Índice de Capítulo

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    A casa já não era um lar.

    O olhar fixo da pequena mulher alada devorava qualquer resquício de conforto. 

    Então, Ana passou a ficar pouco por lá.

    Acordava com a primeira luz do dia, saía antes que a sensação de paredes ao seu redor se tornasse insuportável. Seu corpo precisava de comida? Comia. De descanso? Dormia. Mas o resto? O resto era feito longe dali.

    Seus dias se tornaram quilômetros. Correr. Correr até os pulmões implorarem, até as pernas ameaçarem ceder. No começo, elas realmente cederam. Mas, dia após dia, continuava, afinal, era teimosa. 

    E teimosia era uma força poderosa.

    Sabia que não era fraca. Pelo menos não como foi a muito tempo atrás. Mas seu corpo, acostumado a uma vida sem urgência, odiou cada segundo de tudo aquilo.

    Assim, sentiu que precisava melhorá-lo.

    Seus pés traçaram rotas pelas ruas abandonadas, desenhando caminhos invisíveis sobre um mundo que não precisava mais dela. Aprendeu aos poucos a prever os próprios limites antes que seu corpo falhasse. Dominou a respiração. Ajustou cada passada. Se recusou a ser lenta.

    Não demorou a notar que correr já não bastava. Porque correr era fuga. E Ana queria controle.

    Então, virou-se para o ferro. Focou-se em musculação.

    Havia algo primal em erguer peso, em sentir cada músculo resistir antes de se render. A dor deixou de ser punição e se tornou progresso. As mãos se acostumaram ao toque áspero dos halteres, os nós dos dedos engrossaram, a pele ficou marcada por calos. Seu corpo, antes já  resistente, agora se moldava ao esforço.

    O espelho se tornou testemunha silenciosa da mudança.

    No início, não via diferença. Só uma garota exausta, tentando escapar de si mesma. Mas então, os contornos mudaram. O espaço entre os ombros se alargou. O pescoço ficou mais firme. Os braços, antes comuns, agora carregavam algo novo — poder.

    Um novo vício nasceu.

    Mergulhou nos livros, dissecando a si mesma antes que o próprio tempo pudesse fazê-lo. Anatomia. Biomecânica. Fisiologia. Se o corpo era uma máquina, então ela aprenderia a montá-lo peça por peça. Cada músculo tinha uma função, cada movimento podia ser otimizado.

    Antes de dormir, mapeava o próprio corpo com os dedos. Primeiro, por curiosidade. Depois, por obsessão. Sentia cada tendão, cada estrutura óssea, cada articulação, cada pequena imperfeição oculta sob a pele. O que tensionava. O que relaxava. O que precisava ser trabalhado.

    — Pequenos rituais necessários — murmurava para si mesma, dizia, convencendo-se de que aquele longo tempo era necessário para… bem, para algo.

    Foi neste tempo que a biblioteca municipal tornou-se seu templo particular. O prédio estava condenado. Talvez caísse em um ano, talvez em dez, mas enquanto houvesse algo para aprender, voltaria.

    A cada novo livro devorado, algo dentro dela mudava. O foco se tornava hiperfoco. Não era um talento natural. Nunca fora. Mas gostava disso. De se perder no estudo até o mundo ao redor deixar de existir.

    O tempo passou. Sem pressa. Sem aviso.

    Certa noite, voltou para casa coberta de suor e poeira, os músculos ainda pulsando após um treino particularmente brutal.

    Se jogou no colchão, arfando.

    Os olhos encontraram o teto, mas a mente ainda estava nas ruas. Deitada, esticou o corpo,  e suspirou de alívio com o movimento. Foi quando virou o rosto em direção ao espelho.

    O reflexo que olhava de volta era forte. Imponente. Perigoso. Se levantou apressada, tensionando o corpo por completo.

    — O sonho de todo fisiculturista! — zombou, com um sorriso repleto de orgulho e um leve toque de deboche.

    Gostava do que via, estava forte.

    Não do jeito que revistas pregavam, com corpos esculpidos para agradar olhos alheios. Mas forte de verdade. A estrutura frágil deu espaço a algo sólido. O torso firme, as pernas esculpidas pela repetição, o olhar afiado. A pele marcada por arranhões, por hematomas, por esforço.

    Menos feminina? Sim, talvez. Mas era uma consequência aceitável. Não era como se a feminilidade tivesse alguma utilidade agora.

    Considerava-se uma de suas próprias obras-primas.

    Não demorou tanto assim.

    Em seu pequeno limbo sem calendários, o tempo escorria cada vez mais estranho. Tentava ignorá-lo, mas às vezes falhava. O problema estava na troca das estações. O frio suave do inverno denunciava que mais um ciclo havia se fechado.

    Não em sua pele, mas em sua mente, onde o peso do tempo insistia em se instalar.

    Tentava esquecer. Às vezes conseguia. Às vezes, não.

    De qualquer forma, acreditava não ter sido tanto, mas… bem, não tem mas.  Sabia apenas que havia treinado mais do que imaginava. O suficiente para perceber que, em algum momento, seu corpo parou de mudar.

    O crescimento estagnou.

    Entendia, claro. Genética não era um conceito infinito. Haviam limites biológicos que nenhuma força de vontade poderia transpor.

    Mas e daí? Treinar era a peça que faltava

    Se concentrava melhor. Descansava melhor. Comia melhor. Estudava melhor.

    Foi uma perfeita sinergia com a vida que levava, ousava dizer que alcançara um equilíbrio que beirava o absoluto. E foi isso que fodeu tudo.

    Estava em paz com essas escolhas, mas… tão em paz que doía.

    O silêncio começou a pesar mais. Não era a ausência de som, mas uma presença. A música do nada. Era quase uma melodia, algo invisível, ecoando no fundo da consciência. No começo, um sussurro. Depois, um sussurro insistente. Então, um grito, uma nota aguda, estridente, crescendo, crescendo, crescendo—

    Até que ela quis gritar também.

    E gritou.

    Não um pequeno grito, mas sim o mais alto que pôde. A risada veio logo depois. Sozinha. Aguda. Entrelaçada com algo quebrado.

    Afinal, era engraçado… não era?

    O silêncio riu junto com ela.

    Realmente aguentaria viver pra sempre?

    — Claro que sim. Olha pro mundo lá fora, ainda tem um monte de coisa pra aprender, um monte de coisa pra ver, um monte de coisa pra descobrir.

    Mas você é uma covarde. Se contenta com uma porcaria de cidade.

    — Cala boca, eu tenho tempo! Os livros lá fora vão me esperar.

    Não, não vão. Mas foda-se.

    — Foda-se você também! 

    O pensamento torceu algo dentro dela. Era verdade que não iriam esperar?

    Torcia para que não fosse assim.

    A jovem eterna suspirou, balançou a cabeça e voltou a focar no que estava fazendo. Sentada, suada, suja de poeira e pedra, diante de um bloco de uma pedra branca.

    A encontrara em uma loja qualquer, perdida entre os escombros do que um dia foi um comércio movimentado. Já não existia dono, nem preço, nem utilidade. Apenas estava ali, esperando.

    Não sabia dizer com precisão que tipo era. Pensou inicialmente que fosse mármore, mas a textura era suave demais, quase delicada. Bom, era pedra, e isso era a parte importante.

    Numa mão, uma estaca de ferro. Na outra, um martelo.

    Minhas mãos moldam o mundo!

    Uma piada. Um pensamento bobo, quase infantil. Mas ali, naquela cidade agonizante e sem ninguém para contradizê-la, quem diria que não?

    Então, brincou de Deus.

    Uma versão inferior, muito, muito inferior, mas bastava.

    Antes de começar, tocou a própria pele. Cada linha, cada ângulo, cada curva. Sabia tudo sobre si mesma. Se entendia tão bem, poderia reproduzir-se?

    Sim.

    A resposta veio com um golpe seco e definitivo. O martelo ergueu-se no ar, a estaca tocou a superfície, e a primeira lasca de pedra se desprendeu, arrastando consigo um pensamento.

    E então, esculpiu.

    Formas tangíveis, texturas táteis. O vazio transformado em algo físico, moldado em fragmentos de saudade. Devagar, ruas outrora vazias se preenchiam de algo novo. Belo. Mas mórbido.

    Não se lembrava bem dos rostos, mas os fez assim mesmo. Não ficaram ruins.

    Um vendedor, colocando mercadorias inexistentes em exposição.

    Jovens conversando e sorrindo enquanto atravessavam avenidas que não levavam a lugar nenhum.

    Crianças brincando ao redor da fonte onde não havia mais água.

    Cenas banais de um mundo que já não tinha mais certeza se sequer existiu.

    E por fim, a última peça.

    — Finalmente finalizada, estranha do caramba.

    Era bizarro. Comparando as duas, não havia falha, não havia erro. Cada traço, cada dobra na roupa, cada detalhe imaculado daquele rosto insultantemente sereno.

    Se aproximou da verdadeira, analisando-a como um escultor avaliando uma peça que não correspondeu às expectativas. A pequena mulher silenciosa não a seguia quando corria, mas bastava que parasse por alguns minutos, e lá estava, surgindo do nada. Assim como agora.

    — Na verdade, não tá tão boa assim… — murmurou Ana,  inclinando a cabeça, os lábios se curvando em desagrado. — Essa merda de pedra tem mais vida do que você!

    A irritação veio sem explicação. Um nó no peito, um incômodo que não soube nomear. Claro, o anjo não reagiu.

    Então, com um movimento deliberado, bateu na testa da estátua. O som seco ecoou pelas ruas vazias.

    Uma pequena rachadura apareceu.

    Ana piscou, surpresa. Um sulco sobre a testa de pedra, como uma imperfeição ínfima, mas visível. Franziu a testa com a  própria ação, e involuntariamente quase se desculpou com o objeto inanimado.

    Não devia ter feito isso. Amava suas criações, cada uma delas. 

    Criá-las trouxe um desafio interessante, assim como enxurradas de memórias de décadas atrás. Tais pequenas memórias eram felizes, e chorou com o término de cada peça. Sabia que, muito em breve, esses poucos traços de seu passado desapareceriam ainda mais fundo em sua mente. 

    Resignada, riu. Riu alto, até as lágrimas escorrerem mais uma vez, até a visão ficar. E então, quando recuperou o fôlego, algo se torceu dentro dela.

    — Bem… parecem pessoas reais demais, né?

    Foi só quando disse em voz alta que sentiu o calafrio. Um tremor instintivo, como se algo nefasto tivesse se manifestado só por estar em meio aquela multidão.. 

    — Essa merda dá medo! — falou de repente, recuando vários passos. E, quando quase caiu ao esbarrar em uma mureta, ouviu um sussurro se dissolvendo no vento.

    — Você é um ser estranho.

    Ana congelou. O anjo falou. Estava ouvindo realmente certo?

    Seus olhos se arregalaram. O mundo, por um segundo, pareceu um pouco diferente. Mas como uma confirmação divina, as palavras continuaram.

    — Trata tanto esforço como um mero capricho…

    O som daquela voz era intrigante. Não porque era alto ou baixo, rouco ou doce. Mas porque existia. Sua boca se entreabriu, surpresa. O silêncio se rompeu, tão abrupto e inesperado que quase doeu em seus ouvidos. Depois de anos mergulhada em um mundo onde apenas sua voz existia, ouvir outra coisa foi… estranho.

    Mas um estranho que ela queria aproveitar.

    Um formigamento subiu por seus ouvidos, um estímulo esquecido que seu cérebro agora absorvia com fome, como alguém privado de som por uma vida inteira.

    — Minha imaginação é realmente forte!

    Massageou as têmporas. Tinha certeza de que uma alucinação auditiva traria dor de cabeça mais tarde. Mas que fosse. Fechou os olhos e deixou o som se assentar em sua mente.

     No entanto, o anjo ainda não havia terminado.

    — Mas… não vou mentir… esse lugar também não me agrada.

    Confusa, Ana deixou de lado sua introspecção fingida e encarou a nova oradora alada. Foi a primeira vez que notou uma mudança naqueles olhos inexpressivos. 

    Eles tremiam

    O riso escapou antes que pudesse segurar. Um riso afiado, torcido. Zombeteiro.

    — Quem diria que você é tão medrosa. 

    Algo tão sério, tão distante, tão além da humanidade… sentindo medo do mesmo jeito que ela?

    Hilariante.

    Hilariante.

    Mas não o suficiente para impedir que os arrepios voltassem a percorrer sua espinha.

    Tentou negar, ignorar a sensação, mas antes mesmo que percebesse, já estava se afastando com passos tão rápidos que chegou ao apartamento em menos da metade do tempo que deveria.

    Se recusava a admitir que estava fugindo, mas seus dedos agarraram a mochila marrom próxima à porta com voracidade, e em um movimento automático, começou a correr pelo quarto, pegando o que precisava.

    Seu peito estava apertado. O que estava fazendo? Por que estava fazendo isso?

    Não entendia. Simplesmente não suportava mais ficar um segundo ali, em meio aquelas estátuas.

    Cada movimento se tornou um comando direto. Pegar o que precisava. Não pensar. Não parar. O medo era algo quente e ácido dentro dela, queimando, mastigando seus ossos. Mas a pressa era maior.

    A mochila começou a se encher.

    Primeiro, os cadernos em branco. Não fazia sentido. Mas sua mente não aceitaria sair dali sem eles. Então, páginas rasgadas de livros com mapas de São Paulo. Não tinha destino. Mas precisava de um ponto de partida.

    Barras de cereal velhas, mas ainda mastigáveis.

    Dois coelhos mortos, caçados mais cedo, foram presos na lateral da bolsa.

    Quando chegou à porta, o medo a assolou novamente. 

    Medo de ficar, medo de sair.

    Covarde.

    — Cala a porra da boca! 

    A frase saiu para ninguém. Para nada. Para o vazio que certamente ria dela.

    E então, sem hesitar mais, agarrou o Gato e saiu daquele lugar. Depois de tanto tempo, finalmente estava indo embora. Se ainda existissem observadores na Terra, talvez notassem o estranho trio que partia da cidade abandonada.

    Uma mulher. Um anjo. E um gato.

    Se moviam com uma pressa incomum, fugindo de algo que não se movia.

    De algo eternamente preso em uma vida que nunca existiu.
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