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    Na escuridão densa dos meus sonhos, Selune me observava. Seus olhos, outrora prateados como luar, agora eram poços de breu, negros como piche, insondáveis. Um par de asas negras, emplumadas e elegantes, desabrochava de suas costas. Havia uma quietude terrível nela, como a calmaria antes de um cataclisma.

    Sua barriga, já levemente saliente, denunciava o início de uma gravidez. E mesmo envolta por aquele véu etéreo de névoa dançante, que girava ao seu redor como um balé sombrio, eu sentia sua fome. Uma fome de almas. Uma vontade insaciável de devorar o mundo, e a única coisa que a impedia era o selo, as barreiras que impediam o vazio de se libertar por completo.

    Mas… não fui eu quem as ergueu. Foi Mahteal. Ou… fui eu? A linha entre nós estava cada vez mais tênue. Difícil dizer onde terminava minha alma e onde começava a dele. Um eco me atravessava com aquela percepção, como uma rachadura num espelho.

    Então, algo me puxou de volta.

    Uma coceira leve no nariz. Um toque sutil, insistente. Senti-me sendo arrastado para longe dela, para longe do vazio.

    Acordei.

    Nix dormia esparramada ao meu lado, a cauda felpuda balançando distraidamente e fazendo cócegas no meu rosto. Sorri e a abracei por instinto. Ela murmurou algo no meio do sono:

    — Segunda rodada… gosto disso…

    E se aninhou ainda mais contra mim, ronronando leve.

    Enterrei o rosto em seus cabelos e deixei que o calor do seu corpo me envolvesse. Por um momento, deixei de lado os sonhos perturbadores, os presságios de escuridão. Dormi novamente. Satisfeito. Mas preocupado.

    Na manhã seguinte, ao abrir os olhos, encontrei Claire e Nix já à mesa do quarto, dividindo uma bandeja de café da manhã.

    Claire percebeu meu despertar e me chamou com um gesto, um sorriso tímido nos lábios. Me levantei sem pensar, completamente nu.

    Os olhos de Claire se arregalaram por um instante antes que ela cobrisse o rosto com a mão, ruborizando até a ponta das orelhas.

    — Lior… ponha alguma roupa, por favor!

    Nix se engasgou com um pedaço de pão e caiu na gargalhada, batendo na mesa de tanto rir.

    — Que entrada triunfal — disse ela, entre risos.

    Ri também, peguei minhas calças e me vesti sem pressa, aproveitando o rubor no rosto de Claire. Quando me sentei à mesa, ela deslizou uma pasta na minha direção com um ar orgulhoso.

    — Está tudo aqui — disse, erguendo o queixo sutilmente.

    Abri a pasta e comecei a folhear. Meu queixo caiu. Claire já tinha organizado todo o funeral de Jorjen: marcado a cerimônia para a tarde do dia seguinte, enviado notificações e convites, identificado os convidados com base nas relações pessoais e comerciais de meu tio. Os detalhes estavam impecáveis.

    Ela também separara todos os negócios paralelos dele, os legais e os nem tanto. Havia uma lista extensa de contratos de mercadorias, rotas de transporte, e até transações com nomes codificados. Um verdadeiro império subterrâneo.

    — Ele era bom nisso… — murmurei, mais para mim mesmo. — Um mercador talentoso. Mas vou precisar conversar com Rosa sobre tudo isso. Talvez transformar parte desses negócios em algo mais legítimo. Eu não tenho o menor talento para isso… e não quero te sobrecarregar. Tenho planos diferentes pra você.

    Ela apenas assentiu, mas pude ver o leve brilho em seus olhos. Estava feliz por ser útil.

    Continuei:

    — Quanto à representação da Casa Aníbal… Eu sou jovem, inexperiente. Esse posto precisa de alguém com mais… estabilidade. Claire já marcou uma reunião com o Ancião Carlos para amanhã de manhã, no Palácio. Vamos discutir o futuro da liderança da Casa.

    Me inclinei e beijei levemente o topo da cabeça dela.

    — Obrigado.

    Ela corou de novo, mas dessa vez o sorriso veio mais confiante.

    — Também mandei buscar minhas coisas na casa dos meus tios — acrescentou. — E promovi Anna como governanta-geral. Dei a ela autoridade para contratar pessoal e organizar os suprimentos que estão faltando.

    — Você resolveu todos os problemas do cotidiano em menos de um dia… — falei, impressionado.

    Ela deu de ombros, como se não fosse grande coisa.

    Foi quando uma melodia suave de alaúde preencheu o ambiente, e a porta do quarto se abriu com naturalidade. Alana entrou, tocando o instrumento, com Niana logo atrás.

    — Papai! — exclamou Alana, correndo até mim para me abraçar e me dar um beijo na bochecha.

    — Bom dia, cunhado — disse Niana, sorrindo com naturalidade.

    Claire observou a cena com uma sobrancelha arqueada e uma pergunta estampada no rosto.

    — É uma longa história — murmurei, coçando a nuca. — Mas já que estamos em família…

    Contei tudo. Sobre Alana, Mahteal, os fragmentos da minha alma, os poderes que haviam despertado. Falei sobre Selune, o Vazio, o sangue Vulkaris que corria em minhas veias. Contei sobre as barreiras, as lutas internas, e as dúvidas que ainda me atormentavam.

    Claire escutava com olhos arregalados, como se tentasse montar um quebra-cabeças com peças de diferentes realidades.

    — Tenho tanto ainda a te revelar… — murmurei, vendo a avalanche de informações recair sobre ela.

    Depois do café, fui até minha escrivaninha. Peguei um livro em branco, limpo, e chamei Claire com um gesto.

    — Sente-se aqui comigo.

    Nix, Niana e Alana, percebendo o tom da conversa, se levantaram.

    — Ele vai fazer coisas chatas… vamos procurar algo mais divertido — disse Nix, com seu habitual sorriso travesso.

    Claire se sentou ao meu lado, ainda tentando organizar tudo o que ouvira. Peguei uma pena, mergulhei no tinteiro e entreguei a ela.

    — Vamos dar início a algo novo. Quero te preparar. Vamos estabelecer uma nova fundação para a magia, algo que ressoe com esse novo mundo. Você será a mente que organiza tudo isso.

    Ela segurou a pena com cuidado, como se fosse algo sagrado.

    — Outra coisa… — continuei. — Precisamos começar o trabalho de reconstrução do seu núcleo de mana. Faremos isso aos poucos. Até o dia do casamento, você será uma nova pessoa.

    Ela não respondeu de imediato. Mas havia um brilho nos olhos. Um fogo nascente. Pela primeira vez, vi nela não apenas a jovem tímida que chegara à mansão… mas a mulher que estava se tornando.

    Uma líder. Alguém que poderia ser um pilar da humanidade quando o mundo voltasse a ruir — porque, cedo ou tarde, ele sempre ruía. 

    Ficamos tão absortos em nossos estudos que as horas passaram como se fossem segundos. Quando percebi, a luz do dia já tinha cedido lugar à penumbra da noite. A única iluminação vinha de uma lamparina acesa por alguém atencioso, provavelmente Anna, que também deixara uma jarra d’água ao nosso lado. Bebíamos dela entre uma pausa e outra, sem sequer perceber quando foi colocada ali.

    Claire era brilhante. Tinha uma mente inquisitiva, um olhar atento aos detalhes e uma percepção emocional afiada. Nossas discussões não eram apenas intelectuais, eram viscerais. Falávamos sobre fundamentos mágicos, sim, mas também sobre história, ética, poder e responsabilidade. Era como conversar com alguém que já carregava dentro de si as chaves de um futuro melhor — só precisava saber como usá-las.

    Mahteal havia me dito uma vez que a paz prolongada fez os homens esquecerem dos verdadeiros perigos. De quem é, de fato, o inimigo. 

    Eu não queria que a humanidade esquecesse de novo. E se eu falhasse… que ao menos deixasse para trás um alicerce. Um sistema. Um legado. 

    O conhecimento seria nossa arma. Se não agora, então um dia. 

    Naquela noite, antes de dormir, pois o dia seguinte seria intenso, deitei-me ao lado de Nix. Ela estava quieta, mais do que o habitual. Seus olhos fitavam o teto, mas sua mente vagava longe.

    — Que foi, minha raposinha? — perguntei com um sorriso leve, tentando adivinhar o que se passava dentro dela.

    Ela hesitou antes de responder. Quando o fez, sua voz saiu baixa, quase um sussurro:

    — Ela tem tanto de você… Claire. É como Selune, sabe? Aquela mesma conexão silenciosa, aquela intensidade. Às vezes, me sinto uma intrusa. Como se, mais cedo ou mais tarde, você percebesse que vai gostar mais dela do que de mim.

    Virei-me para ela, puxando-a com delicadeza até que seu corpo se encaixasse no meu.

    — Boba… — falei, com carinho. — Você está comigo desde o começo. Passamos por tudo isso juntos. Você é minha primeira e única. Ninguém nunca vai tomar seu lugar no meu coração. 

    Ela me olhou com os olhos úmidos, mas sorriu, aquele sorrisinho maroto que conhecia tão bem.

    — Então… — sussurrou ela, com uma voz mais leve — vamos providenciar umas raposinhas para animar essa casa?

    Fiquei em silêncio por um instante. Eu sabia que a gravidez de Selune a havia abalado mais do que ela deixava transparecer. Tocava em medos que ela talvez nem soubesse nomear. Inseguranças silenciosas, escondidas sob aquela confiança brincalhona.
     
    Acariciei seu rosto e a encarei com ternura.
     
    — Vamos encher essa casa de filhotinhos, meu amor. Um bando deles. — Sorri. — E vamos começar agora.

    Ela riu, finalmente relaxando, e se aconchegou em mim como só ela sabia fazer. E, naquela noite, no silêncio cúmplice do quarto, fizemos planos, não só com palavras, mas com os corpos, com os gestos, com a entrega.

    Planos de amor. De vida. De esperança.

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