Capítulo 103: A batalha do Matadouro (3)
A tensão no ar parecia solidificar-se, cada movimento, cada respiração, pesava toneladas. O olhar de Aiden encontrou o meu, e um aceno quase imperceptível selou nosso plano improvisado.
— Aiden, tente derrubar o cavaleiro! — minha voz ressoou pelo salão devastado. — Espere pelo meu sinal!
Aiden assentiu, seu rosto pálido, mas decidido. Ele sabia o risco, sabia que um erro poderia custar sua vida, mas não hesitou.
Virei minha atenção para o monstro, sentindo a pressão avassaladora do controle do cavaleiro sobre ele. A presença dele seu miasma era como uma mão de ferro, apertando o espírito bestial da abominação. Mas se ele podia tentar dominar Dante, eu também poderia tentar retomar o controle da criatura.
Cerrei os dentes e deixei meu próprio miasma fluir. Uma energia densa, quase tangível, que exalava de mim em ondas. Me concentrei, minha vontade se entrelaçando ao miasma, moldando-o, guiando-o. O fluxo de energia avançou, como serpentes invisíveis, em direção à abominação.
Ao penetrar a criatura, senti uma resistência, uma barreira erguida pela mente do cavaleiro. Era como empurrar contra uma porta trancada, cada centímetro ganho custava uma enorme quantidade de energia.
A abominação vacilou, seu corpo grotesco parando no meio de um movimento. O cavaleiro percebeu e gritou, suas palavras eram um espasmo de ira e desespero, sua voz soando como vidro quebrando.
— Agora! — minha voz explodiu, um comando tanto para Aiden quanto para mim mesmo.
Ele desapareceu em um clarão de mana, e o próximo instante o vi surgindo no alto, exatamente ao lado do cavaleiro. Sua espada brilhou no ar, e o aço encontrou carne pútrida. O golpe foi certeiro, cravando-se nas costelas do morto-vivo.
Mas o cavaleiro não caiu sem luta. Com um movimento desesperado, ele apontou o cajado para mim. Uma rajada negra cruzou o espaço entre nós, e mesmo com meus sentidos aguçados, eu estava distraído demais, muita coisa acontecia ao mesmo tempo do meu lado.
A energia me atingiu no peito. Uma dor lancinante explodiu por todo o meu corpo, como se cada gota de sangue queimasse, como se minhas veias fossem preenchidas por ácido. Perdi o controle do miasma, e a conexão com a abominação se rompeu como uma corda arrebentando.
A criatura reagiu de imediato, sacudindo-se em um acesso de fúria. O rompante de força jogou Aiden e o cavaleiro para o chão. Eles rolaram em uma confusão de membros e armas perdidas, ambos tentando se levantar.
Minha visão estava turva, mas me forcei a agir. Minhas pernas se moveram por puro instinto, e antes que o cavaleiro pudesse reagir, cravei minha espada em seu crânio. O som do aço rompendo ossos foi abafado pelo som úmido da carne necrosada sendo perfurada.
Aiden, ainda atordoado, encontrou forças para finalizar a criatura, quebrando seu pescoço em um movimento brusco e definitivo.
Porém, o que veio depois foi pior.
Sem o controle do cavaleiro, a abominação entrou em frenesi. Sua mente bestial, livre das amarras, transformou-se em um turbilhão de raiva e dor. Os ataques perderam a precisão, mas ganharam brutalidade. Cada golpe fazia o chão tremer, cada movimento varria uma grande área, ameaçando esmagar tudo e todos.
Eu e Aiden tentamos recuar, mas o monstro avançava conosco como alvo, seu corpo gigantesco rasgando o ar, esmagando tudo à sua frente.
— Não… — comecei a falar, mas minha voz se perdeu.
De relance, vi Joana. Ela se movia como uma sombra, veloz e determinada. Seu corpo se projetou no ar, seu bastão se ergueu para chamar a atenção da abominação, tirá-la de nosso foco.
— Não venha… — sussurrei, o horror congelando minha língua.
Mas era tarde demais.
As garras imensas da criatura encontraram Joana no ar. Ela ainda tentou se defender, seu bastão cruzando à frente do corpo. Mas o impacto foi devastador. O bastão se partiu em dois, o golpe violento jogou seu corpo como se ela fosse uma boneca de pano. Ela atravessou o salão, sua trajetória encerrada por uma parede de pedra que rachou sob o impacto.
O mundo pareceu parar.
Um grito ecoou.
— Joana!!! Não!!!
Era Joaquim.
Sua voz era um lamento primitivo, uma mistura de dor e ódio que perfurou o ar pesado. Ele se lançou para frente, ignorando seu próprio ferimento, o sangue jorrando de seu ombro inutilizado.
Meu coração batia no ritmo da dor. Tudo ao redor parecia distante, as cores esmaecidas, os sons abafados. Mas a fúria que crescia dentro de mim era vívida, quase palpável.
A abominação avançava, o monstro ainda ensandecido, e eu sabia que, se não agíssemos, mais vidas seriam ceifadas.
Eu não podia permitir.
A dor era uma companheira constante, uma sombra incômoda que se arrastava em cada movimento meu. Mas naquele momento, ela não importava. Apenas a criatura à minha frente, apenas o próximo golpe, apenas o próximo passo.
Joaquim estava à beira do colapso, sua dor transformada em uma fúria cega. Mas eu não podia deixá-lo se perder. Sua vida era mais valiosa do que sua vingança.
Interceptei seu caminho, meus pés cravados no chão como raízes.
— Não agora, Joaquim! — minha voz foi um trovão. — Ela precisa de você vivo!
Ele hesitou, seu rosto uma máscara de desespero. Aproveitei a brecha e me coloquei entre ele e a abominação. Dante se aproximou, sua espada já em punho, os olhos brilhando com uma determinação fria.
— Mestre, estou com você… — sua voz saiu rouca, quase um rosnado.
Assenti, meu foco inteiro na criatura que se debatia à nossa frente. Seu corpo deformado sangrava uma substância viscosa, mas sua força parecia inesgotável.
Respirei fundo, senti o ar pesado e impregnado de miasma, e deixei minha própria energia fluir. Concentrei-me, tentei mais uma vez penetrar na mente da abominação. Mas a barreira era quase palpável, uma muralha de dor e sofrimento. Qualquer tentativa de ultrapassá-la seria como mergulhar na lâmina de uma espada.
— É no aço e na magia então… — murmurei, a aceitação percorrendo meu corpo.
Avancei.
Dante estava ao meu lado, um vulto rápido e mortal. As garras da abominação rasgaram o ar, mas meus pés deixaram o chão antes que elas me atingissem. Saltei, minha espada cortando o ar e encontrando a articulação do pulso da criatura. O golpe foi fundo, a carne podre se abriu e um líquido negro espirrou.
— O punho, Dante! — gritei, minha voz atravessando o caos.
Eu me movia sob a criatura, cada passo um cálculo, cada golpe uma distração. Minha lâmina estocava e cortava, buscando os pontos mais vulneráveis, tentando manter o monstro focado em mim.
A abominação urrou, sua outra mão desceu em um arco destrutivo. Não me acertou diretamente, mas o impacto no chão lançou fragmentos de pedra em todas as direções. Senti a dor aguda quando os estilhaços perfuraram minha pele, o sangue quente escorrendo por minhas roupas.
Meu corpo girou no ar, o mundo girando junto, até que o chão me recebeu com uma brutalidade fria. O choque arrancou o ar dos meus pulmões, e por um momento tudo ficou embaçado.
Mas então ouvi o grito.
Um grito de triunfo.
Ergui o olhar e vi Dante. Sua espada erguida, a lâmina coberta de sangue negro. E aos pés da criatura, a mão decepada jazia inerte, ainda contorcendo os dedos grotescos.
A abominação estacou, seu corpo vacilando. Uma onda de choque percorreu seu ser, e sua mente, antes protegida pela dor, pareceu hesitar.
A oportunidade se abriu como uma ferida.
Aproveitei.
Mesmo ferido, mesmo com o sangue escorrendo, me forcei a levantar. Minhas pernas eram troncos pesados, mas eu as movi. Me aproximei da abominação, meu miasma já se formando ao meu redor.
Agora, sem a barreira completa, eu poderia tentar outra vez.
Fechei os olhos, minha mente se expandiu, meu miasma serpenteou pelo ar, buscando a conexão. A criatura, em sua dor, estava vulnerável. Sua consciência uma massa confusa de instintos e ordens contraditórias.
Senti minha energia envolver sua mente, deslizando pelas rachaduras abertas pelo sofrimento. Fui sutil, fui firme. Onde antes eu tentava dominar, agora eu me insinuava, plantava sementes de dúvida, enfraquecia os laços que o prendiam à vontade do cavaleiro morto.
A abominação tremeu.
Seus movimentos perderam a coordenação. Suas investidas, antes cheias de fúria, tornaram-se erráticas.
Dante, atento, aproveitou. Sua espada encontrou a perna da criatura, um golpe baixo e cruel que a fez vacilar.
A criatura caiu de joelhos, o chão tremendo sob seu peso.
E naquele momento, eu soube.
Ela estava sob meu controle.
— Agora… acabe com isso! — minha voz foi um sussurro, mas a criatura ouviu.
Seu braço inteiro se ergueu, as garras se voltaram contra o próprio peito. Com uma força avassaladora, ela cravou as garras em si mesma, rasgando a carne pútrida, abrindo seu tórax em um espasmo mortal.
O mundo pareceu prender o fôlego.
E então, o monstro caiu.
O silêncio que se seguiu foi tão denso quanto o miasma, cada respiração nossa parecia ecoar pelas ruínas.
Nossa batalha tinha acabado, mas Pandora e Rosa ainda lutavam.
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