Capítulo 165: A torre (1)
Acordei sozinho na cama, ainda com o corpo pesado e a mente enevoada. O sol da manhã já invadia o quarto através da persiana entreaberta e das cortinas que dançavam com a brisa leve. A luz dourada desenhava formas no chão, mas não me trazia paz. Meus sonhos tinham sido densos, carregados de alguma coisa que eu não conseguia nomear. Não me lembrava deles com clareza, mas havia uma sensação desconfortável agarrada no fundo da minha mente, como um pensamento interrompido.
Estava atrasado.
Levantei de um salto, fiz minha higiene no modo automático, sem refletir sobre nada, vesti a túnica e saí pelos corredores ainda meio sonolento. Antes de sair de casa, passei no quarto de Claire. Ela continuava desacordada, mas notei uma melhora sutil: o peito subia e descia com um pouco mais de firmeza, o rosto tinha recuperado um leve toque de cor. Era uma recuperação lenta, constante. Mas ainda assim, uma recuperação. Isso já era mais do que eu ousava esperar dois dias atrás.
Não vi nenhuma das garotas. O silêncio da mansão era incomum, quase incômodo. Talvez quisessem me dar espaço, ou talvez estivessem ocupadas com os cuidados de Claire. Dei um último olhar para ela e segui para o Palácio.
Agora que não precisava mais esconder meus dons, o trajeto até o laboratório subterrâneo foi mais direto. Usei as passagens internas e me movi rápido com mana, alcançando o subsolo em questão de minutos. Lock já me esperava, como sempre cercado por um caos meticulosamente ordenado.
— Como está a garota? — perguntou, sem tirar os olhos de uma peça brilhante que ajustava com uma ferramenta que eu nunca tinha visto.
— Se recuperando. Devagar, mas progredindo. Pelo menos o antídoto está funcionando — respondi, me aproximando da bancada. — E hoje? Vamos trabalhar com o quê?
— Curiosamente… hoje está calmo. Logo cedo, uma procissão de anciãos desceu até aqui, querendo ver meu “singelo” laboratório — disse com um meio sorriso irônico. — Juliani estava bufando como um touro preso, mas não podia fazer nada. Está sendo vigiado de perto demais por esses leões velhos. Mal pode respirar sem parecer culpado de alguma coisa.
— Imagino a cena. Aposto que ele queria monopolizar tudo o que você descobriu. A presença dos anciãos deve ter sido um golpe e tanto no prestígio dele.
— E foi mesmo. O homem está envenenado de raiva. O que significa que talvez tenhamos alguns dias mais tranquilos. E sabe o que eu pensei? Que tal explorarmos a torre hoje à noite? De madrugada, quando tudo estiver quieto. É o único horário seguro o bastante pra evitar visitas inesperadas.
Meu coração deu um pequeno salto. Era a chance que eu esperava desde que descobrimos o acesso àquela torre antiga.
— Claro que sim. Mas como vamos fazer isso? Eu não tenho permissão pra ficar aqui depois do expediente.
— Simples: não saia. Fique por aqui até a noite cair. Mande uma mensagem pras suas garotas, avise que vai passar a noite fora. E Claire… bem, a situação dela não vai mudar de hoje pra amanhã. Ela está estável.
Assenti. Fazia sentido. E se íamos mesmo fazer isso, eu precisava estar preparado.
— Essa noite, então?
— Essa noite, Lior.
Lock começou a separar os equipamentos que achava necessários pra nossa incursão. Alguns eram familiares, outros pareciam experimentais demais pro meu gosto. Enquanto ele fazia isso, decidi passar no pátio de treino. Queria esticar o corpo e, talvez, entender o clima entre os magos.
Assim que apareci, fui cercado por um grupo de aprendizes e alguns mestres. Todos queriam saber de Claire. Alguns elogiavam seu desempenho no duelo com Zia. Outros expressavam preocupação sincera com seu estado atual. Pela conversa, soube que Zia também não tinha acordado ainda, o que não me surpreendeu, dado o estado em que ambas terminaram o confronto.
Eu não estava com cabeça pra socializar, mas percebia o valor daquilo. Esses magos e aprendizes, muitos dos quais ainda não sabiam se me seguiam por convicção ou conveniência, em breve seriam peças-chave na fundação da minha torre. Precisava consolidar meu lugar entre eles, mesmo que fosse só com gestos pequenos.
O dia passou mais rápido do que eu esperava. Mandei uma mensagem para a mansão, avisando a Nix que passaria a noite no laboratório. Não dei detalhes, só pedi que ela mantivesse tudo sob controle. Ela entenderia, pelo menos, esperava que sim.
No início da noite, voltei para o laboratório. Lock me aguardava em frente à porta vermelha.
— Aqui — disse, abrindo a passagem. Do outro lado, havia um quarto discreto, mobiliado com o essencial: uma cama de casal, escrivaninha, algumas estantes abarrotadas de livros e pergaminhos, uma cadeira de leitura, e um tapete desbotado no centro do cômodo.
— Entra aí. Quando for a hora, te chamo. Tenta descansar um pouco. Temos que estar despertos e focados.
Assenti e entrei. Assim que cruzei o limiar, a porta se fechou atrás de mim. Sumiu.
Só então um pensamento me atravessou como uma lâmina fria.
Lock poderia me manter ali por quanto tempo quisesse. Se quisesse. E não só comigo, e sim, com qualquer um que entrasse naquela sala, confiando demais, poderia ser preso ali indefinidamente. Era como uma prisão portátil, disfarçada de quarto de descanso.
Tentei afastar o pensamento. Lock nunca me dera razões pra desconfiar dele, e no fundo, eu sabia que essa era só minha mente cansada, ressoando os medos que vinham crescendo há dias. A paranoia era uma companheira persistente ultimamente.
O quarto era silencioso. Me aproximei das estantes. Os livros ali eram raros, alguns sobre técnicas arcanas que eu só ouvira falar. Toquei as lombadas, tirei um, dois volumes. Tentei ler. Mas minha mente não focava.
Fiquei ali, inquieto, ouvindo o som do meu próprio corpo. Esperando. Pensando. Tentando relaxar, sem sucesso.
Depois do que pareceu uma eternidade enclausurado naquele quarto fora do mundo, ouvi o som da porta abrindo. Um estalo seco, seguido pelo rangido de um mecanismo arcano se desfazendo.
Lock estava lá.
— Pronto? — perguntou, casual, como se não tivesse me deixado isolado num bolso dimensional por horas.
— Claro — respondi, tentando parecer despreocupado. — Só estava passando o tempo… Confesso que fiquei um pouco nervoso.
Lock riu, um riso que parecia esconder algo.
— Só tranquei uma pessoa num espaço desses… uma vez, há muito tempo. E ela mereceu. — Ele me encarou com uma expressão mais fria do que eu gostaria. — Você merece, Lior?
Engoli seco. Por um instante, seus olhos pareciam um abismo. E prometi a mim mesmo nunca baixar totalmente a guarda perto de Lock.
Saí do quarto com uma tensão involuntária nos ombros. Lock já estava se preparando, ajustando as configurações da porta vermelha. Eu havia separado uma mochila simples com água, comida, e alguns dos artefatos que pensava serem úteis. Coisas que eu julgava essenciais para uma incursão em território desconhecido.
Lock, por outro lado, tinha uma daquelas mochilas com espaço dimensional. Um luxo que me arrancou um lampejo de inveja. Eu queria dominar magia dimensional também. Aquela liberdade de carregar o mundo nas costas… era poderosa.
Quando tudo esteve pronto, Lock girou o mecanismo da porta. A superfície brilhou e se dissolveu como névoa sob a luz da lua encoberta. Pelo menos, dessa vez, não estava chovendo. O frio da madrugada nos envolveu, e a floresta exalava um cheiro úmido, de terra e musgo.
Caminhamos em silêncio até os arbustos onde havíamos nos escondido no outro dia. E então, a vi de novo.
A torre.
Ela se erguia no horizonte como um monólito vivo, seus andares empilhados de maneira quase caótica, com torres menores saindo da estrutura principal em ângulos desconcertantes. A arquitetura era estranha… mas havia algo de belo ali também. Um tipo de beleza que incomodava. Sedutora, opressiva. Pensei, por um instante, em minha própria torre. Tinha que ser assim… não em aparência, mas em impacto. Tinha que marcar o mundo como aquela marcava.
— Precisamos alcançar o caminho de pedras — sussurrou Lock. — Aquele trecho ali parece ter menos patrulha.
Assenti. Ele então me entregou um pingente e colocou outro no próprio pescoço.
— Fui eu quem desenvolveu os sensores de intrusos. Esse colar vai confundir os feitiços de detecção mágica, mas as sentinelas e os olhos humanos não.
— Então, já que não vamos ser detectados… — respondi com um sorriso e, antes que ele pudesse protestar, envolvi Lock com minha telecinese e levantei voo.
Ele conteve um grito, se agarrando à própria mochila com força. Ri por dentro, mas me mantive focado. A torre não era indefesa, havia proteções específicas contra ameaças aéreas. Mas eu lembrava. Oh, eu lembrava.
Quando senti a pressão mágica das defesas se formando ao nosso redor, uma espécie de barreira invisível tentando nos repelir, fechei os olhos e invoquei uma runa antiga. Um símbolo de passe. Torci para que ainda fosse o mesmo usado por Malena eras atrás.
A pressão sumiu. A barreira se dobrou ao nosso redor e nos deixou passar.
Lock ofegou.
— C-como…? — sua voz era um misto de surpresa e reverência. Ele era sensível à mana, tanto quanto eu. Sabia que aquilo não era qualquer truque.
— Também tenho meus segredos — respondi, com um sorriso.
Pousamos suavemente sobre uma plataforma lateral, acima do nível principal da entrada. Lock ainda parecia se recuperar da travessia, mas logo se recompôs.
— Precisamos ir até a entrada agora — disse, voltando ao foco da missão.
Mas eu já me afastava em outra direção, com um sorriso tranquilo nos lábios.
— Vamos por outro caminho — falei. — Conheço uma entrada secreta. Evitamos vigias… e, se tiver sorte, até armadilhas.
Ele não protestou. Apenas me seguiu.
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