.
Depois, anos tentando as mais diversas formas de arte, refinando cada detalhe.
E então… passou a produzir milagres com um simples lápis.
Encarava isso com evidente orgulho. Apesar de, claro, se recusar a admitir.
— Eu descobri, Gato! Achei minha paixão!
A exaltação rasgou o silêncio do cômodo.
Ana agarrou o felino e o ergueu até onde seus braços permitiam, como se segurasse um troféu divino.
Gato, em resposta, apenas piscou lentamente, indiferente e desinteressado.
— Do que você tá falando, bicho burro? Claro que não é Pintura! Isso é coisa de desocupado.
A jovem falou com a naturalidade de quem renega um dom concedido pelos deuses.
E então, sorriu. Estava radiante.
Porque a resposta era tão óbvia, tão simples, tão inevitável, que a antecipação de dizê-la em voz alta fazia seu peito vibrar.
O que Ana amava, era o conhecimento.
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