Capítulo 74 - Resquícios
*Essa é uma prévia da reescrita! Ainda está crua, sem o polimento final, mas logo ganha forma. Se notar algo fora do lugar, toda ajuda é bem-vinda!
Ana nunca tinha sentido um cheiro tão forte de sangue. Sangue e fezes, para ser mais exato. A combinação parecia ter entrado pelos poros, impregnado nas roupas, nas unhas, nos ossos. Respirar pela boca não ajudava — o gosto metálico do ar fazia questão de lembrar que estava presente.
Os corpos pelo chão eram o principal motivo, mas o fato de também estar com as roupas empapadas de sangue não ajudava. Seu corpo estava tão encharcado que o sangue já começava a coagular entre seus dedos, criando uma segunda pele repugnante.
Com um movimento brusco, fez o que podia: arrancou um pedaço do manto rasgado de Maurice e esfregou o tecido nos olhos, com a improvisação que a situação permitia. Respirou fundo. Cuspiu um catarro avermelhado no chão. Esticou o corpo com cuidado, checando pedaço por pedaço de si mesma, mapeando as dores e procurando sinais mais graves. Apesar de tudo, estava inteira. Mais ou menos.
Só então percebeu o peso adicional em sua mão. Girou a lâmina uma vez. Duas. Por garantia, girou uma terceira.
— Mais pesada… — murmurou, sem falar com ninguém em particular. — Já tá com cinquenta centímetros. Nunca tinha crescido tanto de uma vez só…
A arma — que já acumulara pelo menos noventa mortes — não podia mais ser chamada de faca. Talvez alguém otimista a chamasse de facão, mas estava mais perto de uma espada curta, então, em uma decisão que já previa o futuro, decidiu chamá-la assim. Atou um pedaço do pano ensanguentado no cabo improvisando uma alça, e prendeu a outra ponta na bainha da forma mais pragmática que conseguiu. Não confiava que aquilo ficaria no lugar se corresse, mas não tinha opção melhor naquele momento.
Por fim, olhou ao redor.
Estavam vivos. Exaustos, arranhados, vomitados e cobertos de feridas, mas vivos.
— Conseguimos… — murmurou Júlia, a voz trêmula, fina. O olhar dela estava fixo em algum ponto da parede. Qualquer ponto. Menos o chão. O chão estava cheio demais.
— Ainda não. — A voz de Ana saiu cansada, mas firme. Endireitou as costas com esforço, fechando os olhos para forçar a audição a funcionar. Ainda havia ruídos. Passos? Murmúrios? Estavam longe. Mas não tanto quanto gostaria. — Tem esses caras no chão, e mais gente logo vai chegar aqui. Precisamos sair.
Era uma pena. De verdade. Não só pelas salas da igreja que ficaram intocadas, todas exalando aquele convite mórbido que toda curiosidade adora aceitar. Mas também queria ver o piano de perto. Agora, coberto de sangue, meio torto pela pancada, parecia ainda mais interessante. As inscrições rúnicas nas teclas brilhavam fracamente, como se zombassem dela pela pressa.
Mas não era hora de tocar piano.
— Vamos fugir, certo? — Júlia mordeu o choro, mas a voz traiu. — Eu não quero mais ter que matar… Eu não quero!
Ana estalou o dedo na testa da garota. Não com força. Só o suficiente para acordá-la.
— Se liga. Ninguém aqui vai se jogar de novo no meio desses lunáticos. — A respiração dela começava a estabilizar, o que não tornava as dores menores. Fez sinal para Alex, que, mesmo ainda ajoelhado, respondeu com um aceno rápido, confirmando que estava funcional. Ana então se dirigiu ao canto onde vira Felipe sumir sob a avalanche humana. Antes, apontou com o queixo para o fundo da capela. — Tem uma porta ali. Aposto que leva pra algum tipo de depósito.
Todos olharam. Claro que tinha uma porta. Meia escondida atrás da cortina velha, opaca, com a ferrugem cobrindo o ferro simples. Discreta demais para o exagero do resto do lugar. O tipo de porta que só existia porque alguém precisava muito esconder alguma coisa. Isso por si só já dizia tudo.
— E vamos só… entrar? — Júlia rebateu, ainda desconfiada.
— Tem ideia melhor?
A ruiva torceu a boca, era a segunda vez que haviam perguntado isso para ela só hoje, tinha que calar a boca. Não, não tinha. Nem valia o esforço de responder. Foi ajudar Alex a se levantar enquanto Ana, com um cuidado quase gentil, começou a puxar Felipe de debaixo dos corpos.
— E aí, tá bem?
A verdade é que, por um instante, Ana se preocupou. Não do jeito nobre e altruísta que livros gostam de romantizar. Foi um medo mais prático, quase logístico: já conseguia prever o clima de merda que se instalaria no grupo quando chegassem à conclusão de que precisariam carregar o pedaço de carne que fora seu companheiro para fora dali, misturado a outros muitos pedaços de carne que antes também foram alguém.
Considerou, por um breve segundo, fingir que não fazia ideia de onde ele estava, improvisar um discurso de despedida razoável e simplesmente ir embora. Mas rapidamente o peso saiu do seu peito quando, apesar de grandes feridas em todas as partes que sua armadura de couro não cobria, viu o jovem abrir os olhos. Com uma expressão dolorida, Felipe respondeu.
— Na verdade, tô longe de bem — disse, e seu tom foi tão honesto que quase arrancou um sorriso de Ana. Com os braços e um pouco de esforço, terminou de se arrastar para trás. — Tem algo errado, não consigo mexer minha… perna?
A expressão tensa da líder do grupo, enfim, cedeu por completo. Um riso escapou. Não um riso cruel ou sarcástico — embora bem pudesse ter sido —, mas algo entre alívio e puro cansaço. Disfarçou como pôde, transformando em uma tosse, supostamente provocada pela poeira, antes de responder o jovem.
— Pensa pelo lado bom… — murmurou, ainda com a mão tampando a boca. — Você vai ganhar uma nova prótese pros seus testes.
Felipe franziu o cenho, abriu a boca, e então fechou. Ficou encarando Ana, como se tentasse decidir se ela estava de brincadeira ou só sendo prática demais. Por fim, também riu baixo. Olhou para o vazio — ou quase, já que sua perna ainda estava lá… em partes. Uma lâmina qualquer havia cortado cerca de setenta por cento do membro, deixando-o pendurado por fiapos de carne e tendão. As mordidas ao redor, no entanto, contavam uma história mais complicada.
— Por que só foderam minha perna esquerda?
A pergunta saiu tão genuína que Ana se sentiu até mal por não ter uma resposta minimamente inteligente. Apenas deu de ombros e se abaixou para analisar mais de perto.
— A gente vai ter que arrancar isso aqui… Não tá legal. — Murmurou, e cutucou um dos buracos que decoravam a carne do rapaz. O grunhido dele foi alto, mas não o suficiente para abafar o estrondo da porta, sendo arremessada para dentro por uma explosão de lascas de madeira.
Os seguidores começaram a aparecer um por um, se esgueirando como ratos recém-saídos do esgoto. Não exibiam a mesma insanidade frenética de antes, mas seus rostos deixavam claro que não estavam ali para bater papo. Identificaram o grupo em segundos e começaram a correr em sua direção.
— Temos que ir agora! — disse Júlia, já puxando Alex pelo braço.
Ana acenou em concordância, jogou o guerreiro sem perna em seu ombro, trazendo um grito alto no pé de seu ouvido. Rapidamente correu em direção à porta. Entraram todos juntos, mas em vez de uma continuação dos corredores, se depararam com uma escuridão sem fim. O início da sala era claustrofóbico; não uma construção do homem, mas sim paredes frias de pedra que pareciam querer te abraçar em um abraço eterno. Pouco depois, no entanto, se expandia em um mundo negro e vazio.
Um chiado, quase imperceptível, serpenteava pelo ar.
— Água corrente. — Ana identificou. Um som sutil, mas familiar. Ter água por perto nunca era mau sinal. O cheiro, porém, contava outra história. Enjoativo, denso, piorava a cada passo. Um cheiro de podridão úmida que brincava com o olfato, puxando lembranças que ninguém queria revisitar. E junto ao cheiro, pequenos rastros vermelhos desenhavam trilhas no chão, cutucando a imaginação sobre o que, ou quem, já havia passado por ali.
— Isso tá ficando cada vez mais estranho. — murmurou Felipe, a voz rouca de dor e cansaço.
— Sim. Só fiquem alerta. — Ana respondeu, e então, voltando-se para o casal que vinha logo atrás: — Alex, vou precisar que você faça um último esforço. Não tem trancas nessa porta… — Apontou para as soqueiras amarronzadas do rapaz, que agora mais pareciam extensões de seus próprios braços. — Uma corrente de ar vem lá de baixo, então não tem perigo de sufocarmos.
O jovem fez um sinal vago com a cabeça, um tipo de assentimento sem entusiasmo. Soltou-se dos braços de Júlia, respirou fundo e concentrou a mana de seu corpo em seus punhos. As runas de sua arma lentamente foram preenchidas, e então deu um soco na entrada com o resto de sua energia. Foi forte. Forte o bastante para fazer as paredes estreitas tremerem e a própria pedra ressoar com um som abafado de ameaça. Mas não foi o suficiente. A entrada continuou lá, indiferente.
— É, não deu. — comentou Ana.
Sem esperar uma nova ordem, Alex recuou um passo e repetiu o movimento. Dessa vez mais baixo. E novamente. E novamente. O som da pedra cedendo parecia mais lento que os passos apressados dos perseguidores lá atrás.
— Eu não consigo continuar… — A voz saiu num fio, tão baixa quanto a confiança que restava. As mãos começavam a sangrar, a carne cedia antes da pedra. A mana, mesmo regenerando aos poucos, parecia escoar em vão. E os ossos… bem, ossos não gostam de repetição sob pressão. Estavam tortos pelo recuo das manoplas, e ele sabia disso.
Mas, finalmente, uma lasca maior cedeu, e levantando ela mesma o braço robótico de Felipe, um último disparo resolveu a situação, bloqueando a passagem com escombros e poeira. Teriam que encontrar outra maneira de sair de lá, mas, ao menos, estavam momentaneamente a salvo.
— Você já fez o suficiente — Júlia já estava lá, afastando uma das mechas do cabelo do jovem enquanto dizia palavras calorosas. Seus olhos se marejaram ao ver o sorriso de Alex para ela antes de desmaiar. Suportando o peso do garoto, com toda a delicadeza possível dentro do contexto, ajeitou-o num canto qualquer.
Ana suspirou.
— Vamos passar um tempo aqui — comentou em voz baixa para Júlia. — Eu vou resolver as coisas, pode descansar primeiro.
A garota apenas assentiu. Sem protestos, sem palavras. Deslizou pela parede até sentar no chão frio. Seus olhos estavam distantes, fixos em algum ponto entre os corpos dos irmãos e as próprias mãos ensanguentadas. Ana duvidava que conseguisse dormir – depois de um dia como aquele, as imagens se repetiriam atrás de suas pálpebras fechadas. As lutas, as súplicas. O massacre.
O número de mortes nas mãos dos integrantes da Ironia Divina não era algo que pudesse simplesmente fingir que não existia.
Ela própria já havia passado por situações assim. Quantas coisas, vivas ou não, já não havia destruído ao longo de seu tédio secular? Quantas noites não madrugou após matar seu primeiro gato por curiosidade? A mente humana não gostava desse tipo de peso.
“Se ela resistir, tudo vai ficar bem.”
E não pensava isso com esperança vã. Pensava porque era assim que funcionava. Se Júlia não quebrasse agora, nunca mais quebraria. Após a dor, algo novo surgia nas pessoas. Uma apatia com um toque de crueldade. O sadismo vinha como um bônus, se você não se controlasse bem o suficiente.
Os irmãos, por outro lado, a surpreenderam. Lembrou-se de Felipe explodindo uma cabeça com um tiro preciso, depois olhando para as próprias mãos, os restos que escorriam delas, com olhos que não sabiam bem como reagir, mas sem qualquer traço de horror. O próximo disparo foi mais fácil. O seguinte, automático. Alex, esmagando crânios com uma eficiência quase mecânica, não foi tão diferente. Talvez eles já estivessem desconectados de si antes mesmo dessa noite. Ou talvez, desde sempre, não fossem tão inocentes quanto fingiam.
Ana sacou sua espada curta, observando os muitos novos riscos presentes nela com uma expressão relaxada. Então balançou a cabeça e se abaixou onde havia deitado Felipe anteriormente, avaliando a perna mais de perto. A palidez do jovem ia além do normal para alguém tecnicamente vivo. Não demorou para chegar a uma conclusão: seu diagnóstico continuava o mesmo, aquilo não tinha salvação.
Puxou a pederneira da pequena bolsa que ainda carregava firmemente presa na cintura. O tecido foi rasgado sem cerimônia para improvisar o começo de uma fogueira.
A luminosidade repentina fez com que visse melhor os arredores: estavam em uma grande câmara de paredes estranhamente lisas. Não havia muito espaço para caminhar, pois alguns metros à frente, o chão simplesmente acabava. Um abismo tão escuro e profundo que até a chama parecia respeitar sua existência, recusando-se a iluminá-lo. O vento que vinha dali carregava um assobio contínuo, fino, sutil, como se o próprio vazio respirasse. Na borda, um trono. Simples, vazio, virado para a escuridão como quem aguarda pacientemente a chegada de um rei que não virá.
Ana demorou um instante a mais para encarar aquele trono, para processar o simbolismo barato e óbvio que parecia quase uma piada cósmica com o nome que ela carregava. Mas não tinha tempo para filosofias. Havia um trabalho a ser feito.
Sentou-se sobre a coxa de Felipe com uma objetividade brutal, ignorando os grunhidos fracos que escaparam do rapaz. Suas mãos trabalharam com precisão clínica: aqueceu a lâmina até ela brilhar num laranja ameaçador e desceu-a com um movimento firme, cortando o que restava do membro pendurado como quem decepa uma raiz apodrecida.
Voltou a esquentar a espada, e logo a pressionou contra a base da amputação. O cheiro foi instantâneo. Carne torrada, pelo queimado, gordura. Mas funcionou. As veias cauterizadas estalaram sob o calor, os músculos se contraíram, e o sangramento cessou com uma obediência animalesca. Felipe desmaiou, o que, na prática, era quase um alívio.
Ana passou as costas da mão na testa, sujando-a de cinza e sangue, largou-se sentada no chão.
— Parece estável o suficiente.
Dando uma última olhada para o grupo, tentou relaxar. Não ia dormir de verdade, era uma das únicas que estava em condições de lutar de verdade, afinal.
No entanto, sem perceber, fechou os olhos.
Quando os abriu, estava em um mundo branco e infinito. Nada existia ali, mas, ao mesmo tempo, parecia que tudo poderia ser contido.
— Ei, dessa vez eu tô morta?
— Já te disse antes, eu não sei. Sou só uma lembrança mal feita.
— Não vem com essa merda. Eu parei de sonhar há muito, muito tempo. Não pode ser coincidência você aparecer toda vez aqui.
— Bem, você me pegou — riu o anjo, cobrindo sua pequena boca com uma das asas. — Mas não estou mentindo. Sou um resquício preso no tempo, uma lembrança do que já fui.
— Um resquício… mas porque em mim? — Ana parou, pensativa. — Foi o beijo?
— Beijo? — o anjo franziu a testa.
Foi a primeira vez que a mulher milenar o vira tão expressivo.
— Pelo jeito não…
— Estou aqui desde que o selo foi colocado em você. — esclareceu a pequena figura. — Não achei que fossemos nos conhecer um dia, mas pelas suas visitas, imagino que o meu eu completo, já não esteja mais ao seu lado.
— É, mas isso já faz um tempo. — O tom de Ana ficou mais sério. — Agora me fala, por que nunca avisou que o mundo era tão maior do que eu conhecia?
— Maior? Não sei o que quer dizer.
— Claro que sabe! Deixa de ser mentiroso! Podia pelo menos ter me falado que eu ia ser uma fodida sem mana!
Nesse instante, algo mudou. O sorriso de Gabriel mudou, tornando-se o mesmo que a garota já vira milhares de vezes no passado: um sorriso radiante que não era refletido em seus olhos.
— Mana? — sua voz tremia, uma indignação surgindo do fundo de seu âmago. — Como… como está o mundo atualmente?
Ana cruzou os braços, ainda descrente.
— Não tenho como explicar direito… A Terra e uma tal de Aurórea viraram uma só. Você foi puxado por umas correntes estranhas no processo. Por sinal, que Deus existia de verdade é outra coisa que você podia ter me avis…
— Quieta, desgraçada! — A explosão de raiva cortou o ar como uma lâmina. Não era teatral. Não era Gabriel. Era outra coisa. Algo furioso, algo sincero. — Não sei o que minha outra versão incompetente fez, mas pelo visto você também deu errado. Não é melhor que aquelas sombras ignorantes.
Sem qualquer aviso, a cópia afundou no chão, deixando o local em um silêncio pacífico. Ana suspirou e sentou-se em meio ao nada. Deu de ombros, afinal, já esperava que essa conversa não levasse a lugar nenhum.
Não sabe quanto tempo se passou antes que as palavras surgissem de lugar nenhum.
— Ana! Ana! Acorda, por favor!
O tom de desespero de Júlia chacoalhou a adormecida rainha mercenária, a tirando de seus devaneios.
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